O PAPEL HEURÍSTICO DE UMA FIGURA GEOMÉTRICA: O CASO DA OPERAÇÃO DE RECONFIGURAÇÃO 1
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1 O PAPEL HEURÍSTICO DE UMA FIGURA GEOMÉTRICA: O CASO DA OPERAÇÃO DE RECONFIGURAÇÃO 1 Cláudia Regina Flores UFSC - crf1@mbox1.ufsc.br Méricles Thadeu Moretti UFSC - mericles@mtm.ufsc.br O funcionamento heurístico de uma figura O papel intuitivo e heurístico que as figuras têm na representação geométrica é uma opinião comumente admitida, isto porque as figuras permitem analisar uma situação em conjunto, são um meio mais direto para explorar os diferentes aspectos, antecipar os resultados e selecionar uma solução para o problema (Duval, 1995) De fato, as figuras representam um auxílio na resolução de problemas. Mas, para a maioria dos alunos, elas não têm cumprido este papel. Normalmente, trabalha-se com as figuras numa abordagem exclusivamente psicológica da percepção, aquela imediata, a qual não dá condições ao aluno para olhar a figura sob outros aspectos. Quer dizer, olhá-la de outros modos, sob outras configurações, o que implica na correspondência entre a visão de uma seqüência de sub-figuras pertinentes, a união destas sub-figuras formando um todo, e ainda, a correspondência da figura e o texto, possibilitando, enfim, a exploração heurística. A percepção da organização do conjunto das formas de uma figura leva a realização de muitas reconfigurações, daquelas que são visíveis e possíveis, ou seja, a visão de partes reagrupadas num novo todo. Trata-se, portanto, da apreensão operatória da figura. Segundo Duval, esta forma de apreensão é centrada sobre as modificações possíveis de uma figura inicial e, em seguida, sobre as reorganizações perceptivas que estas modificações acarretam. (1988b, 1 Parte das reflexões apresentadas neste texto são inerentes à dissertação de mestrado intitulada Geometria e Visualização: desenvolvendo a competência heurística através da reconfiguração, defendida pela primeira autora, em 1997, no Programa de Pós Graduação em Educação da UFSC.
2 2 p. 62). Ela permite dar um sentido dinâmico às características da figura, podendo-se, assim, fazer manipulações, física ou mental, sobre o todo ou parte da figura. Como toda figura pode ser modificada de muitas maneiras, Duval (1988b) distinguiu três grandes tipos de modificação: mereológica, ótica e posicional. Em particular, aqui, trataremos principalmente da modificação mereológica por possibilitar o uso da operação de reconfiguração e, sobretudo, por possibilitar o uso de figuras com sua função heurística na resolução de problemas matemáticos. Análise de uma figura em relação às possibilidades heurísticas Para analisarmos uma figura geométrica quanto às possibilidades heurísticas é preciso entender e determinar as unidades figurais elementares que semioticamente constituem uma figura, bem como as sub-figuras que a compõem. Isso porque é justamente sobre estas unidades figurais que realizamos tratamentos específicos, ou seja, tratamentos figurais. Faz-se importante não confundirmos unidade figural com sub-figura: unidade figural são as formas de base nas quais toda figura pode ser analisada; sub-figura é o resultado de uma divisão da figura, que depende das necessidades do problema dado podendo constituir-se de uma unidade figural ou uma combinação de unidades figurais. As unidades figurais elementares são formas identificáveis que não podem ser decompostas em formas mais simples, a menos que mudemos de dimensão, nem podem ser distinguidas sobre critérios de tamanho. Baseando-se nestas condições e, a fim de determinar as unidades figurais que semioticamente constituem uma figura geométrica, Duval (1995, p.175), reagrupou as variações visuais em dois grandes grupos.
3 3 O quadro seguinte tem o objetivo de mostrar como ele fez isto: 1 o grupo 2 o grupo Variações ligadas ao número de dimensão Variações qualitativas Dimensão zero Dimensão um Dimensão dois Forma Tamanho ou orientação Cor O cruzamento dos valores da variável visual qualitativa com a variável de dimensão permite, então, determinarmos os elementos constitutivos de uma figura, ou seja as unidades figurais. Para mostrar a heterogeneidade destas unidades figurais, e ainda aquelas que são pertinentes ao registro das figuras geométricas, Duval (1995), oferece a seguinte classificação: Daí surgem as seguintes constatações: a) Uma figura geométrica é sempre uma configuração de pelo menos duas destas unidades figurais elementares. ( Duval, 1995, p. 178). Quer dizer, por exemplo, que um quadrado com suas diagonais, uma reta e um ponto marcado sobre esta reta ou ao redor desta reta, um círculo e seu centro, são configurações de duas unidades figurais elementares, formando, assim, uma figura geométrica.
4 4 b) As unidades figurais elementares de dimensão 2 (contorno fechado de uma zona) são estudadas, em geometria, como configurações de unidades figurais de dimensão 1 (forma linha ). ( idem). Isto porque, quando se passa da representação figural ao discurso da língua natural, fazse, automaticamente, uma mudança de dimensão, pois no registro das figuras há predominância perceptiva das unidades de dimensão 2, enquanto que no registro do discurso em língua natural, onde são definidos os objetos representados pela figura, há predominância das unidades de dimensão 1 e 0 (ibidem, p ). c) Um mesmo objeto matemático pode ser representado por unidades figurais diferentes (ibidem, p. 179). Por exemplo, o ponto pode ser representado por três unidades figurais diferentes: a comum, de dimensão 0, ou seja, um ponto simplesmente, e as de dimensão 2, como no caso da interseção de duas retas, ou semi-retas. Explorar uma figura geométrica, e isto em função de suas possibilidades heurísticas, leva a uma seqüência de sub-figuras. Neste caso, a apreensão operatória permite ver uma variedade de sub-figuras que não são vistas imediatamente ao primeiro olhar. Estas sub-figuras são diferentes reorganizações que representam algumas ou todas as unidades figurais elementares da figura inicial. E, mesmo que sejam diferentes reorganizações, elas têm em comum as unidades figurais de dimensão 0, 1 ou 2, da figura inicial. Daí ser possível a formação de seqüências diferentes de sub-figuras. Modificação mereológica de uma figura A modificação mereológica consiste na divisão de uma figura em partes, para em seguida combiná-las em uma outra figura. É uma modificação que mostra a figura como um todo fracionado, ou seja, ela se faz em função da relação entre parte e todo (Duval 1988b, p. 62). Vale notar que a modificação mereológica de uma figura pode não ser única. Além disso, ela pode ser global ou analítica: global se ela é centrada sobre a divisão de toda a figura inicial, analítica se é centrada sobre as partes elementares desta figura (Mesquita, 1989a, p.11).
5 5 Ainda, o fracionamento realizado numa figura pode ser homogêneo ou heterogêneo. No caso em que as partes obtidas têm a mesma forma que o todo, o fracionamento é dito homogêneo, se não, fala-se de um fracionamento não- homogêneo (Duval, 1988b, p. 64). Note que na primeira figura as partes obtidas pelo fracionamento têm a mesma forma que o todo. Na segunda e terceira figuras, tem-se formas diferentes que aquela do todo. Já na quarta figura podemos notar formas iguais ao do todo e formas diferentes. O fracionamento de uma figura, ou o exame desta a partir de suas partes elementares permite a aplicação da operação de reconfiguração. A operação de reconfiguração A operação de reconfiguração consiste, basicamente, na complementaridade de formas, ou seja, as partes obtidas pelo fracionamento podem ser reagrupadas em sub-figuras incluídas na figura inicial. Consiste, portanto, em reorganizar uma ou muitas sub-figuras diferentes de uma figura dada, em uma outra figura. Uma sub-figura pode ser uma unidade figural elementar de dimensão 2 ou um reagrupamento de unidades figurais elementares, igualmente de dimensão 2. Se for o caso, pode-se aumentar o número das partes da figura, fazendo um fracionamento de suas unidades elementares de dimensão 2. Desta forma, a reconfiguração é um tratamento que consiste na divisão de uma figura em sub-figuras, na sua comparação e no seu reagrupamento eventual em uma figura de um contorno global diferente. (Duval, 1995, p.185). A seguir, exemplos para mostrar o recurso à operação de reconfiguração na resolução de problemas em matemática.
6 6 1 o Exemplo Esta figura é formada por vinte quadradinhos. Divida-a em quatro pedaços de mesma área e mesma forma. Marque sobre a figura os traços da divisão, explicando seu procedimento. Para resolver este problema a operação de reconfiguração se faz essencial. Notemos que o fracionamento da figura já foi dado, o que auxilia no uso da operação. Porém, o reagrupamento pertinente das partes elementares formam sub-figuras que não são convexas (como se pode perceber na figura solução apresentada a seguir) e além disso, não são heterogêneas em relação à forma da figura inicial. Tudo isto pode inibir, e de certa forma dificultar, o encontro da reconfiguração pertinente. No caso dado a seguir, para dividir em quatro lotes de mesma área e forma (a solução é apresentada na figura à direita), as sub-figuras conservam a forma original não-convexa (a menos de rotações para duas delas).
7 7 2 o Exemplo Mostrar que a soma das medidas dos ângulos internos de um triângulo mede 180 o. Para mostrar este resultado, reconfigura-se os ângulos do triângulo em um ângulo plano, o que exige a substituição de 1' e 2' respectivamente em 1 e 2: De forma semelhante ao exercício anterior, na figura a seguir, sendo dado os ângulos a e b, para calcular o ângulo x, a reconfiguração de x em x' é a passagem para este cálculo. Observamos que a reta s, paralela a r, é um elemento que, dependendo da formulação que é dada, pode não pertencer o problema e que, no entanto, é um passo heuristicamente importante e que só se torna possível tendo em vista a reconfiguração de 1' e 2' respectivamente em 1 e 2. De forma semelhante podemos afirmar o mesmo a respeito do segmento de reta que destaca x' no outro problema. Texto e Figura A modificação realizada numa figura para fins heurísticos deverá, obviamente, estar de acordo com o que é dado e pedido no enunciado, ou seja, a modificação pertinente é dependente daquilo que é solicitado e daquilo que é descrito no texto do problema. Isso porque deve haver uma interação entre os tratamentos figurais, que por sua vez possibilitam a função heurística da
8 8 figura, e o discurso dado no problema que, neste caso, solicita definições, teoremas, objetos específicos ao texto. Há que se considerar, portanto, que a produtividade heurística de uma figura está ligada, de um certo modo, à relação entre a figura e o texto. Ora, uma figura não é autônoma, ao contrário, ela é dependente de um texto discursivo. Por esta razão uma mesma figura pode servir de suporte para diferentes problemas. Contrariamente, um texto discursivo pode dar margens a diferentes representações figurais. Porém, a interação entre a figura e o texto, ou a descoberta na figura de um caminho para a solução do problema, o que implica aqui na descoberta de um modo de reconfiguração que esteja de acordo com o que é solicitado no problema, pode ser dificultada por fenômenos que Duval (1988a, 1988b, 1995) chamou de não-congruência. Estes fenômenos surgem principalmente no momento em que o que é pedido no texto não é imediatamente visível na figura. Isso porque a primeira visão de uma figura, ou seja a apreensão perceptiva, tende a privilegiar algumas sub-figuras em detrimento de outras. Ainda, é preciso interagir figura e texto numa relação constante que, além de tudo, mobiliza conceitos matemáticos dados pelo texto. Ora, tudo isto fatalmente dificultará, e até mesmo, impedirá, o encontro da reconfiguração que pode possibilitar a solução do problema, ou seja, o encontro do caminho heurístico para a solução matemática do problema. Vejamos o seguinte exemplo em que uma mesma figura poderá servir como suporte heurístico para problemas distintos. Sabe-se que o tratamento operatório na figura deverá estar de acordo com aquilo que é solicitado no problema. Por exemplo, para encontrar o perímetro da região hachurada dessa figura busca-se uma reconfiguração que não será a mesma para encontrar a área.
9 9 Enfim, o sucesso da exploração de uma figura no quadro de um problema dado, vai então depender da articulação entre essa apreensão operatória da figura e um jogo discursivo de inferências o qual mobiliza uma malha de definições e de teoremas (Duval, 1995, p.191). Daí o aparecimento de fenômenos de não congruência. O que significa no encontro adequado de subfiguras, seu reagrupamento pertinente, que estejam ainda atreladas as definições e, possivelmente a teoremas, mobilizadas, para chegar à solução matemática do problema. Conclusão A operação de reconfiguração é importante já que é a prática dos movimentos realizados numa figura que permite seu destaque heurístico. Além disso, habilidades tais como visualizar uma figura em diferentes posições, prever conseqüências da aplicação de determinados movimentos sobre figuras geométricas, tratar de diferentes formas as informações visuais, podem ser desenvolvidas mediante a aprendizagem desta operação figural. Há que se considerar, no entanto, que a operação de reconfiguração não se faz evidente, tampouco de maneira simples, para muitas das figuras que usamos no ensino. Fatores diversos podem inibir, e até mesmo dificultar ao invés de auxiliar, o uso desta operação. Contudo, a busca por caminhos heurísticos, para a resolução de problemas, possibilita lidar com as figuras para além da função estritamente perceptiva, ou seja, com a apreensão operatória. Palavras-chave: reconfiguração geométrica, visualização, registro de representação, heurística Bibliografia DUVAL, R. Ecarts sémantiques et cohérence mathématique: introduction aux problèmes de congruence.. Annales de Didactique et de Sciences Cognitives. IREM de Strabourg, 1988a. DUVAL, R. Approche cognitive des problèmes de géométrie en termes de congruence. Annales de Didactique et de Sciences Cognitives. IREM de Strabourg, 1988b. DUVAL, R. Sémiosis et Pensée Humaine: Registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. Bern: Peter Lang., FLORES-BOLDA, Cláudia R. Geometria e Visualização: Desenvolvendo a competência heurística através da reconfiguração.152 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis
10 10 MESQUITA, A. L influence des aspects figuratifs dans l argumentation des élèves en géométrie.. Thèse de doctorat. Université Louis Pasteur, 1989.
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