A origem da vida: não tente fazer isto em casa



Documentos relacionados
Previsões só no fim do jogo: selecção natural irrelevante

A biodiversidade em diferentes ambientes.

Origem da vida. Valdir estava doido para ir à praia e curtir. A voz do professor

Seminário de Genética BG Principal Resumo Professores Componentes Bibliografia Links

Projeto Genoma e Proteoma

O DNA é formado por pedaços capazes de serem convertidos em algumas características. Esses pedaços são

Prémio Nobel para os brócolos

ECOLOGIA GERAL FLUXO DE ENERGIA E MATÉRIA ATRAVÉS DE ECOSSISTEMAS

1 O número concreto. Como surgiu o número? Contando objetos com outros objetos Construindo o conceito de número

4 π. Analisemos com atenção o sistema solar: Dado que todos os planetas já ocuparam posições diferentes em relação ao Sol, valerá a pena fazer uma

Hoje estudaremos a bioquímica dos ácidos nucléicos. Acompanhe!

Resistência de Bactérias a Antibióticos Catarina Pimenta, Patrícia Rosendo Departamento de Biologia, Colégio Valsassina

FLUXO DE ENERGIA E CICLOS DE MATÉRIA

Um planeta. chamado Albinum

MEIOS DE CULTURA DESENVOLVIMENTO OU PRODUÇÃO DE MEIOS DE CULTURA. Necessidade Bactérias Leveduras

DISCIPLINA: Biologia dos Vegetais Inferiores? O que são VEGETAIS INFERIORES???

Bem vindo ao novo Sistema Solar

ORIGEM DA VIDA. Pró Madá 1º ano

RESOLUÇÃO COMENTADA DA PROVA DA UNESP DE 2014

Resposta: Interbits SuperPro Web

Os microrganismos e suas funções

NECESSIDADE BÁSICAS DOS SERES VIVOS. Estágio docência: Camila Macêdo Medeiros


unidade básica da vida

ÁREA A DESENVOLVER. Formação Comercial Gratuita para Desempregados

BIOFÍSICA DAS RADIAÇÕES IONIZANTES

BIOLOGIA - 1 o ANO MÓDULO 17 MITOCÔNDRIAS E RESPIRAÇÃO CELULAR

TEORIAS SÓCIO-HISTÓRICAS MODELO HISTÓRICO CULTURAL DE LEV VYGOTSKY

As bactérias operárias

Roteiro VcPodMais#005

TRATAMENTO DA ÁGUA. Professora: Raquel Malta Química 3ª série - Ensino Médio

CICLOS BIOGEOQUÍMICOS

Súmula Teoria Energética. Paulo Gontijo

Violações das regras do ordenamento do território Habitação não licenciada num parque natural EFA S13 Pedro Pires

Disciplina: Ciências Professor(a): Klícia Regateiro Série: 6º ano. Água

Profa. Maria Fernanda - Química nandacampos.mendonc@gmail.com

Escola Secundária Dr. Manuel Gomes de Almeida

FUNDAÇÃO PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS - FUPAC FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE UBERLÂNDIA

Nesta experiência vamos ver que o conceito de temperatura pode ser subjectivo.

Equipe de Biologia. Biologia

Rousseau e educação: fundamentos educacionais infantil.

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA DOUTRINA ESPÍRITA ESPÍRITA E ESPIRITISMO

Antigas doutrinas da Índia, da Babilônia e do Egito ensinavam que rãs, cobras e crocodilos eram gerados pelo lodo dos rios.

Água como solvente. Objectivos de Aprendizagem. No final desta lição, você será capaz de:

GUIA COMPLETO PARA ESTUDAR NA ITÁLIA COM BOLSA DE ESTUDOS DO GOVERNO ITALIANO. Manual Atualizado. Autor Giuseppe Buonagente

Leis Históricas da Estequiometria

Tudo começou em África

O que é Administração

EXERCÍCIO E DIABETES

3ªsérie B I O L O G I A

Unidade. 6 Coleção IAB de Ciências / 3º ANO

Sugestões de avaliação. História 6 o ano Unidade 1

5ª SÉRIE/6º ANO - ENSINO FUNDAMENTAL UM MUNDO MELHOR PARA TODOS

Exercício 3 PCR Reação em Cadeia da Polimerase

OS CONHECIMENTOS DE ACADÊMICOS DE EDUCAÇÃO FÍSICA E SUA IMPLICAÇÃO PARA A PRÁTICA DOCENTE

Estudo de Caso. Cliente: Rafael Marques. Coach: Rodrigo Santiago. Duração do processo: 12 meses

O próximo módulo trata de Sucessos: Como os Sucessos do passado de uma criança podem ajudá-la no futuro. Você saberá por que nos concentramos em

AULA 1 ORGANIZAÇÃO CELULAR DOS SERES VIVOS

Marxismo e Ideologia

Hereditariedade ligado ao X

Hereditariedade recessiva

CONCURSO PÚBLICO VESTIBULAR/2015

A evolução da espécie humana até aos dias de hoje

Estudo PARTNER. Foi convidado a participar neste estudo porque tem uma relação em que é o parceiro VIH positivo.

Breve história da Tabela Periódica

Homeopatia. Copyrights - Movimento Nacional de Valorização e Divulgação da Homeopatia mnvdh@terra.com.br 2

Mudança do Clima. Luiz Gylvan Meira Filho

Identificar os reagentes, produtos e processos básicos da fotossíntese e da respiração celular.

Formas do fósforo: -Ortofosfatos: PO 4 3-, HPO 4 2-, H 2 PO 4 -, H 3 PO 4

CADERNO DE EXERCÍCIOS 1G

Microscópio de Robert Hooke Cortes de cortiça. A lente possibilitava um aumento de 200 vezes

AS QUATRO FORÇAS FUNDAMENTAIS DA NATUREZA

Ficha Técnica: Design e Impressão Mediana Global Communication

Questões. Biologia Professor: Rubens Oda 24/11/2014. #VaiTerEspecífica. 1 (UEMG 2014) Considere, a seguir, a recorrência de uma heredopatia.

Campos do Lis. Registos e certificação do Cão de Castro Laboreiro. Como é do conhecimento geral compete ao Clube Português de Canicultura (CPC) a

PROVA DE QUÍMICA Segunda Etapa

BIOLOGIA ORIGEM DA VIDA 1. INTRODUÇÃO

ENTREVISTA Coordenador do MBA do Norte quer. multiplicar parcerias internacionais

Para onde vou Senhor?

Luís Norberto Pascoal

PLANIFICAÇÃO ANUAL DE CIÊNCIAS DA NATUREZA - 6º ANO

As simpáticas focas da Antártida

Objetivo. Para apresentar os atributos e benefícios ecológicos e económicos de combustível com o Supertech.

O QUE É SER VIVO? Matéria bruta. Ser vivo vida o que existe. ou Ser in animado ativo prefixo de negação o que existe

Matéria e energia nos ecossistemas

Lógicas de Supervisão Pedagógica em Contexto de Avaliação de Desempenho Docente. ENTREVISTA - Professor Avaliado - E 5

ENTREVISTA Questões para Adauto José Gonçalves de Araújo, FIOCRUZ, em 12/11/2009

A descoberta da célula

Matemática no Cardápio By Lauren

GRUPO I 1º BIMESTRE PROVA A

Comissão Coordenadora do MBMM: Filomena Fonseca Margarida P. Reis (C7-0.34)

ACESSO VESTIBULAR QUESTÕES DE PROCESSAMENTO DE RNA OU SPLICING 01. (MAMA ) PÁGINAS OCULTAS NO LIVRO DA VIDA

Lista de exercícios 3º ano poríferos

São Paulo/SP - Planejamento urbano deve levar em conta o morador da rua

das espécies Chegamos à aula 50! Durante as aulas do Os trabalhos de Charles Darwin

Proposta 107_12 17/10/2012

Objectivos de aprendizagem: No final desta lição, você será capaz de:

BIOLOGIA NO ENEM: CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

Transcrição:

A origem da vida: não tente fazer isto em casa Na sua obra magistral, A Origem das Espécies (ou, usando o título completo, Sobre a Origem das Espécies através da Selecção Natural, ou a Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Vida), se há coisa de que o naturalista inglês Charles Darwin não fala, é sobre a origem das espécies. Ou melhor, sobre a origem da vida. No final do livro, Darwin menciona a possibilidade de todos os organismos terem tido origem numa única forma primordial, mas em privado pensava que essas origens antigas eram irrecuperáveis. Na segunda edição, Darwin incluiu um comentário em que afirmava ser possível conceber um Criador que tenha permitido às espécies criarem-se a si próprias, e que as primeiras formas orgânicas tenham adquirido vida a partir do «sopro do Criador». Darwin foi-se tornando agnóstico ao longo da vida, mas não era imune a pressões e o Criador tem muitos amigos! De qualquer forma, quem comprou A Origem das Espécies à espera de uma explicação cabal acerca da origem das espécies terá provavelmente pensado em exigir o dinheiro de volta. No entanto, já em finais do século XIX, Darwin e o físico inglês John Tyndall (1820-1883) notaram que a evolução biológica teria sido necessariamente antecedida de uma certa forma de evolução química. Mas o tema não entusiasmava ninguém. Darwin tinha evidentemente mais que fazer, digladiando-se pela selecção natural, a origem do homem, o papel do sexo na evolução e outros sarilhos em que já estava metido. Alexander Oparin (1894-1980), bioquímico soviético, tinha aparentemente mais tempo livre e, em 1924, publicou um livro intitulado A Origem da Vida, em russo. Ninguém lhe ligou até 1936, quando a obra foi tradu-

zida para vanas línguas. Felizmente, para animar os leitores anglo-saxónicos, aborrecidos pela espera da tradução, o biólogo inglês John Scott Haldane (1860- -1936) publicou em 1928 um artigo intitulado «Science and human life» acerca do mesmo assunto. As teorias de Oparin e Haldane são semelhantes: a vida teve origem em pequenas moléculas dos mares primitivos (uma espécie de sopa da pedra de moléculas simples) onde uma tempestade, um raio ultravioleta, um fenómeno radioactivo, um naufrágio ou algo do género levou à formação de moléculas cada vez maiores e mais complexas, até que a complexidade era tanta, que a coisa só podia ser viva. Uma evidência estrondosa da origem da vida no mar é que a abundância relativa dos iões de sódio, potássio e cálcio no sangue é muito semelhante à da água do mar. A base do nosso sangue é, por assim dizer, água do mar diluída. Pode-se manter certos órgãos e tecidos vivos e em funcionamento durante algum tempo fora dos respectivos organismos, desde que mergulhados numa solução contendo cloretos de sódio, potássio e cálcio em percentagens relativas semelhantes às da água do mar (a chamada solução de Ringer). Em 1953 o químico norte-americano Stanley Miller (1930-2007) resolveu fazer a experiência. Preparou uma mistura de gases que simulavam a atmosfera primitiva: hidrogénio, amoníaco, metano e vapor de água. Miller considerou que uma condição essencial para a formação de moléculas orgânicas terá sido a ausência de oxigénio na atmosfera primordial. De outro modo, os compostos orgânicos teriam tendência para a combustão. Sujeitou a mistura à acção de descargas eléctricas, simulando as violentas tempestades que terão animado

o boletim meteoro lógico de há 3,5 mil milhões de anos. Ao fim de uma semana (e não ao fim de milhões de anos), encontrou aminoácidos (constituintes das proteínas) e bases azatadas (que fazem parte do ADN). Não é nada recomendável que o leitor procure reproduzir esta experiência em casa, atirando com um ferro de engomar ligado para uma banheira com água e com uma botija de gás aberta na casa de banho. Além de não conseguir obter as moléculas da vida, o máximo que conseguirá fazer será regressar à sopa primordial. A primeira célula não seria mais do que um compartimento rudimentar que separava o interior do exterior. Continha pouco mais do que polinucleótidos, uma espécie de material genético rudimentar que servia de molde para fazer proteínas rudimentares. E, claro, conseguia fazer cópias desses polinucleótidos rudimentares e, assim, reproduzir-se de um modo rudimentar. A vida surgiu assim, como uma espécie de parque de campismo clandestino: compartimentos simples que se multiplicam sem a mínima ordem e sem pedirem autorização a ninguém. As células foram-se modificando, diversificando e engolindo umas às outras, num processo chamado endossimbiose, não no sentido em que o leitor come um chupa-chupa ou uma gelatina, mas mais como se, após uma bela pratada de bacalhau com natas, passássemos a ter uma família de gerações e gerações de bacalhaus a viver no nosso interior. Este mecanismo de evolução, associação simbiótica estável seguida de selecção natural, foi proposto pela bióloga Lynn Margulis (n. 1938, que foi casada com Carl Sagan) e terá dado origem às células compartimentadas, como as nossas. Num caso bastante conhecido, uma dessas células (uma arqueobactéria) engoliu outra bactéria (uma ciano-

bactéria). Essa cianobactéria tinha a capacidade de usar a energia do Sol para fazer açúcares. Ou seja, fazer fotossíntese. Surgiu assim a primeira alga verde, uma célula com uma espécie de cloroplasto lá-dentro. Ou, se quisermos, uma tenda de campismo com painel solar. Estas algas e cianobactérias começaram a encher a atmosfera com oxigénio. E assim aconteceu o primeiro desastre ambiental: grande parte dos microrganismos existentes desapareceu, enferrujada pelo oxigénio, tal como um corrimão de ferro sem tinta adequada. Hoje, todos os organismos expostos à atmosfera estão adaptados à presença do oxigénio, têm mecanismos para se protegerem da oxidação. Não deixa de ser irónico que o oxigénio, cuja ausência poderá terá sido determinante para o surgimento das primeiras formas de vida, seja essencial à vida de muitos organismos actuais.

TíTULO: Darwin aos Tiros e Outras Histórias de Ciência AUTORES: Carlos Fiolhais e David Marçal EDITORA: Gradiva Publicações, S.A. LOCAL: Lisboa EDiÇÃO: 1ª DATA: Outubro de 2011