Eu tive três avôs. O avô paterno, Eugênio, não conheci. Soube que trabalhava durante o dia na Usina de Açúcar Santa Helena e à noite dava aulas de

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2 Meu vô João Eu tive três avôs. O avô paterno, Eugênio, não conheci. Soube que trabalhava durante o dia na Usina de Açúcar Santa Helena e à noite dava aulas de alfabetização para plantadores de cana em Ponte Nova, Minas Gerais. Meu avô materno chamava-se Joaquim e gostava que o chamassem carinhosamente de vô Quim. Também não o conheci. E, não se sabe bem por quê, quando vô Quim se casou pela segunda vez, minha mãe, Sinhá, que nasceu em Ponte Nova, menina ainda foi adotada por um imigrante italiano, Giovanni Ferdinando. Carpinteiro, ele fabricava caixões, móveis pesados, telhados. Também cortava cana nas fazendas da região na época da colheita. Era uma pessoa pacata. E, por causa desses trabalhos, era conhecido e circulava pela cidade folgadamente. Mas em 1942, quando nosso governo declarou guerra aos países do Eixo Japão, Alemanha e Itália e os brasileiros passaram a ver com desconfiança a presença dos imigrantes, Giovanni, que dizia sempre amar o Brasil, decidiu naturalizar-se com o nome de João Fernandes. Foi aí que virou vô João. Frequentemente vô João sentava-se na escada de casa para limpar suas ferramentas. Nessas horas, os netos costumavam reunir-se ao redor dele para ouvir as histórias que gostava de contar, que eram muitas. Ele vivia dizendo, saudoso, que tinha nascido no país das histórias e aprendido a profissão de carpinteiro com um velhinho que morava numa casinha bucólica no final da rua onde ele, Giovanni, nasceu e viveu até vir para o Brasil. Era um lugarejo 7

3 chamado Casino, perto de Roma, na Itália. E o velhinho era um habilidoso construtor de bonecos. O nome dele era... como era mesmo? e coçava a cabeça, pensativo. Gepato, Genésio, Gepito... não me lembro direito. Faz muitos anos que aprendi a ser carpinteiro, sabem... Justificava assim a falta de memória. A partir daí, vô João contava que um dia o velhinho construiu um boneco de pau... E lá vinha a história do Pinóquio. Quando era a vez de Cinderela, ou Cenerentola, como dizia, fazia questão de reforçar que, em certa época, foi vizinho de uma casa onde um dia viu entrar a comitiva do príncipe que morava no castelo da região. Um lacaio conduzia sobre uma almofada um lindo sapatinho transparente, e da casa saíram com a moça que trabalhava nos afazeres domésticos. Ela chorava de felicidade. É verdade, vô, você viu? perguntávamos, surpresos com a revelação. É claro respondia ele, balançando afirmativamente a cabeça branca. E completava dizendo que tinha sido convidado para o baile do casamento e, para nossa diversão, o relato se alongava. Assim era vô João. Mas havia uma história que ele insistia em repetir e que o deixava sempre emocionado. Curiosamente, vô João não ria quando a contava. Procurando convencer de que o que falava era verdade, sua expressão se tornava grave e, para completar a encenação, abria uma velha caixa metálica de onde retirava antigas fotografias de quadros, com o verso manuscrito como se fossem cartões-postais. Cada uma delas tinha um endereço de remessa diferente, de cidades e vilarejos da região da serra da Mantiqueira, sul de Minas Gerais. 8

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5 As pinturas eram de um artista chamado Camilo Amarante Lobo, e o fotógrafo era um amigo de vô João, Cosme Zanone, que havia partido para o Brasil como imigrante. Nos postais, dizia vô João, Cosme contava que ao chegar fora integrado a um grupo e enviado para uma fazenda de cultivo de café no vale do Paraíba, na divisa entre São Paulo e Rio de Janeiro. Mas, desgostoso com as condições de trabalho, resolveu ir para o sul de Minas. Tentaria estabelecer-se como fotógrafo em alguma cidade. Nessa época, vô João ainda morava em Casino. Quando vô João mostrava as fotografias, amareladas pelo tempo e manuscritas num italiano e caligrafia ininteligíveis, os adultos riam. Ele ficava nervoso, xingava, misturando o italiano e o português, provocando entre os incrédulos diversão ainda maior. Logo depois, como num passe de mágica, voltava-se para nós, retomando normalmente a história. E falava do interesse provocado pelo que o amigo contava nos postais e pelo artista desconhecido de um país tão distante como o Brasil que, em seus quadros, demonstrava conhecimento e senso de humor raros para a época. Nesse momento, vô João silenciava e passava a mão no rosto como se estivesse revivendo a preocupação que sentira com a falta de notícias de Cosme. Sabem o que resolvi fazer após algum tempo? A pergunta direta nos mantinha atentos à história. Vir para o Brasil como imigrante e procurar meu amigo! 10