CRIME DE TORTURA 1. TORTURA NA ANTIGUIDADE, IDADE MÉDIA E IDADE MODERNA



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Transcrição:

CRIME DE TORTURA 1. TORTURA NA ANTIGUIDADE, IDADE MÉDIA E IDADE MODERNA

A Tortura na antiguidade, era utilizada como meio de prova, visando obter a confissão do supliciado, que constituía a prova plena, para a aplicação da pena. Embora estudos antropológicos do antigo Egito revelassem o encontro de pinturas denotando recebedores de impostos agredindo camponeses, com golpes desferidos nas plantas dos pés, com o propósito de que estes revelassem onde ocultaram os seus armazéns de grãos, verifica-se que foi na Grécia que a tortura passou a ser utilizada como instituto processual destinado à instrução criminal, quando houvesse a necessidade de se ouvirem, no processo, escravos ou estrangeiros. Foi ela aplicada, inclusive, aos homens livres na Magna Grécia, quando recaía, sobre eles, a imputação de crimes de Estado. O exemplo grego foi compilado pelo romanos, os quais utilizaram a tortura restritivamente, até a expiração da República, já que alcançava ela tão somente os escravos e estrangeiros. No entanto, com o advento do Império, passou a ser disseminada, atingindo, também, os cidadãos romanos, pertencentes às classes inferiores, culminando, igualmente, por atingir as classes superiores, à medida que se ampliava o rol dos delitos de lesa majestade, onde não havia privilégio processual.

Particulariza-se a tortura no Direito romano, pelo reconhecimento de que se trata de um meio frágil, para se descobrir a verdade dos fatos. Quando os germanos dominaram o Império Romano do Ocidente, já na Idade Média, esses não utilizavam a tortura, como meio de prova, uma vez que acreditavam que, no Direito, está consubstanciada a vontade de Deus e, portanto, Deus protegia aquele que estava com o Direito. Daí a utilização das ordálias ou Juízos de Deus. No entanto os germanos, com destaque para os visigodos, deixaramse influenciar pela cultura dos vencidos e pela beleza da religião cristã, o que motivou a conversão, em massa, daqueles povos ao catolicismo e, assim, por orientação dos bispos, os reis germanos deliberaram ter leis escritas, advindo, daí, no reino dos visigodos, o Breviário de Alarico (Lex Romana), em 506; e, mais de um século depois, em 652, a Lex Visigothorum, onde o uso da tortura foi especialmente disciplinado.

No que tange ao Direito canônico, registre-se que, visando combater as denominadas heresias, a Igreja Católica criou os tribunais de inquisição, o que motivou, posteriormente, a instalação do Tribunal do Santo Ofício, que funcionava como tribunal supremo de resolução de todas as questões que envolviam a fé e a moral. A tortura foi admitida oficialmente nos tribunais da inquisição, a partir de 1252, através da bula Ad Extirpanda. Outras bulas posteriores também autorizaram o uso da tortura, como a de Alexandre IV, de 20.11.1259 e a de Clemente IV, de 03.11.1265. A maior intolerância da Igreja Católica ocorreu com a Inquisição Espanhola, com destaque para o frei dominicano Tomás de Torquemada, que ficou conhecido na História como o grande carrasco da Inquisição. Quando a tortura praticamente já estava em desuso no final da Alta Idade Média, fundouse na Baixa Idade Média, aproximadamente em 1088, o Studium de Bolonha, onde se retomaram os estudos romanísticos, o que motivou a recuperação de textos legais, que contemplavam a tortura. Também o processo penal canônico, em tal época, já utilizava o sistema inquisitorial por excelência, onde gravitava o uso da tortura, com autorização pontifícia, o que despertou o interesse da Justiça Secular por tal sistema, pelo entendimento de que era mais eficaz na persecução penal. Dessa forma, a recepção do Direito romano e a inspiração oriunda do Direito canônico culminaram por ressuscitar a tortura, como meio de prova no Direito comum, espargindo-a por toda a Itália e outros países da Europa.

O uso da tortura foi facilitado, pela adoção do sistema inquisitivo, e intensificado, pelo fato de os juízes, a exemplo da teoria canônica, passarem a considerar a confissão do acusado como rainha das provas, transmudando-se, assim, a tortura no mais importante instrumento do processo penal, para obter tal confissão. A tortura, na Idade Moderna, era infligida de forma ainda mais atentatória aos direitos do acusado, em face dos governos absolutistas da época, onde se vedava, até mesmo, o direito de esse ter sua defesa patrocinada por um advogado. Com o advento do movimento iluminista cristalizado no século XVIII, notadamente com a célebre obra de Beccaria, Dei delitti e delle pene, desencadearam-se em toda a Europa, imprescindíveis reformas legislativas, quanto à humanização dos procedimentos criminais, dentre outros, Frederico II da Prússia, que, abolindo, parcialmente, a tortura em 1754, culminou por extirpá-la em 1756; Imperatriz Catarina II da Rússia, que, em 1766, determinou ampla reforma na legislação penal russa, inclusive, a extirpação da tortura; Maria Teresa, Rainha da Áustria, que, em 1776, proibiu no âmbito do seu Império, a prática da tortura; Pedro Leopoldo de Toscana que, em 30.11.1786, suprimiu a tortura no Grande Ducado de Florença; Luiz XVI da França que, em 08.05.1788, aboliu, totalmente, a tortura no seu reino.

2. A TORTURA COMO CRIME INTERNACIONAL O séc. XX vivenciou grandes catástrofes humanas, já que, além das duas grandes guerras mundiais, também houve o registro da dizimação em massa de, aproximadamente, cem milhões de pessoas, pelos regimes comunistas; e de vinte e cinco milhões de civis, pelo nazismo. Até mesmo a França, que brindou o mundo com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, participou de massacres e torturas perpetrados na guerra civil da Argélia. Em face de tal postura, ao longo do tempo, foram sendo elaborados instrumentos internacionais de proteção aos direitos naturais do homem, culminando com a própria criminalização internacional da tortura.

Deve-se reconhecer, no entanto, que, se os séculos XVIII e XIX se revestiram da característica da proteção do homem frente à tortura, pugnando pela sua abolição legal, o século XX traz, inegavelmente, a particularidade da absoluta condenação da sua prática e a internacionalização da proteção dos direitos humanos, como meio de garantir, de uma maneira eficaz, o total desaparecimento de tão hediondo método, típico da barbárie medieval. Na Revolução Francesa foi produzida um dos grandes monumentos jurídicos da história, que foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. O mencionado documento se destinou a positivar os direitos naturais do homem naquele país, transmudando-se na grande matriz de toda a legislação europeia, no que respeita aos direitos fundamentais. As liberdades individuais alcançaram ampla proteção do aludido texto legal, enquanto, no âmbito penal, se fixou, explicitamente, o princípio da legalidade, conforme se verifica no seu art. 8.º: A lei só pode estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito, e legalmente aplicada.

A Convenção de Genebra de 1864, por sua vez, constituiu o primeiro grande instrumento protetivo de direito humanitário, em matéria internacional, e teve, por escopo, minorar o sofrimento dos soldados feridos e doentes, em decorrência das guerras, assim como a própria população civil atingida por um conflito bélico. A referida convenção foi assinada em Genebra, em 22.08.1864, pelas potências europeias. Os princípios ali sedimentados foram estendidos, posteriormente, aos conflitos marítimos (Convenção de Haia de 1907) e aos prisioneiros de guerra (Convenção de Genebra de 1929). A Convenção de Genebra de 1929, não só aglutinou como também desenvolveu as normas protetivas já sedimentadas em 1864, na Convenção de Haia de 1907. Merece ser destacado o art. 2º, por determinar que os prisioneiros, em qualquer tempo, devem ser tratados humanamente e protegidos contra atos de violência, insultos e a curiosidade pública. Também o art. 3º é incisivo na proteção dos direitos do prisioneiro, ditando que os prisioneiros de guerra têm direito a ser respeitados em sua pessoa e em sua honra. As mulheres devem ser tratadas com toda a consideração devida aoseusexo.

Merece ser destacada, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em face das atrocidades praticadas na última grande guerra mundial, as vinte e seis potências mundiais, que combatiam a força do eixo, aglutinada entre Alemanha, Itália e Japão, deliberaram criar um organismo com força de uma sociedade política internacional, com o propósito, entre outros, de lutar para a edificação da dignidade humana. Nasceu, dessa feita, a ONU, cuja Carta de fundamento foi subscrita por 51 países, em 26.06.1945, no encerramento da Conferência de São Francisco, sendo que o Brasil aprovou a mencionada Carta, através do Decreto-lei 7.935, de 04.09.1945, ratificada em 21 de setembro do mesmo ano. Diante da necessidade da elaboração de um documento, para sedimentar a proteção dos direitos humanos, elaborou-se, naquele organismo internacional, em 18.06.1948, a referida declaração, que foi aprovada em Assembleia Geral, nas Nações Unidas, na data de 10 de dezembro daquele ano, na cidade de Paris, e subscrita pelo Brasil no mesmo dia. Destaca-se no aludido documento o disposto no artigo V, cuja norma prescreve que ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Ressalte-se o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que foi aprovado, por unanimidade, pela Assembleia Geral da ONU, realizada em 16.12.1966, entrando em vigência tão somente em 1976, quando se atingiu o número mínimo de adesões, fixando em trinta e três. O parlamento brasileiro somente o aprovou em 12.12.1991, através do Decreto Legislativo 226, sendo que a Carta de Adesão foi depositada na Secretaria Geral das Nações Unidas, em 14.01.1992, entrando em vigor no dia 24 de abril do mesmo ano. É oportuno ressaltar que o governo brasileiro somente ratificou tão importante instrumento depois de extirpada a ditadura militar, e quando os principais direitos, ali contidos, já se encontravam inseridos na nossa Constituição Federal. A norma proibitiva da prática de tortura foi inserida no art. 7º do aludido pacto com a seguinte redação: Ninguém poderá ser submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seus livre consentimento, a experiências médicas ou científicas. Sublinhe-se que, a exemplo do que ocorreu na Europa, a Organização dos Estados Americanos, reunindo-se em San José da Costa Rica, proclamou a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 22.11.1969. O Estado Brasileiro aprovou-a, através do Decreto Legislativo 27, de 26.05.1992, tendo sido promulgada pelo Decreto 678, de 06.11.1992, publicada do Diário Oficial de 9 de novembro daquele ano.

Merece ser destacado o art. 5º, item 2, do referido diploma, o qual preceitua que: Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. Não obstante, sem demérito dos demais documentos internacionais de combate à tortura, a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, representa, atualmente, o mais importante instrumento internacional em vigência contra a prática de tal barbárie. Assim, em face da ineficácia dos instrumentos jurídicos então existentes, as Nações Unidas acordaram sobre a necessidade de se elaborar um texto internacional a respeito da tortura e outros tratos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, de forma que, no 5º Congresso da ONU, realizado em Genebra, em 1975, sobre a prevenção do delito e tratamento do criminoso se elaborou a Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra a tortura e outros tratos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, que foi aprovada pela Assembleia Geral, em 9 de dezembro daquele ano. A referida declaração traz a definição de tortura logo no art. 1, qual seja: todo ato pelo qual um funcionário público ou outra pessoa, por sua instigação, inflija intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos graves, sejam físicos ou mentais, com o fim de obter dela ou de um terceiro informação ou uma confissão; de castigá-la por um ato que haja cometido ou se suspeite que tenha cometido; ou de intimidar a essa pessoa ou a outras. Ressalva que não se considerarão tortura as penas ou sofrimentos que sejam consequências unicamente da privação legítima da liberdade, ou sejam inerentes ou incidentais a esta, na medida em que estejam em consonância com as regras mínimas para o tratamento dos reclusos.

Ditando, ainda, no art. 2º que tanto a tortura como qualquer outro tratamento ou pena cruel, desumano ou degradante, constituem ofensas à dignidade humana e, por conseguinte, devem ser condenados como violação dos propósitos objetivados pela ONU e dos direitos plasmados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. O art. 7º determina que a prática de tortura, na sua forma consumada ou tentada, seja coibida mediante a incriminação, na legislação penal, assim como a participação, cumplicidade ou incitação.

2. O DELITO DE TORTURA DO DIREITO BRASILEIRO Suplantada a fase do governo militar e a transição para o poder civil, o Parlamento brasileiro, em 1987, constituiu a Assembleia Nacional Constituinte, que brindou a Nação, em 05.10.1988, com a denominada Constituição cidadã, merecendo destaque o art. 1º, inciso III, que estabelece, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana; o art. 4º que estabelece a prevalência dos direitos humanos, como um dos princípios nas relações internacionais estabelecidas pelo Brasil;

o art. 5º, inciso III, que dispõe, textualmente que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante ; o inciso XLIII do mesmo artigo, que estabelece que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem ; e o 2º do mencionado artigo, cuja norma dispõe que: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

LEI 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997 Art. 1º Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos. 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurálas, incorre na pena de detenção de um a quatro anos. 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos. 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço: I - se o crime é cometido por agente público; II se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos; III - se o crime é cometido mediante sequestro. 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.

BEM JURÍDICO: Tutela-se a dignidade humana, que constitui, indubitavelmente, um dos pilares básicos, se não o principal, da promoção dos direitos humanos. Embora na criminalização da tortura se tutelem outros valores, como a integridade física e mental do indivíduo e, até mesmo, a sua própria vida, verifica-se que os aludidos valores estão contidos no próprio conteúdo de dignidade humana. Não se pode olvidar que, para o bem jurídico poder cumprir a sua função sistemática, é necessário, quando possível, pinçarse, dentre os valores protegidos, aquele proeminente, que, no caso, é a dignidade humana.

SUJEITOS: Sujeito ativo: em princípio, pode ser qualquer pessoa (delito comum). Na hipótese do 1º do artigo 1º, em que a tortura é praticada contra a pessoa que se encontra presa, o sujeito ativo somente pode ser funcionário público, já que a prisão é uma típica atividade pública. Em alguns Estados da federação há convênios ou parcerias celebrados com empresas particulares ou ONGs, visando à administração dos presídios, mas os agentes de tais entes particulares são equiparados a funcionários públicos para fins penais, pelo que se depreende do disposto no art. 327, 1º, do CP. Também, na tortura praticada no interior de hospital de custódia e tratamento psiquiátrico estatal (art. 99 da Lei 7.210/1984) ou estabelecimento conveniado, o sujeito ativo será funcionário público ou equiparado. Não obstante pode a medida de segurança ser cumprida, em caráter excepcional, em estabelecimento particular não conveniado com o Estado, mediante autorização judicial e, então, o sujeito ativo poderá ser o particular.

De igual forma, a expressão autoridade inserida no artigo 1º, II, da lei em comento demonstra que, nessa hipótese, o sujeito ativo será o funcionário público, especialmente ligado à área da segurança pública e sistema prisional, excetuada a hipótese do artigo 30 do Código Penal. No que tange à disposição normativa do art. 1º, 2º, que trata da tortura imprópria, embora a mens legis tenha por escopo punir, principalmente, o agente público detentor de autoridade para impedir a tortura ou apurá-la, abrangendo aqueles que atuam nas áreas de segurança pública, internato de adolescentes infratores, sistema prisional, Ministério Público e Poder Judiciário, é inegável que a conduta omissiva do garante pode ser praticada por particular, como na hipótese da mãe ou do pai que não impede a tortura praticada em relação ao filho ou quando o diretor de uma creche ou unidade escolar, por exemplo, não impede a tortura praticada numa criança ali inserida.

Sujeito passivo: é o cidadão a quem é aplicada a tortura. Calha advertir-se que, na hipótese da tortura punitiva e intimidatória (art. 1º, II), o sujeito passivo pode ser qualquer pessoa, portanto o texto normativo exige que a vítima esteja sob a guarda, poder ou autoridade do torturador, havendo, aí, uma relação de subordinação de direito ou de fato entre vítima e sujeito ativo, tratando-se, portanto, de delito especial próprio. Do mesmo modo, na hipótese definida no artigo 1º, 1º, o sujeito passivo se restringe à pessoa que esteja presa ou submetida à medida de segurança. Nas modalidades delitivas inseridas no art. 1º, 2º, quando o agente que não impediu a prática da tortura for funcionário público, detentor de potestade hierárquica, para obstá-la, o sujeito passivo principal é o Estado, por representar tal omissão do garante um vilipêndio à função estatal de tutelar a pessoa humana de tal conduta ignóbil. O mesmo ocorre em relação à omissão de apurá-la, posto que se trata de dever do Estado investigar e punir a tortura, nos termos da Convenção contra a Tortura e outros Tratamento ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984. Em relação às demais figuras, aponta-se o Estado como sujeito passivo secundário, enquanto sujeito interessado em que se respeitem as garantias nos procedimentos públicos investigatórios e punitivos.

TIPO OBJETIVO: Nas três primeiras modalidades de tortura constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa (art. 1º, I, a); para provocar ação ou omissão de natureza criminosa (art. 1º, I, b); em razão de discriminação racial ou religiosa (art. 1º, I, c) o núcleo reitor do tipo está representado pelo verbo constranger, que denota a ação de coagir, de violentar, de obrigar pela força. Dessa forma, mediante constrangimento direcionado a alguém por meio de violência ou grave ameaça causadora de sofrimento físico ou mental, o agente almeja alcançar o fim descrito na norma.

A violência (vis corporalis), no caso, constitui a força física empregada para vencer uma resistência, podendo ser imediata, quando aplicada diretamente no corpo da vítima, resultando na prática de lesão corporal, vias de fato, imobilização física (amarrar o ofendido), amordaçamento etc.; ou, ainda, mediata ou indireta, quando aplicada sobre terceira pessoa ou mesmo sobre coisa sensível à vítima, de modo a tolher a sua faculdade de ação e a caracterizar uma coação pessoal, como na hipótese de se retirar a muleta de um aleijado ou privar o cego do seu guia, obstando a locomoção de tais pessoas. A grave ameaça (vis compulsiva) denota, no sentido do texto, a violência moral direcionada ao sujeito passivo, incutindo-lhe sério temor de sofrer um dano grave, ou a pessoa de sua família ou mesmo a terceiro, com quem a vítima tenha grande afinidade. Agregue-se que é suficiente para caracterizar o tipo que a vítima sinta-se intimidada com a ameaça, independentemente do mecanismo usado pelo transgressor da norma penal sancionatária.

O tipo em análise é composto, igualmente, de um elemento normativo, de valoração extrajurídica, consubstanciado na expressão sofrimento físico ou mental. Registre-se, ademais, que o legislador brasileiro se afastou do conceito internacional de tortura quanto à exigência de o sofrimento físico ou mental ser agudo, de forma que basta que a conduta provoque um dos sofrimentos mencionados, para que comece a encontrar tipicidade na norma. O sofrimento físico resulta da violência empregada na vítima, denotando a manifestação produzida pelas terminações nervosas que captam tal sensação desagradável no corpo humano, cuja sensação sofre variação de intensidade, conforme a natureza do instrumento desencadeador de tal fenômeno, como espancamentos, choques elétricos etc. A violência enfocada tanto pode atingir a integridade corporal da vítima quanto debilitar ou inutilizar o funcionamento dos seus sentidos, órgãos e funções.

O sofrimento mental é aquele que se processa por meio de um estado de angústia e stress infligido à vítima por outros meios que não a agressão física. No entanto, não se pode olvidar que, geralmente, a própria tortura física produz, na vítima, sofrimento mental. Aliás, o sofrimento mental pode ser produzido por diferentes métodos de tortura. Primeiro, pode ser mencionado o método físico, que, incidindo sobre as funções sensoriais do organismo da vítima, causa-lhe sofrimento mental, como no caso de uma simples bofetada, que, em determinada circunstância, pode causar maior humilhação e, portanto, maior sofrimento do que um soco. Também há o método físico, que afeta, diretamente, o cérebro da vítima, quer reduzindo a sua sensibilidade cerebral, privando-a de oxigênio, água, comida etc., quer estimulando tal sensibilidade, por meio de luz, sons, olfato, tato, gosto etc. Quando aos métodos psicológicos, citem-se como exemplos a ameaça de agressão física, a execução simulada etc.

Assinale-se que, como verbo constranger, no sentido do texto, denota a ação direcionada à vítima, para que esta realize o ato desejado pelo torturador e, considerando que, na tortura oblíqua (indireta), a vítima que recebe o sofrimento físico é diversa daquela de quem se pretende obter informação, declaração ou confissão, melhor seria que o legislador tivesse utilizado como núcleo do tipo o verbo submeter, como o fez no inciso II, por expressar, com maior exatidão, a conduta descrita pelo tipo de injusto. Agregue-se, por oportuno, que, na montagem do tipo em exame, o legislador não utilizou a melhor técnica. Com efeito, embora seja tolerável o uso do tipo aberto, para descrever determinados delitos, no caso enfocado, o legislador partiu da consequência da tortura (sofrimento físico ou mental) e dos fins praticados, com o fim de caracterizar o tipo objetivo, cujo indeterminismo do texto legal chega, até mesmo, a ofender o princípio da taxatividade.

No tocante à quarta modalidade de tortura inserida no artigo 1º, II, da lei em exame, o núcleo reitor do tipo está representado pelo verbo submeter, que, no sentido do texto, denota a ação de sujeitar, de subjugar a vítima a intenso sofrimento físico ou mental. Essa modalidade de tortura é conhecida como punitiva/vindicativa e intimidatória, por ser aplicada com a finalidade de castigar a vítima ou mesmo para prevenir a prática de eventual indisciplina, nos casos em que o torturador detém a sua guarda ou tenha, sobre ela, poder ou autoridade. Mais uma vez, impõe-se a crítica à montagem do tipo em epígrafe, pela imprecisão terminológica da expressão intenso sofrimento físico ou mental, deixando, por conseguinte, ao árbitro do julgador estabelecer o alcance normativo, sendo que tal indeterminação pode conduzir a uma negação do próprio princípio da legalidade, pelo emprego de elementos do tipo sem precisão semântica.

Com efeito, é extremamente complexo aferir-se e valorar-se a intensidade do sofrimento, seja ele físico ou mental. Por essa razão, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos estabeleceu o entendimento de que a gravidade do sofrimento é uma questão relativa por sua própria natureza, que depende do conjunto dos dados do caso e especialmente da duração dos maus tratos e de seus efeitos físicos ou mentais e, às vezes, do sexo, da idade, do estado de saúde da vítima etc. Acrescente-se, ademais, que, além da expressão sofrimento físico ou mental, o tipo é composto, também, dos elementos normativos de valoração jurídica guarda e autoridade, além de valoração extrajurídica poder. Guarda expressa o poder-dever submetido a um regime jurídico-legal, de modo a facultar a quem de direito prerrogativas para o exercício da proteção e amparo daquele que a lei considerar nessa condição. Autoridade, no sentido normativo, deve ser enfocada como o poder, derivado de direito público ou privado, exercido por alguém sobre outrem (v.g. diretores de escola/alunos; carcereiros/presos). O vocábulo poder, no âmbito do direito público, denota a característica de que se revestem os atos praticados por detentores de função pública, decorrentes da própria potestade estatal, podendo ser utilizado, ainda, para expressar as relações privadas de subordinação, como o tutor em relação ao telelado, e o curador em relação ao curatelado.

Na quinta modalidade de tortura (art. 1º, 1º), o núcleo reitor do tipo está representado pelo verbo submeter, que, no sentido do texto, denota a ação de sujeitar, de subjugar a vítima a sofrimento físico ou mental. Verifica-se que, ao contrário da hipótese anterior, a configuração delitiva se perfaz com o mero sofrimento físico ou mental, já que o legislador suprimiu do texto normativo o termo intenso. Note-se que o tipo em exame seria melhor classificado como trato desumano ou mesmo degradante. No entanto, diante do permissivo constante no art. 1º, 1, da Convenção de 1984, não se pode direcionar crítica ao legislador. É oportuno registrar que o Código Penal espanhol prevê expressamente o trato degradante no art. 173, no mesmo título em que enfoca a tortura e outros delitos contra a integridade moral.

Além da expressão, sofrimento físico ou mental, o legislador inseriu, ainda, os elementos normativos de valoração jurídica prisão e medida de segurança -, disciplinadas pelo Código Penal, Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal. A prisão pode ser conceituada como o ato pelo qual é alguém privado da liberdade pessoal por motivo legítimo ou em virtude de ordem legal. A prisão legal é aquela que decorre da pena privativa de liberdade imposta ao sentenciado após o trânsito em julgado da sentença condenatória. A prisão processual (provisória) é aquela imposta no decorrer da persecução penal, tendo, portanto, natureza cautelar. A referida prisão abrange a prisão em flagrante, a prisão preventiva e a prisão temporária a que se refere a Lei 7.960/1989. A prisão civil é aquela imposta ao devedor de alimentos e ao depositário infiel. A prisão administrativa, atualmente decretada por autoridade judiciária, é aquela prevista no artigo 319, I, do CPP e leis especiais. A prisão disciplinar se destina a reprimir transgressão disciplinar no âmbito militar e se aplica, inclusive, ao crime propriamente militar, pelo que se depreende do disposto nos artigos 5º, LXI e 142, 2º, da Constituição Federal.

É imperioso observar que a prisão ocorre no momento em que o agente público efetua a captura do preso e não a partir da custódia, que se concretiza no seu recolhimento ao estabelecimento penitenciário. Dessa feita, o sofrimento físico ou mental a que se refere o tipo pode ocorrer, ainda, no trajeto da via pública ao cárcere, podendo ser citado, como exemplo, o espancamento praticado na pessoa autuada em flagrante, porque resistiu à prisão; e, como já foi observado, um simples esbofeteamento pode gerar um sofrimento mental na vítima. Cite-se, também, o ato de o policial apertar, excessivamente, a algema do autuado, além do ponto de segurança, como manifesto propósito de infligir-lhe sofrimento físico. Quanto ao preso já custodiado, caracteriza tortura mental ou psicológica colocá-lo em cela escura, ainda que tenha ele praticado falta disciplinar, uma vez que tal medida está expressamente vedada pelo art. 45, 2º, da LEP; ou aumentar o seu isolamento por mais de trinta dias, com o escopo de submetê-lo a sofrimento mental, violando-se, dessa feita, a norma prevista no artigo 58 da referida lei, que estabelece o prazo máximo de trinta dias para o isolamento do preso que praticou falta disciplinar.

Verifica-se, por conseguinte, que todo ato praticado pelo agente público que atentar contra a dignidade do preso, causando-lhe sofrimento físico ou mental e que não esteja previsto em lei ou no Regime Interno do presídio, amolda-se, em tese, ao tipo em exame. No que tange à medida de segurança, pode-se afirmar que são consequências jurídicas do delito, de caráter penal, orientadas por razões de prevenção especial, destinadas aos imputáveis e semiimputáveis, a que se refere o art. 26, do CP. Frise-se que o autor da prática de fato delituoso que se encontrar na hipótese definida na norma supra ou aquele que cumpre pena privativa de liberdade e lhe sobrevier doença mental ou perturbação da saúde mental (art. 183 da LEP) ficarão sujeitos à medida de segurança, numa das duas espécies aludidas no art. 96 do CP, as quais consistem em I internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado; II sujeição a tratamento ambulatorial.

O legislador penal, com o tipo em análise, tutela a dignidade de tais pessoas, que não podem sofrer sevícias causadoras de sofrimento físico ou mental, bem como não podem ser cobaias de experimentos científicos no âmbito da medicina, em especial da psiquiatria, que lhes venha causar tais sofrimentos. Na sexta modalidade de tortura, a que se refere ao art. 1º, 2º, temse a figura da tortura imprópria ou do garante. O núcleo reitor do tipo está representado pelo verbo omitir, que, na parte que se refere ao garante, expressa a sua conduta de não atuar, deixando de realizar a conduta determinada que consistia em obstar a prática da tortura, caracterizando o delito omissivo impróprio. Quanto ao agente que não instaura o procedimento administrativo para apurar o delito, a omissão representa o descumprimento do dever mandamental quando deveria fazê-lo, aflorando o delito omissivo próprio.

Observa-se que o legislador considerou o crime em análise de menor gravidade do que aqueles já enfocados, uma vez que fixou a pena de detenção de um a quatro anos. Merece crítica tal postura do legislador, porquanto a conduta da autoridade deveria, nesse caso, receber maior repúdio do Estado-legislador, por ser mais danosa no campo social. Como se não bastasse tal fato, desconsiderou-se o disposto no artigo 13, 2º, do CP, que estabelece regras atinentes à omissão do garante, que deve responder por esse delito, em paridade de tratamento com os autores diretos docrime. Observe-se, no entanto, que, se a autoridade praticar o delito de autoria em coautoria ou participação com o seu subordinado, haverá concurso de infrações, já que os bens jurídicos protegidos, no caso, são diversos. Enquanto, na omissão, tutela-se precipuamente a moral administrativa, na tortura propriamente dita aflora a dignidade humana como bem jurídico principal.

TIPO SUBJETIVO: O tipo definido no artigo 1º, I, a, está representado pelo dolo, consubstanciado na consciência e vontade de infligir, na vítima, sofrimento físico ou mental, acrescido do elemento subjetivo do injusto, consistente na finalidade em obter informação, declaração ou confissão. A informação a que se refere o texto normativo constitui o fornecimento de dados úteis de interesse do torturador; como autoria e a materialidade de eventual ilícito penal (investigação policial) ou para a apuração de ilícito administrativo perpetrado no interior de estabelecimento prisional ou internato de adolescentes infratores, não se podendo olvidar que a informação poderá ser obtida para fins meramente particulares. A declaração representa a informação prestada, por escrito, a respeito do fato. A confissão, por sua vez, denota o reconhecimento da prática do fato imputado ao torturado.

O tipo subjetivo da segunda modalidade de tortura tratada no artigo 1º, I, b, está representado pelo dolo, consubstanciado na consciência e vontade de infligir, na vítima, sofrimento físico ou mental, acrescido do elemento subjetivo do injusto, consistente no objetivo de provocar ação ou omissão de natureza criminosa. Sublinhe-se que a finalidade do agente é buscar um atuar positivo (ação) ou negativo (omissão) da vítima, com a particularidade de que a conduta esperada do torturado se encontra descrita como infração penal. Registre-se que a expressão natureza criminosa alcança, também, a contravenção, que, apesar de não ser crime na acepção técnicojurídica, reveste-se de natureza criminosa. Aliás, a contravenção é considerada pela doutrina como crime-anão, já que a diferença entre esta e o crime é apenas quantitativa. Desse modo, não havendo diferença ontológica entre crime e contravenção, ambos têm a mesma natureza.

Cite-se, como exemplo da prática delitiva em análise, o fato de a vítima ser torturada, para que mate um cúmplice ou testemunha que tenha presenciado eventual crime ou mesmo que efetue o transporte de determinada substância entorpecente que cause dependência física e psíquica, de uso proscrito no Brasil. Na hipótese de a vítima concretizar a ação ou a omissão delituosa, em face da grave ameaça, é ela beneficiada com a excludente da culpabilidade a que se refere o art. 22, 1ª parte, do CP, sendo punível apenas o autor ou os autores mediatos. Na hipótese de a conduta ser motivada por violência física, há apenas autoria de quem constrange e faz do outro um seu instrumento, destituído de vontade e de ação. A terceira modalidade (art. 1º, I, c) também se particulariza em relação às anteriores, em face do tipo subjetivo, representado pelo dolo (consciência e vontade de infligir, na vítima, sofrimento físico ou mental), acrescido do elemento subjetivo do injusto consistente na especial motivação de praticar a conduta em razão de discriminação racial ou religiosa.

Observe-se que, apesar de a Constituição da República Federativa do Brasil estabelecer, como um dos objetivos fundamentais, a promoção do bem de todos, sem a nódoa do preconceito racial e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV), e inserir, no art. 5º, inciso XLII, a imprescritibilidade e inafiançabilidade do crime de racismo, é inegável que algumas raças, no Brasil, não obstante a acentuada miscigenação, sofrem preconceito da raça dominante, o mesmo ocorrendo em relação ao culto de algumas religiões, apesar da liberdade de consciência e de crença e o livre exercício dos cultos religiosos, assegurados pelo art. 5º, VI. Tal preconceito contagia os próprios agentes estatais, não sendo incomum que cidadãos sofram tortura no interior de unidades policiais pela simples razão de que a sua cor é denotativa de ser ele o provável criminoso do fato investigado. Frise-se que, sem razão plausível, o legislador brasileiro restringiu o alcance da discriminação, cingindo-se tão somente àquela motivada por preconceito racial ou religioso, afastando-se, dessa feita, uma vez mais, do texto sugerido pelo conceito internacional, que nele inseriu a discriminação de qualquer natureza, como uma das motivações do ato delituoso.

Quanto à tortura perpetrada por discriminação religiosa, embora seja ela rara no Brasil, não se pode olvidar que a proliferação de seitas religiosas e a exarcebação nos cultos, geralmente veiculados pelos meios de comunicação, de que cada uma delas é o único caminho a ser palmilhado rumo à salvação, gera, por vezes, discriminação religiosa, que pode culminar numa extremada intolerância e desencadear a prática de violência, com o consequente sofrimento físico ou mental. Cite-se como exemplo o fato de membros de uma seita religiosa, motivados por fanatismo, passarem a ameaçar gravemente, ou a agredirem, fisicamente, determinada pessoa pertencente a outra seita, inflingindo-lhe sofrimento físico ou mental por mero preconceito religioso. Será muito mais raro, contudo, encontrar-se, atualmente, um agente estatal que pratique tortura por mero preconceito religioso.

O tipo subjetivo da quarta modalidade de tortura (art. 1º, inciso II) está representado pelo dolo (consciência e vontade de infligir, na vítima, sofrimento físico ou mental), acrescido do elemento subjetivo do injusto, consistente na especial motivação de praticar a conduta, como forma de castigo pessoal, ou por medida de caráter preventivo. O castigo pessoal representa, no caso, uma punição aplicada a determinada pessoa, em face da prática de ato que atentou contra as normas disciplinares ou regimentais de alguma instituição, podendo ser citada, como exemplo, a prática de espancamentos contra o preso que tentou empreender fuga do presídio ou por ter participado de eventual motim. Quanto à medida de caráter preventivo, deve ela ser definida como a conduta do agente que, antevendo que a vítima irá praticar algum ato de insubordinação atentatório às normas já mencionadas, inflige-lhe intenso sofrimento físico ou mental, visando, assim, a obstar a prática da indisciplina. Cite-se o exemplo de monitores de determinada unidade da Fundação CASA que, ao perceberem movimento suspeito entre os internos, passam a espancar, fortemente, alguns deles, tendo em vista desestimular a todos do plano de fuga. Igualmente não é incomum o preso sofrer espancamentos logo ao chegar à unidade prisional, como forma de desestimulá-lo a insurgir-se contra a disciplina prisional interna.

O tipo subjetivo da quinta modalidade de tortura (art. 1º, 1º) está representado tão somente pelo dolo, consubstanciado na consciência e vontade de submeter tais pessoas a sofrimento físico ou mental. O tipo subjetivo da sexta modalidade de tortura (art. 1º, 2º) está representado pelo dolo, manifestado na consciência e vontade de não obstar a prática da tortura, sabendo que deveria fazê-lo, em face da função exercida, e de não instaurar o procedimento para a apuração do delito, apesar de saber que tinha o dever de fazê-lo.

CONSUMAÇÃO E TENTATIVA: As três primeiras modalidades de tortura (art. 1º, I, a, b e c) se consumam com o sofrimento físico ou mental infligido à vítima, independentemente de o torturador ter logrado êxito em atingir uma das finalidades apontadas pela norma. A quarta modalidade de tortura (art. 1º, II) se consuma também com o sofrimento físico ou mental imposto à vítima, exigindo-se, contudo, que seja ele intenso, conforme já foi explicitado. Quanto à quinta modalidade (art. 1º, 1º), a consumação se perfaz com o mero sofrimento físico ou mental infligido à vítima, já que o legislador suprimiu, nesta hipótese, o termo intenso.

Na sexta modalidade (art. 1º, 2º) a consumação delitiva, na hipótese da omissão em evitar a tortura, ocorre com o resultado, enquanto na segunda hipótese (não apuração), ela se perfaz no momento em que o agente delibera em não apurar o delito. A tentativa é admissível nas cinco primeiras modalidades, por se tratar dedelito plurissubsistente. Quanto à tortura imprópria ou do garante (sexta modalidade) em se tratando da hipótese da omissão em evitar a tortura, como esta se consuma com o resultado (delito omissivo impróprio) é admissível a conatus. No entanto, a tentativa é inadmissível na segunda hipótese (delito omissivo próprio), porque ou o agente instaura o procedimento investigatório para apurar o delito ou não toma tal providência, descumprindo o dever mandamental, aperfeiçoando-seo delito.

TORTURA QUALIFICADA ( 3º) Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos; se resulta morte, a reclusão é de 8 (oito) a 16 (dezesseis) anos.

CAUSA DE AUMENTO DE PENA ( 4º) Aumenta-se a pena de 1/6 (um sexto) até 1/3 (um terço): I se o crime é cometido por agente público; II se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos; III se o crime é cometido mediante sequestro.

CLASSIFICAÇÃO: Delito uniofensivo, comum (especial próprio na quinta modalidade artigo 1º, 1º - praticado contra a pessoa presa ou submetida a medida de segurança em estabelecimento estatal), comissivo na cinco primeiras hipóteses e omissivo na sexta modalidade, ação única, de lesão, plurissubsistente, de forma livre e doloso.

PENA: Dois a oito anos para as cinco primeiras modalidades de tortura. Quanto ao delito omissivo definido no artigo 1º, 2º, a pena é de um a quatro anos de detenção. No caso da tortura qualificada ( 3º) a pena é de quatro a dez anos na hipótese de lesão grave ou gravíssima e de oito a dezesseis anos, se da tortura resultar morte. A pena pode ser acrescida de um sexto a um terço na hipótese do 4º (delito cometido por agente público; contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos e mediante sequestro. AÇÃO PENAL: Pública incondicionada.