A expansão mundial da Ayahuasca: tensões entre religiosidade curadora e psicoterapia

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1 A expansão mundial da Ayahuasca: tensões entre religiosidade curadora e psicoterapia La expansión mundial de la Ayahuasca: tensiones entre religiosidad curadora y psicoterapia Resumo Rodrigo Américo Aguiar 1 Ayahuasca é um dos nomes da bebida de origem amazônica que possui propriedades psicoativas, sendo preparada geralmente a partir da decocção do caule do cipó Banisteriopsis caapi juntamente com as folhas do arbusto Psychotria viridis. Diferentes nomes são dados a esta bebida em diferentes regiões amazônicas, tais como Yagé, Kaapi, Kamampi, Nixi Pae, entre outros. Esta bebida é conhecida como Daime e Vegetal, nas religiões brasileiras do Santo Daime e da União Do Vegetal. Com a criação e expansão das chamadas religiões ayahuasqueiras, mas também com a existência dos grupos chamados neo-ayahuasqueiros, esta bebida deixou de estar unicamente em território amazônico e atualmente se encontra amplamente difundida no meio urbano, combinando diferentes práticas e saberes no que ficou conhecido como a reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Alguns núcleos ayahuasqueiros oferecem o serviço de psicoterapia com ayahuasca. Há grande diferença e polêmica em torno de tais práticas. O primeiro ponto se dá no que está sendo chamado de terapeutização da Ayahuasca, isto é, o emprego da bebida para fins estritamente terapeuticos que desconsideraria a dimensão do ritual e do sagrado. Contudo, independente das práticas de psicoterapia com Ayahuasca, há um aproveitamento dos usuários de Ayahuasca na promoção de saúde mental. Nesse sentido não seria necessária uma intervenção clínica com Ayahuasca, mas os próprios adeptos da Ayahuasca poderiam aproveitar suas experiências para o cuidado de si, de suas emoções, de seu universo simbólico, não excluindo a possibilidade de levar para uma sessão de psicoterapia convencional os conteúdos que emergem nos rituais ayahuasqueiros. Palavras-Chave: Ayahuasca; Cura; Psicoterapia; Religiosidade. Resumen Ayahuasca es uno de los nombres de la bebida de origen amazónico que posee propiedades psicoativas, siendo preparada generalmente a partir de la decocción de la liana Banisteriopsis caapi junto a las hojas del arbusto Psychotria viridis. Diferentes nombres son dados a esta bebida em diferentes regiones amazónicas, tales como Yagé, Kaapi, Kamampi, Dapá, Natema, Hoasca, Nixi Pae, entre otros. Esta bebida es conocida como Daime y Vegetal en las religiones brasileñas del Santo Daime y de la União do Vegetal. Con la creación de las llamadas religiones ayahuasqueras, pero también con la existencia de los grupos llamados neo-ayahuasqueros, esta bebida dejó de estar unicamente en territorio amazónico y actualmente se encuentra ampliamente difundida en medio urbanno, mezclando diferentes prácticas y saberes en el que quedó conocido como la reinvención del uso de la ayahuasca en los centros urbanos. Hay núcleos ayahuasqueros que ofertan el servicio de psicoterapia con ayahuasca. Hay gran diferencia y controversia en torno este tipo de práctica. El primer punto se da en el que está siendo llamado terapeutización de la Ayahuasca, es decir, el empleo de la bebida para fines estrictamente terapeuticos que no considera la dimensión del ritual y del sagrado. Sin embargo, independientemente de las prácticas de psicoterapia con la Ayahuasca, hay un aprovechamiento de los usuarios de Ayahuasca en la promoción de salud mental. En ese sentido, no sería necesaria una intervención clínica con Ayahuasca, pero los propios adeptos de la Ayahuasca podrían aprovechar sus experiencias para el cuidado de si, de sus emociones, de su universo simbólico, no excluyendo la posibilidad de llevar para una seción de psicoterapia convencional los contenidos que emergen en los rituales ayahuasqueros. 1 (Psicólogo, pós-graduando (mestrado) no Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos - UNILA; Foz do Iguaçu, Paraná, Brasil; rodrigoamericoaguiar@gmail.com). 1

2 Palabras claves: Ayahuasca; Cura; Psicoterapia; Religiosidad. 1. Introdução Ayahuasca é um dos nomes da bebida de origem amazônica que possui propriedades psicoativas, sendo preparada geralmente a partir da decocção do caule do cipó Banisteriopsis caapi (popularmente conhecido como Jagube, Mariri, entre outros) juntamente com as folhas do arbusto Psychotria viridis (popularmente chamada de Chacrona, Rainha, entre outros). Diferentes nomes são dados a esta bebida em diferentes regiões amazônicas, tais como Yagé, Kaapi, Kamampi, Dapá (FERNANDES, 1986), Natema, Hoasca, Nixi Pae, entre outros (PIRES; OLIVEIRA; YONAMINE, 2010). Esta bebida é conhecida como Daime e Vegetal, nas religiões brasileiras do Santo Daime e da União Do Vegetal (UDV). A palavra Ayahuasca tem origem na língua quéchua que traduzida para o português seria algo como corda dos mortos ou trepadeira das almas aya quer dizer pessoa morta, alma, espírito e wasca significa corda, liana, cipó (LUNA, 1986 apud PIRES; OLIVEIRA; YONAMINE, 2010). Importante ressaltar que a palavra Ayahuasca é a mais usada na comunidade científica para designar esta bebida e, por isso, é o nome empregado aqui. Porém há certa inadequação deste uso genérico do nome sob a perspectiva indígena e sob a perspectiva religiosa, o que caracteriza os estudos sobre Ayahuasca como um campo altamente heterogêneo. Com a criação e expansão das chamadas religiões ayahuasqueiras, mas também com a existência dos grupos chamados neo-ayahuasqueiros, esta bebida deixou de estar unicamente em território amazônico e atualmente se encontra amplamente difundida no meio urbano, em grande parte do território brasileiro, além de outros países e continentes. Esse boom da Ayahuasca levou diversos pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento a se interessar pela pesquisa em torno desta bebida, abordando este tema com diferentes olhares e finalidades. Considerado como um campo bastante amplo e complexo, o estudo da Ayahuasca exige um esforço intelectual que supere a visão estanque das disciplinas. Não há como desconsiderar, por exemplo, os estudos farmacológicos sobre os efeitos no sistema nervoso humano das diferentes substâncias químicas presentes na Ayahuasca. Por outro lado, ficam em evidência os aspectos culturais (ético-estéticos) nos usos da Ayahuasca a presença do guia do ritual (xamã, pajé, mestre, madrinha, padrinho, etc.), a musicalidade como fio condutor da experiência, as performances durante o ritual, entre outros. De acordo com Langdon (2013), são as performances que agem como catalizadoras da experiência e garantem a eficácia do ritual. Sendo assim, pode-se dizer que é com base nessas ideias que o Estado brasileiro reconhece apenas o uso religioso da Ayahuasca, em detrimento de outros usos que supostamente desconsideram tais aspectos ético-estéticos, como os usos recreativo e terapêutico 2. No Brasil, os estudos sobre a Ayahuasca se intensificaram na década de 1980, sendo principalmente estudos antropológicos sobre sua origem amazônica entre os mais de 70 povos indígenas habitantes do Brasil, Peru, Colômbia, Venezuela, Bolívia e Equador (SANTOS, 2006). Há também uma atenção especial na formação e desenvolvimento das chamadas religiões ayahuasqueiras que, a partir da década de 1920, surgiram de forma sincrética na Amazônia brasileira o Santo Daime, a UDV e a Barquinha (LABATE, 2002). Porém, outros campos do saber, como a farmacologia e a psicologia, têm demonstrado interesse neste assunto, tendo em vista os efeitos terapêuticos atribuídos ao uso da bebida. Este crescente 2 No caso dos usos terapêuticos da Ayahuasca, o Estado brasileiro apenas indica que não há estudos suficientes para assegurar tais usos, o que estimula a pesquisa nessa área. 2

3 interesse científico em torno da Ayahuasca também está relacionado com a expansão das religiões e dos diferentes grupos que fazem o uso ritualizado do chá. O Santo Daime e a UDV são as principais instituições religiosas que têm se expandindo nos últimos anos e se encontram hoje em vários países do mundo como Espanha, França, Holanda, Estados Unidos e Japão (SANTOS; MORAES; HOLANDA, 2006), além de países latino-americanos. 2. Ayahuasca e cura De acordo com o relato de adeptos das religiões ayahuasqueiras e de pessoas que utilizam ou já utilizaram a Ayahuasca de forma ritualizada, as experiências com o chá permitem um profundo autoconhecimento e auto-análise, provocando efeitos terapêuticos em diferentes quadros clínicos, tais como dependência química, depressão e transtornos de ansiedade, além de ser considerada como nobre ferramenta de evolução espiritual (SANTOS, 2006). A expansão da Ayahuasca para o meio urbano foi estudada por Labate (2004), descrevendo o uso da Ayahuasca marcado por influências do Orientalismo e de vocabulários provenientes do universo New Age e da Psicologia, além de elementos do Cristianismo, Espiritismo e Umbanda. Contudo, conforme pontua Mercante (2003), qualquer trabalho que busque compreender a Ayahuasca deve levar em consideração como que o chá é utilizado na sua fonte, em seus locais de origem entre os povos indígenas da Amazônia. Para o povo Kaxinawá a Ayahuasca é chamada de Nixipae, sendo que o estado alterado de consciência induzido pelo consumo desta bebida tem relação direta com os sonhos e com a realidade espiritual do mundo (LUZ, 2002). Desta forma, perceber o lado oculto da realidade é a razão pela qual se ingere o Nixipae, sendo que seu uso teria objetivo divinatório e de preparação para a morte (LUZ, 2002). Para os Yaminawa a bebida que tem por base a Banisteriopsis Caapi é chamada de Shori e é esta bebida que possibilita o acesso ao mundo dos espíritos, sendo que o contato com os espíritos é necessário e desejado, porque desses se obtém conhecimento e poder (LUZ, 2002). Entre os Ashaninka, a Banisteriopsis Caapi é chamada de Kamarampi, palavra que vem do verbo kamarank, que significa vomitar (LUZ, 2002, p. 42). Para este povo há profunda relação entre beber Kamarampi e a retidão moral e a continuidade da vida, sendo um dos elementos básicos de sua cosmologia, mitologia e sistema religioso (LUZ, 2002). Para os Airo-pai a Ayahuasca é chamada de Yagé e é utilizada para entrar em contato com o mundo invisível com a intenção de obter conhecimento e proteção, sendo que os cantos são meios de orquestrar e estruturar visões culturalmente específicas para cada um dos participantes da sessão (LUZ, 2002). Langdon (2013) explica que, para os povos amazônicos, a enfermidade não está limitada aos processos biológicos, mas se refere a fatores sociais e espirituais, em um universo dotado de intenção e povoado de diversos seres capazes de causar enfermidades. Ademais, diferentemente dos argumentos biomédicos que afirmam que a fé é necessária para realizar curas milagrosas, Langdon (2013) demonstra que são os aspectos da performance que produzem a eficácia do ritual e da cura. Groisman (1999) realizou um estudo pioneiro que explora as possíveis ligações entre a cosmologia do Santo Daime e as cosmologias indígenas. Utilizando o conceito de práxis xamânica, evidencia como que os grupos sociais recorrem, individual ou coletivamente, a esta práxis que se constitui num efetivo mapeamento do desconhecido, território dos infortúnios, das doenças e dos conflitos (GROISMAN, 1999, p. 41). Silva (1985, p. 16 apud Groisman, 1999) define a concepção daimista de doença enfatizando os traços holísticos e integrativos a doença é mais que uma simples 3

4 manifestação de uma disfunção orgânica individual; na verdade, inscreve-se num quadro de referência cósmico. Portanto, a doença para os daimistas manifesta-se corporal e espiritualmente enquanto sinal de desarmonia, que pode ocorrer em função da ignorância das leis que regem o mundo social e espiritual, como pode ser a intenção de transgredir estas leis (GROISMAN, 1999, p. 114). Contudo, não há como fugir da questão farmacológica presente na cultura da Ayahuasca. Esta bebida, que pode ser preparada de diferentes maneiras, apresenta fortes propriedades psicoativas devido a seus componentes químicos que interagem com o sistema nervoso central após ser ingerida. Os principais componentes químicos da Ayahuasca são os alcalóides N,N dimetiltriptamina (DMT), harmina, tetrahidroarmina (THH) e harmalina, sendo que a DMT é encontrada nas folhas da Psychotria viridis e os demais estão presentes no cipó Banisteriopsis caapi (SANTOS, 2006). O estudo das substâncias psicoativas - e seus potenciais neuroquímicos e psicoterapêuticos - é objeto de interesse científico desde o século XIX (PIRES; OLIVEIRA; YONAMINE, 2010). Esse interesse foi intensificado com os avanços da neurofisiologia, que permitiram um entendimento sofisticado a respeito dos mecanismos de ação das diferentes substâncias no sistema nervoso central. Contudo, ainda estamos engatinhando na compreensão das interações entre as substâncias psicoativas com outras substâncias presentes em nosso sistema nervoso central, como os neurotransmissores, por exemplo. Assim, não é tarefa fácil estabeler relações entre as substâncias psicoativas, os neurotransmissores, a atividade cerebral e os diferentes estados de consciência (GRINSPOON & BAKALAR, 1997). Os neurocientistas caracterizam o efeito da Ayahuasca como agonista serotoninérgico, uma vez que seus principais componentes químicos são molecularmente semelhantes à serotonina, que é um neurotransmissor presente no sistema nervoso de boa parte dos organismos vivos (SANTOS, 2006). Vale lembrar que a DMT, apesar de ser proibida em muitos países, é uma substância endógena, ou seja, está naturalmente em nosso sangue, urina e fluído cérebro-espinhal, além de estar presente em muitas plantas e diversos animais (SANTOS, 2006). Com a descoberta da DMT endógena em humanos, estudos analisaram a correlação dos níveis de DMT em fluídos humanos e a esquizofrenia, demonstrando um aumento na excreção urinária desta substância em pacientes esquizofrênicos (JACOB & PRESTI, 2005 apud PIRES; OLIVEIRA; YONAMINE, 2010). No entanto, pouco se sabe a respeito das funções da DMT endógena, sendo associada à glândula pineal (ou epífese), com efeitos ansiolíticos e tendo relações com os fenômenos de transe religioso e experiências de quase morte (SANTOS, 2006). A Ayahuasca também atua como inibidora da enzima monoaminoxidase (MAO), sendo esta atividade relacionada com as beta-carbolinas harmina, harmalina e tetrahidroarmina (SANTOS, 2006). Assim, se a DMT for ingerida por via oral e de forma isolada ela é degradada pela MAO, não causando reações nem efeitos psicoativos. Porém, quando ingerida juntamente com substâncias inibidoras da MAO, a DMT não sofre a chamada degradação de primeira passagem no trato gastrintestinal, possibilitando que fique disponível para ser absorvida (PIRES; OLIVEIRA; YONAMINE, 2010). 3. Ayahuasca entre religiosidade e psicoterapia A presente pesquisa, ainda em andamento, estava inicialmente direcionada aos efeitos terapêuticos atribuídos ao uso da bebida. O interesse maior estava na identificação de tais 4

5 efeitos com e sem os elementos rituais e religiosos, isto é, até que ponto é possível dizer que a bebida (e sua composição química) possui propriedades terapêuticas e até que ponto os elementos rituais como símbolos, músicas, a figura do guia espiritual e a noção de performance também estão relacionados aos efeitos de cura da bebida. Os estudos consultados a esse respeito apontam para uma combinação entre esses dois polos da experiência, atividade psicoativa (neuroquímica) e eficácia ritual. Porém, outras questões se levantaram a partir da constatação da existência de centros ayahuasqueiros que oferecem o serviço de psicoterapia com Ayahuasca. A primeira delas se refere ao uso da Ayahuasca fora do contexto ritual, sem a caracterização da bebida enquanto sacramento, desvinculando-a da esfera do sagrado. Para muitos adeptos da Ayahuasca a bebida perde seu potencial quando consumida fora do contexto ritual. Mercante (2013) considera a Ayahuasca como um fenômeno de alta complexidade, sendo possível a constituição de um campo específico de pesquisa. Ele estudou os centros onde a Ayahuasca é utilizada com fins terapêuticos, sobretudo na recuperação de dependentes químicos, e concluiu que a Ayahuasca constitui um modelo único de intervenção, se diferenciando dos demais modelos. Atualmente, podemos dizer que há um movimento de terapeutização da Ayahuasca, isto é, o uso da bebida para fins terapêuticos, seja no tratamento de um problema específico seja no cuidado de si e/ou na busca por autoconhecimento. Nesse sentido, existem dois grandes centros de tratamento que utilizam a Ayahuasca: o Takiwasi, na cidade de Tarapoto, Perú, e o Instituto de Etnopsicologia Amazônica Aplicada (IDEAA) no município de Pauini (AM), no Brasil (LABATE et. al., 2008). Embora apresentem diferenças quanto aos usos da Ayahuasca e ao tratamento em si, estes centros são considerados pioneiros como espaços ayahuasqueiros terapêuticos não religiosos (LABATE et. al., 2008). Contudo, é preciso ressaltar que tanto um como o outro apresentam conexões com os saberes tradicionais das populações amazônicas. No caso do Takiwasi há uma forte proximidade com o vegetalismo peruano e suas concepções mágico-religosas. Já no IDEAA há uma relação com as crenças e os rituais do Santo Daime. No Brasil existem outros centros ayahuasqueiros onde são atendidas pessoas que buscam ajuda em função de um problema de saúde, principalmente em casos de transtorno por abuso de substâncias. Mercante (2013) menciona o Centro de Recuperação Caminho de Luz (Rio Branco, AC), o Centro Espiritual Céu Sagrado (Sorocaba, SP) e o Centro Espiritual Céu da Nova Vida (Pinhais, PR). Apesar de apresentarem diferenças quanto aos procedimentos de atendimento e também diferenças nas sessões em que a Ayahuasca é utilizada, estes centros se assemelham entre si por apresentarem forte vínculo com as práticas religiosas da UDV e do Santo Daime (MERCANTE, 2013). Este movimento de terapeutização da Ayahuasca pode ser verificado tanto pela existência dos centros acima citados quanto pelo aumento de produções científicas nessa área. Muitas reflexões podem ser feitas a partir da observação de tal movimento - se por um lado representa importante reconhecimento e valorização da Ayahuasca enquanto cultura essencialmente indígena, por outro pode indicar a tentativa de sua apropriação para introduzila nos modelos hegemônicos de tratamento clínico. Assim, a terapeutização da Ayahuasca pode indicar também uma possível crise de tais modelos, ou seja, busca-se na farmacopeia indígena um composto químico potente e eficaz, ou talvez ainda mais, que os produzidos atualmente pela indústria farmacêutica. Seguindo este raciocínio torna-se relevante investigar o que está por trás e por baixo dessa crise e quais seriam seus desdobramentos na saúde coletiva e na prática terapêutica, incluindo a Ayahuasca nesse meio. Em outras palavras, é possível uma clínica da Ayahuasca? De que forma? Com qual base epistemológica? 5

6 Em Takiwasi o tratamento é estruturado em três eixos: uso de plantas, psicoterapia e convivência (MERCANTE, 2013). Além da Ayahuasca, há o emprego de diversas técnicas, como as dietas e as purgas, que atuam no âmbito físico e espiritual. As purgas são sessões de purificação nas quais plantas purgativas são ministradas a fim de causar vômitos prática comum na medicina popular peruana. Há também o acompanhamento psicológico caracterizado pelo emprego de técnicas da psicoterapia ocidental. Assim, Takiwasi se configura desde 1992 (ano de sua criação) como a principal referência mundial no uso da Ayahuasca para o tratamento da dependência (MERCANTE, 2013). De acordo com Mercante (2013), o modelo da ayahuasca de tratamento da dependência se apóia na ideia de que o uso do chá traria à tona uma série de emoções que são gatilhos para o uso de drogas, permitindo que o paciente atue sobre estas emoções, ressignificando suas atitudes e comportamentos. A psicóloga Anja Loizaga-Velder (2013) dividiu os efeitos terapêuticos da Ayahuasca no tratamento da dependência química em três grupos: efeitos voltados ao corpo, efeitos pessoais e efeitos transpessoais. O primeiro grupo corresponde aos efeitos de desintoxicação, diminuição da fissura pela droga e aumento da consciência corporal. O segundo grupo caracteriza os efeitos de superação dos mecanismos de negação, aumento da introspecção e auto-análise, e ocorrência de insights terapêuticos. Por fim, há também os efeitos chamados de transpessoais, que incluem a consciência de um poder maior de si mesmo, com renovação espiritual, a vida ganha novos sentidos, ocorrendo uma reorientação no sistema de valores e sensação de paz interior. Vale lembrar que os indígenas usam a ayahuasca para vários fins, como preparação para a caça, para os ritos de passagem, nas práticas de adivinhação, além dos propósitos de cura. Para muitos ayahuasqueiros urbanos, sobretudo os religiosos, a terapeutização da ayahuasca representa um empobrecimento da experiência, como se reduzisse todo o seu potencial a um mero comprimido ou pílula. Já para os pesquisadores interessados em seus potencias terapêuticos, a Ayahuasca pode ampliar o leque de possibilidades de intervenção clínica e assim contribuir para a saúde coletiva. Contudo, é muito forte a caracterização da Ayahuasca como uma medicina, isto é, algo que promove a cura. Seguindo este raciocínio, os grupos religiosos que utilizam essa bebida estão em contato com a cura, ainda que não manifestem diretamente e a todo momento essa intenção. Sendo assim, vale uma reflexão que permita o entendimento desses grupos não apenas como mais uma vertente no mercado das religiões, mas enquanto espaços de intermedicalidade (ROSE, 2013) onde as práticas terapêutico-religiosas são marcadas por um ideal da Grande Saúde (TEIXEIRA, 2004). Portanto, independente das práticas terapêuticas com Ayahuasca, há um aproveitamento dos usuários de Ayahuasca na promoção de saúde mental (BOUSO et. al., 2013). Deste modo, não seria necessária uma intervenção clínica com Ayahuasca, mas os próprios adeptos da Ayahuasca podem aproveitar suas experiências para o cuidado de si, de suas emoções, de seu universo simbólico, não excluindo a possibilidade de levar para uma sessão de psicoterapia convencional os conteúdos que emergem nos rituais ayahuasqueiros. Referências BOUSO, J. C. et. al. Efectos a largo plazo sobre la salud mental del consumo ritual de ayahuasca. In: LABATE, B. C.; BOUSO, J. C. B. Ayahuasca y salud. Barcelona: La liebre de marzo, FERNANDES, V. F. História do Povo Juramidam: introdução à cultura do Santo Daime. Manaus: SUFRAMA,

7 GRINSPOON, L. & BAKALAR, J. B. Psychedelic Drugs Reconsidered. New York: The Lindesmith Center, GROISMAN, A. Eu venho da floresta: um estudo sobre o contexto simbólico do uso do Santo Daime. Florianópolis: EdUFSC, LABATE, B. C.; ARAÚJO, W. S. O uso ritual da ayahuasca. Mercado das letras: São Paulo, LABATE, B. C. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas: Mercado de Letras, LABATE, B. C. et al. Considerações sobre o tratamento da dependência por meio da ayahuasca. In: Anais. I Congresso da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD). São Paulo, LANGON, E. J. La eficacia simbólica de los rituales: del ritual a la performance. In: LABATE, B. C.; SAIZ, J. C. B. Ayahuasca y salud. Barcelona: La liebre del marzo, LOZAIGA-VELDER, A. A Psychotherapeutic View on the Therapeutic Effects of Ritual Ayahuasca Use in the Treatment of Addiction. MAPS, LUZ, P. O uso ameríndio do caapi. In: LABATE, B. C.; ARAÚJO, W. S. O uso ritual da ayahuasca. São Paulo: Fapesp, MERCANTE, M. S. Ayahuasca, dependência química e alcoolismo. Ponto Urbe. França, v. 5, MERCANTE, M. S. O uso ritual da ayahuasca. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 9, n. 19, p , MERCANTE, M. S. A ayahuasca e o tratamento da dependência. Mana. Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p , PIRES, A. P. S.; OLIVEIRA, C. D. R.; YONAMINE, M. Ayahuasca: uma revisão dos aspectos farmacológicos e toxicológicos. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica e Aplicada. São Paulo, v. 31, p , ROSE, I. S. de. Cura espiritual, biomedicina e intermedicalidad en el Santo Daime. In: LABATE, B. C.; BOUSO, J. C. B. Ayahuasca y salud. Barcelona: La liebre de marzo, SANTOS, R. G. Efeitos da ingestão de Ayahuasca em estados psicométricos relacionados ao pânico, ansiedade e depressão em membros do culto do Santo Daime. Dissertação de Mestrado em Psicologia. Universidade de Brasília, Brasília, SANTOS, R. G. dos; MORAES, C. C. de; HOLANDA, A. Ayahuasca e redução do uso abusivo de psicoativos: eficácia terapêutica? Revista Psicologia Teoria e Pesquisa. Brasília, v. 22, p , TEIXEIRA, R. R. A Grande Saúde: uma introdução à medicina do corpo se m órgãos. I n t e r f a c e 7