Mitos que Identificam o Povo Guarani e seu Reflexo nas Famílias da Aldeia Pirajuí



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Transcrição:

Mitos que Identificam o Povo Guarani e seu Reflexo nas Famílias da Aldeia Pirajuí Valentim Pires Acadêmico do Curso de Licenciatura Indígena Teko Arandu (UFGD/FAED) Profª Me. Nely Aparecida Maciel Orientadora Após a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a equipe de Marechal Cândido Rondon, funcionário chefe da instituição de 1915 até 1928, reservou, demarcou e homologou Guarani e Kaiowá do antigo sul de Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul, oito áreas de terras, em um total de 18.297 hectares; as reservas de Amambai, Amambai (Benjamim Constant) e Limão Verde, de Dourados (Francisco Horta Barbosa), de Caarapó (José Bonifácio), de Tacurú, a Ramada ou Sassoró, de Japorã, a Porto Lindo ou Jacare y, de Paranhos, a Pirajuí, e de Coronel Sapucaia, a Taquapery. Como afirma Antonio Brand: inicia-se, então, com apoio direto dos órgãos oficiais, um processo sistemático e relativamente violento de confinamento destes pedaços de terra (BRAND, 1995, p. 8). O objetivo do SPI, naquela época, era reunir todas as famílias Guarani na reserva que estivesse mais próxima. Na aldeia Pirajuí aconteceu exatamente isso, muitas famílias que viviam no seu tekoha tradicional foram expulsas para poder morar reservados na reserva de Pirajuí. Algumas das terras tradicionais daquela época que foram deixadas pelos indígenas devido à violência e à pressão dos grileiros de terra, como, Potreiro Guassu, Ypo i, Yvykua Rusu (aldeia Paraguassu). Para sair de suas terras, as famílias recebiam promessas de que na reserva iam ter remédios, escola, igreja, proteção e segurança. Ao lado da reserva se instalaram os missionários alemães que prestavam serviços na área da saúde e educação, eles pregavam a religião do não-índio para índio. Os membros das famílias doentes recebiam remédios e tratamento dos missionários e em troca as famílias participavam dos cultos religiosos nos dias de domingo e quartafeira. As doutrinas dos missionários era ler a bíblia, fazer orações, cantar, ensinavam os indígenas chamar as pessoas que não eram irmão de irmão, a deixar os rituais tradicionais indígenas para se tornar um índio convertido ao cristianismo. Assim as famílias poderiam deixar de ter espíritos selvagens e virar gente civilizada.

As famílias eram aconselhadas pelos missionários a não participar do Jeroky Takua (origem do ser) e a não acreditar nas histórias dos mais velhos. Toda crença da tradição Guarani, as histórias contadas pelas pessoas mais velhas da família era julgada pelos missionários como o caminho da perdição que levava ao inferno, onde o sofrimento da alma ficava eternamente na chama do fogo. Os missionários viam que existia uma necessidade de alfabetizar os adultos e jovens indígenas para praticar a leitura da Bíblia na igreja ou em casa. Houve então uma preocupação com essa alfabetização, durante as aulas faziam desenhos a partir das histórias bíblicas. As famílias aprendiam hinos religiosos para cantar em casa à noite e nos cultos da igreja, fazer orações e pedir a Deus para abençoar todos da aldeia. Tinham a preocupação de dominar a língua Guarani para facilitar o trabalho. Para tanto, traziam pessoas que dominavam a língua Guarani para conversar com os índios e transmitir o máximo que pudessem da palavra de Deus e ensinar as famílias como ser um bom evangélico. E os conhecimentos tradicionais muitas vezes e por muitos indígenas foram deixados de lado. Os conhecimentos tradicionais foram repassados oralmente para mim pela minha avó Sebastiana Morales 1, falecida no ano de 1991, aos noventa e cinco anos de idade. Todos os dias meu pai me levava em sua casa de manhã ou de tardezinha e pedia para ela me contar as histórias de Ñande Ypy (origem do ser). Nessa época, eu, Valentin, tinha entre cinco a seis anos. Minha avó costumava fazer um fogo para assar mandioca e batata. Próxima ao fogo, deitada numa rede, tomando chimarrão com meu pai e meu avô, ela contava a origem dos seres humanos. Imaginava na minha cabeça um espaço, lugares, pessoas, fortemente marcados pela imaginação. Minha avó contava as histórias para todos da família ouvir. E quando fazíamos perguntas, ela respondia tudo. Se pedíssemos para repetir a história, ela começava tudo de novo. Acredito que foi e continua sendo importante fortalecer a história sobre o ypy nas famílias, porque é a identidade do povo Guarani e as pessoas ficam fortalecidas sabendo da origem do principio da vida do povo Guarani. Ñande Ypykue voi oha anga jahecha haguã (O nosso Deus já fazia tudo o que ia acontecer nos dias atuais). 1 Sebastiana Morales é avó paterna de Valentim Pires (Avá Guyrapa Mirim), ela falecida no ano de 1991. Durante sua vida educava oralmente as crianças, jovens e casais da família contando histórias sobre o Ñande Ypy (origem Guarani). 2

Esses ensinamentos fazem parte da minha vida até os dias de hoje. Eles foram de suma importância para a construção da minha identidade. Penso que nas casas dos patrícios e nas escolas precisa acontecer o fortalecimento dos valores Guarani, tirando proveito do ensinamento através do ypy; com isso, poderíamos estar mais fortalecidos para enfrentar os desafios nos dias atuais. Depois que eu tinha recebido ensinamento da história do ypy, estudei durante doze anos fora da aldeia, nas missões missionárias onde recebi outro tipo de ensinamento. Nesse tempo, guardei os valores que aprendi com minha avó. Só depois de 1991 quando o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) realizou na cidade de Dourados um curso sobre direitos dos povos indígenas, que começou a despertar em mim a importância dos ensinamentos que eu tinha recebido antes de sair de perto da família para estudar, percebi o significado e o valor dos ensinamentos para o meu povo e para minha família. Isso me marcou muito criando em mim força emocional e espiritual, potencial psicológico e respeito pela natureza. A partir da história mítica, a minha avó já explicava o presente e que todos os problemas atuais têm origem nos princípios. Não era somente eu que escutava a minha avó, tinha outras pessoas, como, por exemplo, meus tios, tias e meus primos ouvindo histórias do Ñande Ypy (origem do ser). A família se juntava na casa da minha avó para ouvir a voz dela contando historias do Ñande Ypy. As forças sentimentais de respeito eram fortes. Além das histórias que ouvia de pessoas da minha família, também ouvi a mesma história de pessoas de outras famílias. Essas histórias, ouvidas através de várias famílias, levam-me acreditar que isso é uma força invisível de cada família e do povo Guarani no significado da nossa identidade. Benites: Sobre esse fato de ensino de saberes ypy, é importante citar a escrita de Tonico Em geral, no seio de família extensa Kaiowá, a avó e o avô narram frequentemente aos seus filhos (as) e netos (as) as suas próprias histórias, suas estratégias e sua experiência de vida passada em cada circunstância histórica. Todos os acontecimentos relevantes do passado são narrados de modo repetitivo aos seus membros por meio de ensinos orais. Descrevem em detalhes os fatos significantes que ocorriam no seu território (tekoha guasu) tais como: a chegada dos não-índios (karai), os conflitos interétnicos, a ocorrência de eventos rituais profanos, religiosos, etc. Uma das funções fundamentais de líder doméstico interno da família (teko laja rerekua), líder político (mburuvicha) e xamã (ñanderu) de família é realizar a transmissão de seus 3

saberes e sua própria história aos seus integrantes neófitos (BENITES, 2009, p.44). Conforme a afirmação do autor, os ensinamentos acontecem oralmente até os dias de hoje, antes e depois da criança na escola, por entre os membros da família, isto é, as crianças e jovens não são educadas somente na palavra, mas na vivência. Outra descoberta foi sobre a língua Guarani e sua importância na questão da identidade do meu povo. A língua indígena Guarani hoje é falada nos países colonizados pelos europeus como Paraguai, Bolívia, Uruguai. A nossa língua Guarani é uma das verdadeiras línguas brasileiras. Está no ventre do espírito, ela não foi criada nem pode ser destruída. A nossa língua é a força movida pela energia da luz espiritual que está dentro da gente. E através dela conseguimos contar, conquistar e viajar no passado e futuro. A língua Guarani é a mãe verdadeira de parte desse país que se chama Brasil. Ela é a identidade Guarani que não morreu, pois está viva no nosso meio, e os mais velhos contam as histórias através dela e os ensinamentos permanecem vivos. Como já sabemos, a base fundamental de uma família Guarani está na história do Ñande Ypy, pois sabendo sobre as origens do universo, as famílias Guarani ficam preparadas psicologicamente para os desafios, as forças de justiça, a solidariedade, o bom senso moral, a paciência e o respeito pela natureza que são conhecimentos explicados às famílias desde o principio do Ñande Ypy, que os Guarani mantém até os dias de hoje. O mito Guarani é carregado de sentimentos, portanto ele ensina muitas coisas, como, alegria, raiva, tristeza, luta, dialogo, conciliação, arrependimento. Esses sentimentos estão intimamente ligados nas famílias Guarani atual. O Ñande Ypy é a fonte da força Guarani, nela é encontrada consolo, coragem, firmeza e forças espirituais para vencer os desafios e conquistar sua resistência na família. O mais idoso se sente bem e sadio espiritualmente ao ensinar sobre Ñande Ypy. Existem indígenas que acreditam no Ñande Ypy, mas não levam esses ensinamentos a sério e nos momentos mais difíceis procuram os idosos que sabem das rezas. O idoso faz o atendimento espiritual, mas faz uma cobrança para a fé dessas famílias. Atualmente a escola faz parte do povo Guarani da aldeia Pirajuí, é dada uma importância para os ensinamentos transmitidos na escola pensando no fortalecimento da 4

identidade Guarani. A escola é um espaço para aprender a cultura da escrita, no entanto esse conhecimento deve ser um conteúdo que tenha significado nos ensinamentos Guarani. A escola indígena tem obrigação de trabalhar os conhecimentos indígenas. O mito que fala sobre Ñande Ypy é a raiz de toda educação Guarani, se esses ensinamentos forem transmitidos pela escola, vai haver o fortalecimento do povo Guarani. Para dentro das salas de aula os professores devem trazer as pessoas que sabem histórias do Ñande Ypy para contar aos alunos. Nessa educação tradicional do Ñande Ypy, vamos encontrar o processo de aprendizagem, metodologia tradicional, os problemas e os desafios para encarar a vida. Para comprovar afirmações da importância do mito nos ensinamentos dos Guarani relatamos aqui minhas experiências da escola não indígena e indígena: Em 1969, nasci na terra tradicional de Kapi i, hoje chamada de aldeia Potreiro Guassu. Nessa localidade, minha família foi pressionada pelo órgão do governo, a FUNAI e pelos missionários para abandonar a terra, por isso, viemos morar nas terras da reserva Pirajuí. Nessa época, eu tinha oito anos de idade. Minha família veio morar nessa reserva criada pelo Marechal Cândido Rondon, em 1928. E foi nessa aldeia que assisti às aulas na escola da Missão Evangélica Unidas de 1ª a 4ª série. Os professores eram alemães que mal falavam o português e, aos poucos, os missionários foram colocando professores falantes da língua indígena Guarani. As famílias eram aconselhadas pelos missionários a colocar seus filhos na escola para aprender a ler e escrever. Terminei a 4ª série em 1982, fui para o internato da Missão Caiuá na cidade de Dourados para estudar com vários colegas da aldeia. Para estudar fora da aldeia, passei por uma experiência de isolamento da minha família; somente via os familiares nas férias, de seis em seis meses. Em 1986, terminei a 8ª série na escola Francisco Meireles; escola da Missão Caiuá. Após esses estudos, fiquei um ano trabalhando de ajudante de mecânico em Dourados numa oficina com o senhor Daniel da Missão Caiuá. Diariamente saíamos da Missão para a cidade no local onde ficava a oficina de carros. Em 1987, voltei para aldeia Pirajuí e durante dois anos trabalhei em algumas fazendas do Paraguai, derrubando mato e fazendo a limpeza das capoeiras. Em 1990, o capitão da aldeia Pirajuí Otávio Pires, me chamou para uma reunião junto com a comunidade e me convidou para trabalhar como professor numa escola da aldeia. 5

Naquele momento, havia apenas uma única sala de aula, com paredes de madeira. Aceitei o pedido da comunidade e iniciei os trabalhos. Lembro-me de dois nomes que me apoiaram nesse novo trabalho, os senhores Luis Vera e Estanislau Vera, pois esses patrícios me apoiaram moralmente perante a comunidade. Nesse momento, aconteceu o curso de Formação Continuada para professores através do CIMI em Dourados. Participei também de vários outros cursos. Aconteceu um curso que não me lembro o ano, mas o curso era de Ensino Fundamental diferenciado, mas não foi reconhecido oficialmente pelos órgãos governamentais e não teve sucesso e continuidade. No final da década de 1980, iniciou-se o Encontro de Professores Indígenas Guarani e Kaiowá que vem tendo continuidade com a realização do evento todos os anos. Após uma grande luta dos Guarani e Kaiowá, que durou uma década, reivindicando um curso de Ensino Médio específico para Guarani e Kaiowá, foi aprovado no ano de 2000 o curso de magistério indígena em nível médio, que foi batizado na língua Guarani como curso Ará Verá (dia brilhoso). Fui aluno desse curso e concluí em 2003. Em 2006, iniciei a primeira turma de curso superior da Universidade Federal da Grande Dourados denominado Licenciatura Intercultural Indígena, batizado como curso Teko Arandu (viver com sabedoria). Estou concluindo esse curso agora, no ano de 2011. Durante essas experiências que acabei de relatar, a escola civilizadora nãoindígena não conseguiu apagar da minha memória o que aprendi com os mais velhos dos ensinamentos tradicionais. Carreguei por muitos anos os valores Guarani dentro de mim sem poder compartilhar e socializar com outras pessoas, pois a escola não-indígena não dava oportunidade de expressão aos meus conhecimentos tradicionais e muito menos se interessava por eles. A partir do momento que fui despertado para os conhecimentos e valores que estavam adormecidos em mim, comecei a sentir a força tradicional Guarani. A escola não-indígena não estava para fortalecer o Guarani, mas para enfraquecer nossa cultura. No momento desse trabalho compreendo que fortalecendo a escrita através da memória, o conhecimento tradicional ganha força entre as famílias, conseqüentemente o povo Guarani passa a valorizar mais sua cultura. 6

A partir de disto passo a relatar as histórias do Ñande Ypy que aprendi desde criança e que guardei por um tempo quando me deparei com pessoas que não davam importância a esses valores, mas isso esteve, estava e está na minha vivência. A narrativa aqui apresentada é nos dia de hoje repassada dentro da minha família. Tive oportunidade de ouvi-la várias vezes, desde a minha infância, bem antes de entrar na idade escolar. Desde o inicio quando Ñande Ru (Deus) em forma de ar limpo (espírito) e através do poder do seu pensamento ele se transformou num homem carnal, iniciou aí o principio do livre pensar que existe até hoje. Depois que se transformou em homem carnal o ar limpo (veravy - espírito) permaneceu nele e é o ar que o homem respira até hoje. Quando foi transformado em avá (homem) ele precisava de uma companheira e Ñande Ru (Deus) imaginou uma mulher no seu pensamento e a transformou em uma mulher carnal para conviver com ele; era o começo de uma família para o Guarani. Ñande Ru pela força de seu pensamento pensou numa oga (casa) coberta de capim e uma tataindy y (altar) para fazer jeroky (reza) e tudo isso foi realizado. O Ñande Ru (Deus) engravidou a mulher (kuña) através do seu pensamento sem que ela fosse tocada. O Ñande Ru (Deus) saiu de casa, falou para sua mulher que ia fazer uma roça e plantar milho, kumanda (feijão de vara). Ele foi e não demorou muito tempo para voltar da roça e, após algumas horas, falou para sua mulher que podia ir na roça pegar milho verde e kumanda. E a mulher, ñandesy (nossa mãe), admirada pelo pedido de ir à roça buscar os alimentos da produção que Ñande Ru havia ido plantar há pouco tempo, começa a questionar Ñande Ru. Nesse momento inicia a desobediência da mulher. Depois de alguns segundos a mulher foi na roça, quando ela chegou viu as plantas quase maduras. A mulher pensou que era verdade o que o esposo tinha falado para ela. Enquanto ela estava na roça, Ñande Ru colocou akã guaa (coroa) na cabeça e pegou o seu mbarakã e saiu de casa fazendo três voltas ao redor da mesma dançando e cantando. Ao completar as voltas, apareceu para ele uma estradinha pequena com areia branca e dois lados cheios de flores de vários tipos. Ñande Ru seguiu a estrada e foi cantando e dançando com seu mbaraka. Quando a mulher volta da roça, ele não esta mais em casa, e ela viu os rastros dele e seguiu a estrada. Durante a caminhada pela estrada, a mulher, grávida de dois filhos (gêmeos), conversava com eles ainda dentro de sua barriga. Perguntava para seus filhos onde seu pai foi? E os dois respondiam tudo certinho. No caminho, as crianças na barriga da mãe 7

pediam flores e a mãe pegava para elas. Quando a mulher estava colhendo a última flor, levou uma ferroada de maribondo e deu soco na sua própria barriga, depois disso as crianças gêmeas da barriga não contaram mais nada para sua mãe sobre seu pai, mesmo com a insistência da mãe, elas não diziam mais nada. A mãe continuou andando e chegou num lugar onde Ñande Ru tinha entrado numa estrada estreita. Ela perguntou novamente para os seus filhos: por onde será que o seu pai foi? E as crianças não responderam mais nada. Ela não viu o sinal de entrada que o Ñande Ru fez e seguiu para a estrada errada. A mulher do Ñande Ru seguiu a estrada, e nessa estrada havia dois lados e uma guarda de pássaros, de um lado tinha um papagaio e, do outro lado, jacu. Logo quando viu a mulher grávida passando por lá, o papagaio avisou uma dona velha que é ovó do aña (satanás), que estava sozinha, os outros da casa estavam caçando no mato. A mulher do Ñande Ru (Deus), depois de muita andança, chegou cansada à casa do aña (satanás). Logo a mulher velha percebeu e recebeu com maior sorriso a mulher do Ñande Ru (Deus). Ela sentou-se no chão, já cansada, e a mulher velha (satanás) trouxe para ñandesy banana e fruta silvestre para ela comer, ñandesy estava com muita fome. Enquanto ela estava matando a fome, a mulher velha (satanás) preparou um ña ữ (panela grande) e capturou a mulher do Ñande Ru (Deus). Enquanto isso, chegaram o resto dos satanases que estavam caçando. E a mulher velha (satanás) sorriu e falou: vocês foram caçar e eu aqui em casa tive sorte e peguei essa mulher grávida no meu panelão. Eles levantaram a tampa do panelão e mataram a mulher do Ñande Ru (Deus) e tiraram da barriga dela dois meninos. A mulher velha (satanás) pegou as duas crianças e falou: essas vou assar para eu comer. Depois, ela fez um espeto e queria enfiar no corpo das duas crianças, como as crianças estavam lisas, ela não conseguiu. Ela fez uma fogueira e jogou-as na brasa. As crianças apagaram o fogo. Ela desistiu de assá-las e falou: vou colocar no meio do algodão e ela colocou. Depois de algumas horas, as crianças estavam se movimentando e a mulher velha foi ver. Ao ver as crianças, admirou a beleza delas e resolveu deixá-las crescerem. E pensou que após tornarem-se adultos, poderiam ser bons caçadores. As duas crianças cresceram e eram muitos inteligentes. Eles matavam aves e trazia para a dona velha (satanás) comer assado. As crianças se tornaram boas caçadoras e não deixavam a sua dona passar fome. Num certo dia, eles foram num lugar que a 8

dona velha proibia e achou um papagaio que falava, um dos meninos apontou uma flecha no papagaio e o papagaio começou a falar para eles: vocês estão dando de tudo para a dona velha, essa velha que matou a mãe de vocês. Se não acreditam no que estou dizendo, vão naquele matinho, pois lá estão os ossos da mãe de vocês. Em seguida, eles foram e acharam os ossos de sua mãe. Um dos meninos montou os ossos da sua mãe em forma de esqueleto. Enquanto faltava um pouquinho para completar o esqueleto da mãe, o outro menino pulou para mamar e derrubou tudo de novo. Era o inicio do sol e da lua. O mais velho, o sol, e o mais novo, a lua. Sabendo de tudo o que tinha acontecido com a sua mãe, eles voltaram na casa da dona velha. A dona ficou brava por não trazerem nada de caça. As duas crianças falaram para ela que iam a outro lugar para caçar, e eles foram e planejaram acabar com os satanases. O sol e a lua foram a um lugar distante e fizeram vários tipos de frutas silvestres. Os meninos trouxeram um pouquinho de frutas para casa e os satanases experimentaram das frutas e perguntaram onde achar mais dos frutos que eles foram buscar, pois acharam os frutos gostosos. O sol e a lua já tinham preparado uma ponte para passar. Todos os satanases foram, uma estava grávida e indo bem atrás dos outros. O sol estava de um lado e a lua do outro. Quando os satanases iam passando, a lua virou a ponte e imaginou que o sol tinha dado sinal e todos os satanases se afogaram, só a última que estava passando, que era a mulher grávida, conseguiu nadar e voltou no lugar. Logo que ela saiu da água, a criança nasceu era uma onça. Princípio da onça. E a partir disso, o sol e a lua se separaram um do outro, um dos meninos ficou para clarear o dia o sol, e o outro menino para clarear a noite a lua. A história continua... a partir desse momento o mito Ñande Ypy não pode ser relatada por completo na língua portuguesa; pois cada família sabe uma parte dessa história. A partir do momento que o Ñande Ypy imaginou uma mulher para ele e a transformou em carnal para ser sua companheira, desde essa época até os dias atuais, a família começa depois do casamento. É uma instituição natural de todos os seres humanos. A união de um homem com uma mulher forma uma família. Nesta instituição existem regras, acordos, divergência, mas sempre para o bem estar da casa. A família para o Guarani dessa aldeia é a continuação do mito explicado e contado pelos mais idosos. Dentro da casa da família Guarani, sempre existe uma fogueira para as pessoas se aquecerem, tomar chimarrão, fazer comida, contar histórias. O fogo dá sinal à família, pois ele transmite mensagens de previsões para as famílias. 9

A casa de uma família Guarani é um lugar sagrado, um lugar de descanso e de conforto. A família se sente livre e segura em sua própria casa mantendo responsabilidade compartilhada entre pai, mãe e filhos. No lugar da casa da família, existem forças que movem a vida e o sorriso. O pai e a mãe gostam e amam seus filhos, cada pessoa da família se sente importante; a família é algo sagrado. O pai e a mãe gostam de ver os filhos sorrindo e saudáveis, contribuindo para o bem estar da casa. A mãe gosta de amamentar os filhos depois de nascer, gosta de apreciar e beijar os filhos e carrega os filhos nos braços para onde for, é função da mãe cuidar e ensinar aos filhos. A Mãe e o pai de família Guarani são carregados de paixões e amores pelos seus filhos. Eles os ensinam dar os primeiros passos, a andar e a falar as primeiras palavras na língua Guarani. O lugar para construir a casa é escolhido em qualquer parte da aldeia. Depois da escolha do terreno, o casal limpa o local para construir a casa. O homem vai procurar capim, cipó, madeira, serna para levantar a casa, a cobertura é feita de capim e as parede de pau. A casa Guarani tem mais de uma porta para sua estratégia de defesa, quando o Guarani vai construir uma casa, ele pensa na natureza, porque ela oferece de tudo segundo os mais idosos. A estrutura da casa não é alta, é calculado na altura do casal que vão morar nela e também pensando na prevenção contra a tempestade. O casal de uma família depende muito da fé e da natureza: rios, matos, campo e de animais. Os rios servem para pescar os peixes para alimentar a família. Os matos servem para caçar e procurar remédio de vários tipos. Existem animais que servem de alimento e remédio. O campo e o mato são muito importantes para a família Guarani. Ao longo do final do século XX, várias famílias que deixaram sua terra tradicional vieram morar nesta reserva indígena Pirajuí, morando bem perto uma das outras. Essas famílias juntas em Pirajuí são entendidas como uma comunidade indígena da aldeia Pirajuí, assim é denominada, sobretudo pelos agentes dos órgãos dos governos como a FUNAI, FUNASA, prefeitura, Estados, etc. Atualmente, cada casal ou família nuclear Guarani omendava ocupa uma micro área da sua família extensa. Diante desse fato vivido pelas famílias Guarani, concluí que essa reserva/aldeia não foi demarcada e delimitada para as famílias Guarani ter uma vida digna. Nessa aldeia, não foram garantidas as sobrevivências culturais do Guarani, mas mesmo assim, apesar dessas dificuldades citadas, cada família procura seu jeito de preservar e transmitir os saberes tradicionais Guarani. 10

Na reserva Pirajuí, não tem mais os recursos naturais que existiam antes, como variedade de árvores, sapé, cipó, frutas naturais e plantas medicinais. Antigamente, para construir uma casa tradicional, era preciso elementos da natureza como: capim, tronco de árvores especiais e cipó hun. Estes materiais não se encontram mais nessa aldeia. Acabou tudo. Portanto, as novas gerações da família Guarani da aldeia Pirajui sofrem muito neste novo momento histórico. Hoje, as crianças que nascem nessa aldeia, praticamente já estão condenadas a não ter mais condições de vivência digna como vivia os seus antepassados no território tradicional. Essas situações são resultados de políticas de governos anteriores que continua sendo cultivado até hoje pelo governo atual do Brasil. Diante da falta desses recursos naturais dentro da aldeia Pirajui e a necessidade geral existente, os membros das famílias responsáveis diretamente pelas crianças, principalmente o pai e a mãe estão sempre preocupados, quase diariamente, fazem quaisquer atividades para garantir a sobrevivência atual. A maioria dos pais vai atravessando o limite da aldeia para coletar os elementos da floresta, tais como as frutas, folhas, raízes para usos medicinais, para sobreviver culturalmente e construir a suas casas tradicionais, etc. Nessa nova situação, as pessoas da aldeia, por não ter mais os recursos para as famílias sobreviver, os pais e mães juntamente com as crianças se arriscam de noite para pegar objetos de construção de casas e plantas medicinais fora da aldeia. Da mesma forma, hoje as famílias praticam clandestinamente e escondido suas culturas e tradições, como a cultura de caça, pesca, coleta de remédios e frutas tradicionais em torno da aldeia Pirajuí, buscando tanto do lado do Paraguai como do lado do Brasil. Hoje, o território tradicional Guarani localizado em torno da reserva Pirajuí é considerado pelos fazendeiros e pelo poder político como sua propriedade particular ou fazenda, proibindo caça e pesca dos indígenas no seu próprio território antigo. Diante dessa situação descrita, constatei que os novos membros dessas famílias reconhecem bem que esse amplo território Guarani foi tomado violentamente de várias famílias no começo do século. Gostaria de destacar que, historicamente, as famílias dependiam, e ainda dependem desse território tradicional, dos rios, da caça, dos recursos do mato e do campo para viver como povo Guarani. Por essa razão, os membros de várias famílias se articulam e se mobilizam para recuperar uma parte desse território como no caso das famílias do Potrero Guasu, Ypo i, etc. É notável que os mais jovens das famílias 11

Guarani da aldeia Pirajui já sabem que a maior parte desse amplo território se transformou em fazendas. Essas novas gerações das famílias estão cientes de que a reserva de Pirajui demarcada não foi e nem é suficiente para atender as demandas das culturas Guarani e todas as necessidades das famílias. Por isso, as lideranças das famílias grandes se articularam e já reocuparam dois territórios, tais como tekoha Potrero e Ypo i. Esse fato tem ocorrido na última década, envolvendo diversas autoridades do Brasil. Hoje, para sobreviver, as famílias passam a depender dos programas sociais, das cestas básicas de alimentos, bolsa família doadas pelo governo do Estado do MS. Além disso, a maioria dos idosos depende da sua aposentadoria, que é um salário mínimo por mês. Esses aposentados (avós e avôs das famílias) fazem compra no comércio do Paraguai e Brasil. Essas pessoas beneficiadas contraem muitas dívidas, isto é, eles devem tudo nos mercados na cidade de Paranhos-Brasil e Ypehu-Paraguai. Os comerciantes paraguaios (patron dos aposentados Guarani) geralmente se aproveitam da situação difícil da família Guarani. Eles vendem os produtos ou mercadorias de qualidade inferior aos indígenas com preços altíssimos, fato esse que nunca foi fiscalizado pelo governo brasileiro. Nota-se que todas essas situações vividas pelas famílias na aldeia Pirajuí foram ocasionadas pelas destruições da floresta e do campo natural. É importante observar e destacar também que as famílias Guarani pesquisadas procuram sempre constituir a vida em família de acordo com a história ou mito de origem da família Ñande Ypy que fundamenta a origem da família Guarani, orientando a forma de ser e viver autêntica da família Guarani, isto é, o jeito de se comportar entre as famílias procuram praticar e manter os membros das famílias unidas, visitando-se com frequência, principalmente não abandonando um ao outro no momento de crise, pois os pais e as mães ensinam as crianças nas práticas para distribuir os alimentos e não acumulá-los e assim por diante. Essa forma de educação familiar ocorre em segredo; os não índios não têm conhecimento do exemplo da família de origem Guarani Ñande Ypy. Muitos idosos ou chefes tradicionais das famílias aconselham os jovens em diferentes ocasiões para que respeitem os guardiões das famílias, casas, roças, matos, rios, sol, animais, vento, ar, estrelas e etc. Visto que todos estes seres e elementos possuem seus guardiões jará desde origem Ñande Ypy. Segundo a história de origem da família Guarani Ñande Ypy (mito), até hoje, esta família se encontra vivendo de acordo com a origem de vida no território do 12

universo de cosmo Guarani. Essas narrações míticas afirmam que cada família possui amplo território exclusivo no cosmo onde tem todos os recursos naturais, e cada item dos recursos tem que utilizar sagradamente, respeitando o guardião para não ser punido por esse guardião, devido ao desrespeito. Assim, o ideal é ser e viver aqui na terra de forma igual a essa família de origem Ñande Ypy. Os idosos ou lideranças das famílias que retomaram o território narram dessa forma similar à explicação das famílias de origem Ñande Ypy. Defendem que o território tradicional tem que ser recuperado por cada família, portanto é preciso que as autoridades federais reconheçam que os agentes do SPI cometeram grandes erros ao delimitar pequeno espaço como o da reserva Pirajuí para confinar várias famílias Guarani, contrariando o modo de ser e viver da família de origem Ñande Ypy. Pretendo também descrever resumidamente aqui o importante processo educativo da família Guarani desenvolvido durante o velório de funeral Guarani. Várias vezes tanto na aldeia Pirajuí, quanto em outras aldeias, observei que durante o velório de funeral acontece diversos ensinamentos vitais entre os membros de cada família. No velório, é um momento em que os jovens e crianças de cada família são educadas para se comportar adequadamente com o espírito angue do falecido, ao mesmo tempo com os parentes vivos do falecido. Dessa forma, este momento de tristeza profunda e perplexo serve também para praticar e transmitir o princípio de respeito entre os espíritos do corpo vivo e do corpo falecido dos integrantes de cada família, exigindo rigorosamente atitude de respeito mútuo, controlando o sentimento e comportamento inadequado hekope yguava das famílias. Cada família tem seu processo próprio de educação e suas histórias específicas; pois cada família veio de localidades diferentes para morar na aldeia Pirajuí. Existe a preocupação por parte de alguns educadores da escola em contar uma única história de vida dos Guarani sobre Ñande Ypy. Portanto, as famílias da reserva Pirajuí têm enfrentado várias situações difíceis; porém não relatei todas as situações problemas, mas uma situação que envolve a todos é a questão do território que leva a acontecer os demais problemas. O problema de falta de espaço contraria os ensinamentos do Ñande Ypy; onde existem espaços para a casa, roças, matas, animais e etc. Quando pensei em escrever sobre o tema Mito que Identifica o Povo Guarani e seu Reflexo na Família da Aldeia Pirajuí fiquei preocupado com a identidade familiar 13

que aos poucos sofrem impactos com as influências dos não-indígenas. O mito Ñande Ypy de origem do ser Guarani aos milhares de anos fortaleceu o povo Guarani dando resistência desde o primeiro contato com a sociedade não-indígena. O povo Guarani sofreu imposições e humilhações e por muitos anos fingiu se calar. As pessoas mais idosas sabiam da importância do mito Ñande Ypy que guardava em sua memória e transmitiam os conhecimentos às crianças, aos jovens e aos adultos Guarani escondidos da sociedade não-indígena; pois essa sociedade não achava importância nesse mito; acreditava ser uma crença diabólica. A educação transmitida pela escola não-indígena não dava importância à identidade do povo Guarani, como para sua língua, história e conhecimentos em gerais. O que se ensinava não estava ligado intimamente aos sentimentos das pessoas. Já o Guarani transmite conhecimentos tradicionais. As crianças e jovens para quem foi ensinada a tradição da cultura Guarani praticada em casa, a escola civilizadora não conseguiu apagar. Na escola indígena os professores têm que explorar muitas coisas da pedagogia tradicional Guarani do Ñande Ypy. Ela tem força de conhecimentos e facilidade de aprendizagem para as crianças e jovens da escola indígena. Voltando-nos para a história da reserva Pirajuí, ela foi demarcada em 1928 por não indígenas através do Serviço de Proteção ao Indígena (SPI). Depois desta pesquisa, pudemos compreender que a reserva foi criada estrategicamente para que várias famílias que viviam nas suas terras tradicionais localizadas próximas dessa reserva mudassem para esse pequeno espaço gerenciado pelos agentes do SPI, deixando seus territórios tradicionais aos grileiros de dois países (Brasil e Paraguai). Na seqüência, foi isso que de fato aconteceu aos poucos. Hoje, pudemos observar que várias famílias que abandonaram suas terras tradicionais estão morando na reserva Pirajuí. Constatamos que essas famílias deixaram as suas terras tradicionais por diversas pressões externas. Essas pressões para sair das terras eram incentivadas e realizadas pelos próprios agentes do SPI, missionários e grileiros das terras da época. Identificamos que os grileiros desses territórios Guarani foram os não-índios que vieram tanto do Sul do Brasil quanto do país Paraguai. Esses não-indígenas foram sendo os grileiros das terras Guarani situados na faixa de fronteira dos territórios de Potrero Guassu, Ypo i, Arroio Kora, entre outros. Os mais idosos desses territórios citados contaram que no final da década de 1940, muitos paraguaios vieram fugindo da revolução ou da guerra que ocorria naquele país. Por isso, vieram diretamente se esconder no território Guarani, já 14

ocupando uma parte. Ficou claro que os não-indígenas do Brasil e do Paraguai que vieram se apropriar das terras Guarani eram as próprias autoridades ligadas aos poderes partidários de cada país, como exemplo do Brasil: os coronéis, agentes policiais e etc. Segundo as histórias contadas pelos mais idosos Guarani que recepcionaram os paraguaios naquela época em seus territórios, esses fugitivos do Paraguai haviam sido filiados ao partido liverar que na época se encontravam em conflito bélico e armado com partido colorao. As narrações desses Guarani idosos mostram que já naquele período iniciou a organização criminosa temida e armada na fronteira, praticando ações criminosas de todas as ordens. Nesse contexto, as primeiras vítimas foram diretamente famílias Guarani desses territórios, visto que sofreram as expulsões violentas das suas terras que vinham sendo legalizadas em nomes dos grileiros citados. De todas as formas, até hoje os territórios Guarani entraram em disputas entre o povo Guarani e os pistoleiros vinculados aos poderes dos grileiros das terras e organização dos traficantes, dominando as famílias Guarani com mãos armadas, enquanto que as vítimas das famílias Guarani reagem com seu ritual e sua fé tradicional de modo invisível, jeroky takua rupive isto é, lutando com apoios dos seres imortais e invisíveis pela suas terras. Dessa forma, até mesmo defende a fronteira criada por poderes de conflito dos não-indígenas. Em relação ao movimento Guarani atual pela recuperação do território, concluímos que nessa situação histórica difícil, encontram-se as lutas dos conjuntos das famílias Guarani na faixa de fronteira do Brasil com o Paraguai. Referências: Fonte Oral: História Oral transmitida por Sebastiana Morales (avó paterna de Valentim Pires). Fonte Bibliográfica: BENITES, Tonico. A Escola na ótica dos Avá Kaiowá: impactos e Interpretações indígenas. 2009. 144f. Dissertação de Mestrado PPGAS do Museu Nacional UFRJ. Rio de janeiro, Museu PPGAS do Museu Nacional - UFRJ. Rio de Janeiro. BRAND, Antônio Jacó. O impacto da perda da terra e correspondente confinamento sobre a tradição Kaiowa. In: V ABA (MERCO)SUL. Comunicação. Tramandaí-RS, set./1995, 17 p. 15