Relatório sobre o documento O Dom da Autoridade. (Centro de Estudos Anglicanos, 2003)



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Transcrição:

Relatório sobre o documento O Dom da Autoridade (Centro de Estudos Anglicanos, 2003) Histórico O documento O Dom da Autoridade (DA) veio à luz em 1998, fruto do trabalho da Comissão Internacional Anglicana-Católica Romana (Anglican-Roman Catholic International Commission - ARCIC). Trata-se de um texto que tenta encontrar pontos em comum no tocante à compreensão de questões eclesiológicas. Nos anos seguintes, o documento foi alvo de diferentes análises por teólogos/as dessas duas denominações cristãs. Posteriormente, o Conselho Consultivo Anglicano solicitou que as Províncias que compõem a Comunhão Anglicana estudassem o documento e emitissem um parecer oficial sobre o mesmo. O CEA recebeu a incumbência de organizar esses estudos em nosso país. Durante o ano de 2002, realizamos três encontros regionais, contando com a participação de bispos, clérigos/as e leigos/as que, durante dois dias, se debruçaram no estudo, análise crítica e debate sobre o documento. Os encontros foram realizados em Santa Maria (contando com participantes das três dioceses do sul do país: Meridional, Sul-Ocidental e Pelotas - junho de 2002), Recife (participantes das Dioceses de Brasília e de Recife agosto de 2002) e São Paulo (com representantes das Dioceses de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e do Distrito Missionário da Amazônia setembro de 2002), envolvendo, ao todo, 41 participantes. De cada encontro foram escolhidos alguns representantes para elaborarem a redação do relatório final dos estudos. Estava prevista a reunião desse grupo para fevereiro de 2003. Porém, o aumento excessivo dos custos de passagens aéreas e a necessidade de arcar com novas despesas, impossibilitaram a reunião. Desse modo, o Coordenador do CEA ficou encarregado de redigir um texto inicial, com o auxílio do bispo Sumio Takatsu e enviá-lo aos representantes dos encontros para que esses emitissem seus pareceres com acréscimos e sugestões. Após o retorno das sugestões, o relatório final foi preparado pela comissão abaixo-assinada, e é agora apresentado à Câmara dos Bispos e ao Conselho Executivo do Sínodo da IEAB. Metodologia Nos três encontros realizados adotamos a seguinte metodologia: Inicialmente, todos/as os/as participantes nomeados por suas dioceses, receberam antecipadamente cópias do documento O Dom da Autoridade, além de estudos a respeito do mesmo que já estavam circulando na internet. A recomendação era para que todo o material fosse lido com antecedência. Durante os encontros, o tempo foi dividido em períodos de estudo, adoração e troca de experiências. Em todos os encontros a Santa Eucaristia foi presidida por um dos participantes, ficando a homilia a cargo de Dom Naudal Gomes (encontro em Santa Maria), Rev. Jorge Aquino (encontro em Recife) e Rev. Samuel de Souza (Encontro em São Paulo). A assessoria teológica dos encontros ficou a cargo dos Revds. Jaci Maraschin, membro da ARCIC, e do Revmo. Bispo Dom Sumio Takatsu, membro da Câmara dos Bispos. A palestra de

abertura, a cargo do Rev. Maraschin procurava situar os bastidores do trabalho da ARCIC e os pontos polêmicos da discussão. O estudo seguinte, dirigido por Dom Sumio, girava em torno do cap. 1 do documento, analisando particularmente o conceito de autoridade. A condução do estudo do capítulo 2 ficou a cargo do Rev. Maraschin, enquanto a parte final (capítulo 3), ficou a cargo de Dom Sumio. Após cada período de estudo, houve intensas discussões em grupos menores, seguida por uma plenária com todos/as os/as participantes onde relatavam-se as conclusões a fim de comparar as reações dos grupos e apresentar questões aos assessores e, se possível, tirar-se uma posição consensual para compor o relatório final. As questões estudadas pelos grupos seguiram um roteiro enviado pelo escritório da Comunhão Anglicana em Londres, e giravam em torno dos seguintes itens: a) a relação entre Escritura, Tradição e o exercício da autoridade na Comunhão Anglicana; b) a colegialidade, conciliaridade e a função do laicato na tomada de decisões; c) o ministério petrino de primazia universal. Em linhas gerais, a pergunta era: até que ponto o documento O Dom da Autoridade reflete a compreensão anglicana dessas questões?. Na avaliação dos/das participantes foi acentuado o fato positivo de que os encontros proporcionaram muito mais do que estudar um documento internacional. Também serviram principalmente para aprofundar o conhecimento da eclesiologia e reafirmar nossa identidade de anglicanas e anglicanos brasileiros. Cada grupo entregou ao Coordenador do CEA suas reações por escrito. Tendo esse material por base, e procurando preservar com maior fidelidade possível as conclusões dos grupos, redigimos o relatório que segue e o divulgamos para conhecimento, análise e reações de toda a IEAB. A) Sobre a ARCIC 1. Manifestamos, inicialmente nossa alegria com o fato de que, a própria existência da ARCIC já é um grande sinal de unidade e apoiamos a continuidade desse diálogo com a Igreja Católica Romana, destacando que o mesmo deve também se intensificar no nível provincial, nas dioceses e paróquias. 2. Por outro lado, também manifestamos nossa estranheza quanto ao modo como são escolhidos os/as representantes anglicanos/as na ARCIC (por nomeação do Arcebispo de Cantuária). Entendemos que a indicação dos/as membros da Comissão poderia ser feita pelo Arcebispo de Cantuária, a partir de indicação dos sínodos provinciais e referendada pelo Conselho Consultivo Anglicano. Isso garantiria maior representatividade das diferentes correntes teológicas anglicanas na Comissão. 3. Lamentamos, ainda, a falta de representação leiga e feminina nos membros anglicanos da ARCIC. Tal fato depõe contra uma das declarações anteriores da ARCIC, transcrita no prefácio de O Dom da Autoridade - o reconhecimento de que, graças ao seu batismo e à sua participação no sensus fidelium, os leigos constituem parte integral do poder decisório da Igreja - cf. Autoridade na Igreja: Elucidação, 4. 4. Estranhamos também a hegemonia de teólogos do mundo anglo-saxão na ARCIC, e sugerimos que os futuros membros anglicanos/as da Comissão sejam escolhidos, dentre clérigos/as e leigos/as de todos os continentes, observando-se o devido equilíbrio de gênero, etnia e corrente teológica.

Escrituras, Tradição e o exercício da autoridade. 5. Reconhecemos, inicialmente que a autoridade na Igreja é dom de Deus e, como tal, deve estar a serviço da convivência de grupos humanos e da integridade da criação e ser exercida no relacionamento eclesial tendo em vista seu horizonte escatológico do Reino de Deus. A compreensão da autoridade como dom de serviço vem do exemplo do próprio Cristo que não veio para ser servido, mas para servir (Mc 10,35-45) e, para isto, nos deixou um gritante exemplo ao lavar os pés dos seus discípulos (Jo 13). O mesmo Senhor declarou: quem quiser ser o maior dentre vós, seja vosso servo, e se alguém quer ser o primeiro entre vós, seja escravo de todos, pois o Filho do Homem veio, não para ser servido, mas para servir (Mc 10.43-44 a ). Além disso, é autoridade para pregar e curar, abençoar e exorcizar nos moldes de Cristo. Ela se caracteriza como exercício de um poder que deve ter seu fim não em quem o exerce, mas no bem estar do grupo e na salvação de todas as pessoas. Seu lado perigoso está quando o poder deixa de ser exousia (derivado de Deus) para ser despótico. 6. A partir daí, reconhecemos que o documento toca de modo muito superficial neste princípio bíblico ( 9), abandonando-o, posteriormente, em prol de uma visão excessivamente jurídica e centralizada no ministério dos bispos, reforçando a noção de que autoridade tem a ver com o exercício do poder administrativo e decisório. A partir do capítulo 2, toda discussão em torno da autoridade coloca os/as leigos/as, diáconos/as e presbíteros/as na condição daqueles sob os quais é exercida a autoridade na Igreja. Isso se reflete na frase: As decisões tomadas pelo bispo ao desempenhar essas funções possuem uma autoridade que os fiéis têm o dever de acatar e aceitar ( 36). 7. Quanto à relação entre Escrituras, Tradição e autoridade, o consenso das/dos participantes, é que o documento reflete parcialmente a visão anglicana. O ponto crítico é a compreensão do papel do magistério na Igreja Romana, e a tendência à centralização da autoridade jurídica numa única pessoa. Reafirmamos nosso compromisso com o princípio reformado do livre exame das Escrituras, aliado à necessidade de constante incentivo a pesquisas bíblicas e intercâmbio entre estudiosos das Escrituras, a fim de evitar que uma única instância ou pessoa arvore para si o direito de definir qual a interpretação correta dos textos bíblicos. 8. Destacamos também a falta de objetividade no documento no que diz respeito ao conceito de verdade ( 41 a 44). Impera ali um conceito idealista de verdade, que insinua a autoridade do magistério em definir doutrinas. Nesse sentido, discordamos da afirmação de que a Igreja pode ensinar infalivelmente ( 42). 9. Entendemos que infalibilidade é um conceito relativamente recente na história da teologia cristã, e que só adquiriu relevância a partir do século XIX em virtude das reações conservadoras ao racionalismo, à teologia liberal e às teorias científicas surgidas naquela época, especialmente a teoria da evolução. Trata-se de um conceito firmado no Vaticano I para estabelecer a doutrina romana da infalibilidade papal e, mais tarde adotado por grupos protestantes fundamentalistas para afirmarem a infalibilidade da Bíblia. Destacamos que, durante séculos a Igreja prescindiu desse conceito, preferindo referir-se à autoridade da Palavra, ao conceito de indefectibilidade da Igreja e à garantia da assistência do Espírito Santo em situações de crise. Baseados na promessa de Cristo, de que as portas do inferno não prevaleceriam sobre a Igreja, cremos que esta, sim, é indefectível, mas não infalível. Se assim fosse, não necessitaríamos de uma tão

bem elaborada liturgia penitencial. Reconhecemos, a partir daí, a inadequação do conceito de infalibilidade, ao mesmo tempo em que afirmamos nossa fé na autoridade das Escrituras, na assistência do Espírito Santo aos fiéis reunidos em koinonia e rejeitamos qualquer insinuação de infalibilidade do magistério da Igreja ou do ministério episcopal. 10. O diagnóstico feito no documento quanto ao exercício da autoridade na Igreja Romana parece não corresponder à realidade histórica. Torna-se fundamental, discutir até que ponto as decisões do Concilio Vaticano II vem sendo realmente implementadas e observadas na Igreja Católica Romana. 11. Salientamos a necessidade de aprofundar o conceito de Tradição: A compreensão anglicana da Tradição, afirma que essa é um princípio dinâmico. Não se trata de algo fixo no passado que deva ser seguido sem questionamentos. Entendemos que a Igreja ainda está se aperfeiçoando e amadurecendo dia-a-dia no conhecimento e no amor de Cristo e da plenitude da revelação divina. Isso implica em que a Igreja deve estar aberta a questionar interpretações passadas que se fossilizaram como Tradição e que a impedem de ouvir o que o Espírito Santo nos diz hoje. Nesse sentido, questionamos a insinuação bastante nítida em DA, de que a Tradição inclui necessariamente a primazia petrina, tal como entendida pela Igreja Católica Romana. Colegialidade, conciliaridade e laicato 12. O documento oferece várias possibilidades para repensar a forma como a autoridade vem sendo exercida na Comunhão Anglicana. Reconhecemos, por exemplo, que a Comunhão Anglicana, em geral, é mais participativa nos níveis paroquiais, diocesanos e provinciais. Porém, em todos os encontros foi questionado o modo como atualmente é escolhido o Arcebispo de Cantuária desde Henrique VIII até hoje é por nomeação de um chefe de estado e sem a participação de lideranças anglicanas espalhadas pelo mundo. Entretanto, é digno de nota que para a nomeação do atual arcebispo, Revmo Dom Rowan Williams (o 104º na linha sucessória de Sto. Agostinho de Cantuária), foram ouvidos os 39 primazes da Comunhão Anglicana. Entendemos que a prática atual não só fere como também questiona o conceito de autoridade dispersa e reconhecemos que, nesse caso, a Igreja Católica Romana tem mais a compartilhar conosco no que se refere ao processo de eleição do Papa. 13. No tocante a colegialidade e conciliaridade, entendemos ser necessário rever e ressaltar o papel do laicato no exercício compartilhado da autoridade. Sendo essa participação uma das marcas de nossa identidade anglicana, afirmamos que nossas igrejas precisam aprofundar e revisar urgentemente a forma como essa participação vem ocorrendo. Os/as anglicanos/as ressaltam que essa participação do laicato deve ser incentivada nos níveis diocesano, provincial, na preparação da Conferência de Lambeth e na participação do CCA. Ressaltamos ainda a importância da preparação teológica e a socialização dos documentos em todas as instâncias da Igreja, para melhor discussão sobre a vivência do dom da autoridade na Comunhão Anglicana, particularmente na IEAB. 14. Em pelo menos dois encontros (Santa Maria e São Paulo) surgiu no plenário a sugestão de que, para fortalecer a colegialidade e a presença ativa das leigas e dos leigos em todas as instâncias eclesiásticas, a IEAB adotasse o sistema tricameral a partir do próximo Sínodo.

15. Entendemos que deve se buscar, aprofundar e ampliar a participação das leigas e dos leigos na Comunhão Anglicana, mesmo que esta convicção bíblica, teológica e pastoral nos distancie um pouco das Igrejas Católicas (Romana e Ortodoxas), tal como ocorreu, por exemplo, após o início das ordenações femininas. O consenso geral dos/as participantes foi o de que esse é o caminho a seguir, pois desejamos, de fato e de direito, que a Igreja Anglicana seja uma comunidade inclusiva na qual o amor e a compaixão de Jesus nos ensinem a acolher a todas as pessoas, especialmente as excluídas. 14. Em linhas gerais, observou-se que a proposta do documento da ARCIC é insuficiente quanto à sinodalidade e requer continuidade e aprofundamento dos estudos e dos diálogos (ecumênicos e inter-religiosos) para chegar-se a um possível consenso e partilha de Ministérios. Sabe-se que na tradição cristã o/a bispo/a é símbolo da unidade, mas essa unidade não se expressa somente através do ministério episcopal, mas também através das assembléias conciliares e paroquiais que reúnem clero e leigos/as. 15. Ambas as tradições envolvidas neste diálogo têm muito a compartilhar. Entretanto, do mesmo modo e ao mesmo tempo, ambas têm muitos desafios e expectativas a alcançar, como, por exemplo: - para a Comunhão Anglicana, faz-se necessária uma revisão sociológica do conceito e da prática atual de sinodalidade, para que essa possa expressar a vivência de comunhão plena e do sacerdócio real exercido por todo o povo de Deus (I Pe 2,9-10); - para a Igreja Católica Romana, faz-se necessária uma revisão bíblicoteológica do modelo de ministério sacerdotal, considerando o Ministério Feminino à luz da compreensão paulina que condena e abandona toda e qualquer discriminação, pois todos os batizados e batizadas se revestiram de Cristo (Gl 3,25-29) passando a ser um só Corpo e um só Espírito (Ef 4,4-6). Primazia Universal e Ministério Petrino 16. Estranhamos a redação do documento, que coloca a primazia petrina como algo já resolvido e consensual no mundo teológico. Consideramos bastante frágeis as argumentações dos capítulos 46 e 47, que tentam justificar a primazia do bispo de Roma. Observamos que até mesmo boa parte dos exegetas católicos romanos entendem que, pelo menos a Igreja de Jerusalém era liderada por Tiago e não por Pedro. Alguns reconhecem que a comunidade do discípulo amado, mais tarde identificado com o apóstolo João, preservava tradições diferentes do grupo de Jerusalém. Em linhas gerais, entendemos que a identificação do ministério petrino com o conceito de primazia universal, a partir de Mateus 16.16, é um equívoco teológico e afirmamos que a Igreja Primitiva mantinha sua unidade na confissão de Pedro ( Tu és o Cristo de Deus ) e não na pessoa de Pedro. 17. Discordamos da redação final do parágrafo 47, que diz: a recepção da primazia do bispo de Roma... é um dom a ser recebido por todas as Igrejas. Entendemos não haver suficientes razões teológicas para o reconhecimento da primazia do bispo de Roma, embora possam ser alegadas razões históricas. O exercício de jurisdição universal centralizada no bispo de Roma é incompatível com o conceito anglicano de autoridade dispersa.

18. Por outro lado, alguns participantes entenderam que seria possível aceitar a primazia do bispo de Roma, desde que essa fosse apenas uma primazia de honra. A grande maioria dos/das participantes entende que diante de uma proposta de unidade, devemos rediscutir o conceito de primazia universal e a questão do ministério petrino, apontando para um efetivo esforço de rotatividade no exercício desses ministérios. Alguns desses participantes salientaram também que deveria ser adotado um sistema de rodízio entre as grandes tradições cristãs. Desse modo, a cada período de tempo, a primazia seria exercida por um/a representante de uma diferente tradição cristã. 19. Entendemos que há, no documento, dois conceitos que devem ser tratados separadamente, por serem diferentes: o conceito de ministério petrino e o de Primado Universal. O segundo não deriva, necessariamente, do primeiro. Em pelo menos uma das plenárias, afirmou-se que o ministério petrino foi inventado pela Igreja de Roma a fim de justificar seu absolutismo e sua hegemonia sobre as demais igrejas na Europa medieval. 20. Entendemos que, se for necessário instituir uma primazia universal no cristianismo, com vistas ao propósito maior da unidade da Igreja, ainda assim, tal primazia deve ser de honra e de representação colegiada, mas não de jurisdição ou de declaração unilateral de dogmas de fé e, além disso, deve respeitar as Tradições e os contextos sócio-religiosoculturais nativos. 21. Concordamos unanimemente que, mais importante que o ministério petrino é o ministério apostólico e que o reconhecimento de uma primazia petrina por parte da Igreja anglicana só pode ser compreendida como dom de Deus, na medida em que essa primazia exercer não o pretenso poder petrino, mas o real serviço apostólico petrino. Outras observações sobre o documento 22. O documento transpira, nas entrelinhas, a idéia de que a Igreja verdadeira é a Igreja Católica-Romana, na qual reside a totalidade da graça e assistência do Espírito Santo, e que a Igreja Anglicana, como filha rebelde, deve retornar à jurisdição e autoridade romanas. 23. Estranhamos a redação do parágrafo 56 (Questões defrontadas pelos anglicanos), sobretudo a frase os anglicanos têm se mostrado prontos a tolerar anomalias para manter a comunhão. Rejeitamos o uso infeliz dessa expressão, bastante forte, e que não é especificada em nenhum momento: o que significa anomalia, e a partir da qual ponto de vista? A ordenação feminina e o celibato opcional seriam anomalias do ponto de vista romano? Esse item gerou grandes discussões nos grupos e plenárias, pela temeridade de que a aceitação do primado papal significaria um retrocesso no reconhecimento do ministério feminino e na opção matrimonial. 25. Sobre o parágrafo 57 (Questões defrontadas pelos Católicos Romanos): entendemos que os ensinamentos do Concílio Vaticano II sobre o laicato e a colegialidade nunca foram suficientemente implantadas na Igreja Católica-Romana. Observamos também que a Igreja Católica Romana insiste em disciplinar com silêncios obsequiosos os/as teólogos/as que manifestam opiniões discordantes da Cúria e que a prática da interferência de setores do Vaticano em dioceses e Seminários, particularmente na América Latina, não reflete um respeito adequado do exercício e do dom da autoridade através da episcopé.

26. Sobre o parágrafo 61: A prática historicamente desenvolvida pela Igreja Católica Romana não oferece nenhuma garantia de que uma primazia universal irá acolher e proteger a investigação teológica e outras formas de busca da verdade, conforme declara o texto do documento. Nossa compreensão é a de que, enquanto a Igreja Católica Romana mantiver instituições obsoletas e medievais como a Sagrada Congregação para a doutrina da fé, não haverá suficiente liberdade para a investigação teológica. 27. Sobre o parágrafo 62: Questionamos a conclusão de que os Anglicanos estão abertos e desejosos de uma recuperação e re-recepção, sob certas condições claras, do exercício da primazia universal pelo Bispo de Roma. Tal declaração não deveria ter sido feita pelos membros anglicanos da Comissão sem uma ampla consulta às bases (clero e laicato) anglicanas. 28. Em linhas gerais, a maioria dos participantes concorda com as palavras de Hans Küng, teólogo católico romano, no lúcido artigo que escreveu a respeito de O Dom da Autoridade e que serviu como um de nossos subsídios para o estudo. Diz ele: Minha impressão geral é que o documento tenta desvirtuar a Comunhão Anglicana da Via Média para a Via Romana (...) a tentativa é de justificar a ideologia romana da infalibilidade papal e do episcopado, que datam do século XIX, e torna-las palatáveis aos anglicanos. Acrescenta Küng: Apesar de suas boas intenções, o documento presta um desserviço ao ecumenismo 1. 29. Concluímos que, a despeito de suas virtudes e inquietantes questionamentos, o documento não reflete totalmente a diversidade da eclesiologia anglicana ou de nossa saudável tradição de autoridade dispersa, por ter sido redigido com pressupostos romanos e direcionado não propriamente à busca da unidade, mas à capitulação da Comunhão Anglicana à Igreja Católica Romana, através de um Amém dado não à autoridade de Jesus Cristo, mas às pretensões da Cúria Romana. 30. Finalmente, reiteramos nosso apoio à continuidade do diálogo bi-lateral com a Igreja Católica Romana e com outras confissões cristãs e esperamos que o próximo grupo de teólogos/as anglicanos/as que vier a fazer parte da ARCIC esteja mais atento à beleza da diversidade que existe na Comunhão Anglicana, a fim de que seu trabalho possa espelhar com vigor e nitidez nossa teologia batismal, nossa eclesiologia e o valor do laicato em nossa Igreja. A Comissão de redação Rev. Carlos Eduardo B. Calvani Rev. Eduardo Coelho Grillo, ost Rev. Ramacés Hartwig Dom Sumio Takatsu Londrina, 24 de fevereiro de 2003 (São Matias, Apóstolo) Centro de Estudos Anglicanos 1 Küng, Hans, The Via Romana, in The Tablet, 19/06/1999.