Danieli Siqueira. Professora do Departamento de Sociologia da UFPE.
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1 RESENHA CRÍTICA HENRIQUE MARTINS, Paulo. La descolonialidad de América Latina y la heterotopía de uma comunidad de destino solidaria. 1ª Ed. Buenos Aires: Fundación CICCUS; Buenos Aires: Estudios Sociológicos Editora, Danieli Siqueira Professora do Departamento de Sociologia da UFPE. danielisiqueira@hotmail.com Neste livro, o autor reúne uma série de reflexões críticas presentes nas ciências sociais, a partir de uma abordagem que põe em dialogo a perspectiva da descolonialidade do poder e do saber, através das teorias pós-coloniais, da crítica antiutilitarista, da perspectiva do dom, do sistema da dádiva, além das abordagens sobre redes sociais. Desta maneira aborda de forma dialógica a produção pós-colonial crítica no sul global (em especial a partir da sociologia na América Latina) e a produção antiutilitarista e anticapitalista do norte global. Aborda o contexto da descolonialidade a partir do questionamento das ideias de centro e periferia ou de norte e sul direcionando o olhar para a complexidade do mundo, a diversidade cultural, simbólica, linguística, bem como a dimensão política das novas reações anticoloniais que questionam velhos modelos imperialistas. Autores como Anibal Quijano, Pablo Casanova, E. Lander, E. Dussel, I. Wallerstein, A. Scribano, Marcel Mauss, J. Godbout, M. Godelier, dentre outros, são seus interlocutores neste livro. Já na introdução levanta o questionamento sobre como foi construído o termo América Latina. Afirma que o caminho escolhido para abordar a América Latina como campo de reflexão é o entendimento desta região como comunidade de destino, entendendo-a como heterotópica, ou seja, em termos de Foucault, espaços marcados pela descontinuidade como forma de constituição da realidade. Isto se dá por um lado pela ruptura com o eurocentrismo e por outro por uma reflexão coletiva gerada pela tomada de consciência da colonialidade. No primeiro capítulo o autor faz um apanhado sobre o contexto do surgimento e da trajetória da Sociologia na América Latina. Busca fazer uma releitura deste contexto a partir do debate teórico presente neste campo, que alguns autores chamam de teorias pós-coloniais, outros de Cadernos de Estudos Sociais, n. 29, v. 1, jan.-jun
2 pós-independentismo e outros de teorias descoloniais. Houve alguns desafios que a Sociologia na América Latina enfrentou, um deles foi o fato de ter se desenvolvido num contexto sócio-histórico de dominação e reprodução da colonialidade. Sendo assim, a Sociologia na América Latina passou por três etapas (século XIX e XX) entre colonialidade e anti-colonialidade. Essas etapas revelam um conflito para os intelectuais na América Latina. Um conflito sentimental entre viver a experiência da colonialidade, mas fazer parte da periferia e não do centro. Primeiramente, a etapa pós-independentista, onde o conflito pelo controle de redistribuição de capital foi se incrementando na América Latina, de um lado por lutas pelo controle de terras que são necessárias para a reprodução do poder patrimonialista e oligárquico e por outro lado, pelas lutas de povos de tradições não eurocêntricas. A segunda etapa da sociologia latino-americana é a fase do pós-colonialismo crítico, representada pelo momento de tomada de consciência, onde a ideia de centro e periferia passa a ser problematizada. A terceira etapa da sociologia latino-americana é a fase da recolonalidade e descolonialidade. Recebeu influência da linguística e das teorias do discurso. O pensamento crítico regional passou a avançar na desconstrução de mitos importantes como o da modernização, desenvolvimento, sociedade industrial, e, sobretudo a desconstrução do eurocentrismo que envolve todos os símbolos de dominação da colonialidade ocidental. Com o advento da tese neoliberal da globalização substitui-se a ideia de centro-periferia pela noção de contexto global, onde todos teriam acesso ao consumo, e a tecnologia. Nesse sentido a perspectiva de uniformização planetária contribui para um novo sistema de colonização das práticas. Nessa direção visualiza que o futuro da sociologia depende da sua possibilidade de superar as tensões da colonialidade dos saberes e dos poderes e marchar rumo a uma crítica sociológica descolonial e antiutilitarista. No segundo capítulo o autor afirma que as terminologias Sul e Norte são orientações epistemológicas necessárias para a descolonialidade. Aponta para o fracasso do projeto iluminista, que é baseado na dominação e competição desigual. Ressalta que a relação Norte e Sul no processo civilizador se dá pela hierarquia da desigualdade axiológica. Na modernidade ocidental o conhecimento técnico e científico é produzido pelas culturas do norte, como referência da verdade, ao passo que as culturas tradicionais são interpretadas como crenças de pouco interesse científico. Faz uma crítica a W. Mignolo a respeito da proposta dele de desobediência epistêmica radical em relação à tradição eurocêntrica. Afirma que 212 Cadernos de Estudos Sociais, n. 29, v. 1, jan.-jun. 2014
3 essa proposta, dentre outras que seguem a mesma linha, de fato não são radicais, visto que continuam prisioneiras das representações geográficas clássicas da modernidade, desconsiderando os processos simbólicos e linguísticos da organização da episteme contemporânea. Coloca que pensar em termos de deslocamento (Derrida) é o melhor caminho para pensar tais rupturas. A noção de deslocamento no sentido de différence é também abordada por Stuart Hall e Homi Bhabha, já pensando a partir da crítica pós-colonial. Um dos pontos centrais do deslizamento epistêmico é a mudança de uma única representação de modernidade para a aceitação de várias modernidades. Cita Boaventura de Sousa Santos, com a Sociologia das ausências e a Sociologia das emergências, as quais se relacionam com a expansão das experiências sociais disponíveis e as possíveis. Nesse contexto, o processo de tradução apontado por Boaventura é central para entender o deslocamento de significações e experiências. No terceiro capítulo afirma que há uma corrente dos estudos pós-coloniais que defende uma ruptura epistemológica entre Sul e Norte, como propõe Mignolo, outra corrente defende que deve haver uma interação complementar entre Sul e Norte. Martins defende a crítica dialógica do pensamento ao Norte e ao Sul. As zonas de contato estão mais abertas e mais rápidas favorecendo a configuração de poder plural diversificado. No Sul, o pensamento descolonial interroga as teorias pós-coloniais tradicionais preocupadas com o desenvolvimento como a teoria estruturalista e da dependência. Na tentativa de articular a reação antiutilitarista e a pós-colonialidade o autor aponta alguns pontos importantes para o debate. Inicialmente, os desafios da ação pedagógica e mediadora no que compete a nova epistemologia do conhecimento ampliada. Outro ponto é o reconhecimento que a crítica antiutilitarista na Europa passa a ser um projeto descolonial quando contestou o pensamento monológico estruturalista para propor uma ampliação da ideia de sociedade que interroga o eurocentrismo. As reações antiutilitaristas na Europa não foram somente produtos de utopias, mas também de heterotopias. No quarto capítulo o autor aborda as redes sociais como um novo campo sociológico que não pode ser explicado nem pelos paradigmas tradicionais holistas, nem pelos individualistas. A sociologia relacional fundada nas redes é uma alternativa para superar o dilema sociológico entre agência e estrutura. Martins mostra dois grupos de autores que abordam a temática das redes. O primeiro grupo compreende redes apenas como uma metáfora. As visões simplistas sobre as redes não se preocupam em aprofundarem-se Cadernos de Estudos Sociais, n. 29, v. 1, jan.-jun
4 histórica, cultural e simbolicamente. Localiza neste grupo de autores Adler-Lomintz, Molina, Requena Santos, dentre outros. O segundo grupo de autores busca teorizar e sistematizar a ideia de redes com o fim de intervir na realidade social, como é o caso das redes sócio técnicas (Latour, Castells, Callon, Musso). Na perspectiva da network analysis, as redes são compreendidas como mobilização causal de recursos e informação com objetivos estratégicos e interessados, é uma visão que Martins aponta como utilitarismo individualista (Granovetter, Putnam, Coleman, Lin, Bourdieu). A abordagem interacionista comprometida com a experiência da ação social aberta à articulação do objetivo com o subjetivo resulta de uma série de estudos que avançam nesta direção, feitos de forma discreta por Simmel e Mauss e de forma declarada por Nobert Elias e Melluci. No quinto capítulo intitulado a teoria democrática e os fundamentos intersubjetivos da experiência associativa: uma reflexão inspirada no dom, o autor propõe pensar democracia a partir da gramática da emancipação (Laclau, 2000) e abandonar a tese clássica oferecida pela filosofia do sujeito, valorizando temas como diversidade, dom, descolonialidade, envolvendo pessoas morais individuais e coletivas, na organização das esferas públicas contemporâneas. Martins cita críticas feitas a Habermas por teóricos antiutilitaristas como Honneth (2003), Souza (2003) e Taylor (2005). Essas críticas demonstram a importância de mergulhar profundamente na ontologia moral e rever os processos de organização e de identificação de lugares nas esferas cultural e social para além do mundo da vida habermasiano. Sugere que essa revisão possibilita colocar em pauta o entendimento de que a democracia enquanto processo de pactos intersubjetivos se baseia em aspectos de ordem moral e em significados diversos inscrito nas entranhas da ordem sociocultural e histórica de cada sociedade. Martins utiliza a ideia de Marcel Mauss acerca da sociedade enquanto fato social total e sistemas formados por elementos materiais e simbólicos que participam com igual valor na organização da sociedade para repensar a forma de Habermas abordar a democracia. Ressalta a noção de obrigação e liberdade como componentes essenciais do dom democrático (Godbout, 2007; Caillé, 2000). No sexto e último capítulo, o autor propõe abordar a temática da família repensando o modelo de democracia a partir das transformações vivenciadas pelo modelo de família moderna. O autor sugere que a compreensão descolonial de família vai além do laço consanguíneo, da sexualidade e do trabalho, que apesar de continuarem aparecendo como 214 Cadernos de Estudos Sociais, n. 29, v. 1, jan.-jun. 2014
5 elementos relevantes na caracterização da família moderna, tais elementos são insuficientes para explicar os novos desafios desta instância não só do mundo da vida, mas também das instituições sociais em geral e as políticas públicas e socais em particular. Cadernos de Estudos Sociais, n. 29, v. 1, jan.-jun
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