VEREDAS Revista da Associação Internacional de Lusitanistas

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1 VEREDAS Revista da Associação Internacional de Lusitanistas VOLUME 17 AIL A associação internacional de estudos lusófonos Associação Internacional de Lusitanistas SANTIAGO DE COMPOSTELA 2012

2 A AIL Associação Internacional de Lusitanistas tem por finalidade o fomento dos estudos de língua, literatura e cultura dos países de língua portuguesa. Organiza congressos trienais dos sócios e participantes interessados, bem como copatrocina eventos científicos em escala local. Publica a revista Veredas e colabora com instituições nacionais e internacionais vinculadas à lusofonia. A sua sede localiza-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Portugal, e seus órgãos diretivos são a Assembleia Geral dos sócios, um Conselho Diretivo e um Conselho Fiscal, com mandato de três anos. O seu património é formado pelas quotas dos associados e subsídios, doações e patrocínios de entidades nacionais ou estrangeiras, públicas, privadas ou cooperativas. Podem ser membros da AIL docentes universitários, pesquisadores e estudiosos aceites pelo Conselho Diretivo e cuja admissão seja ratificada pela Assembleia Geral. Conselho Diretivo Presidente: Elias Torres Feijó, Univ. de Santiago de Compostela eliasjose.torres@usc.es 1.º Vice-Presidente: Cristina Robalo Cordeiro, Univ. de Coimbra cristinacordeiro@hotmail.com 2.º Vice-Presidente: Regina Zilberman, UFRGS; FAPA; CNPQ regina.zilberman@gmail.com Secretário-Geral: Roberto López-Iglésias Samartim, Univ. da Corunha, rlopez-iglesias@udc.es Vogais: Benjamin Abdala Junior (Univ. São Paulo); Ettore Finazzi-Agrò (Univ. de Roma «La Sapienza»); Helena Rebelo (Univ. da Madeira); Laura Cavalcante Padilha (Univ. Fed. Fluminense); Manuel Brito Semedo (Univ. de Cabo Verde); Onésimo Teotónio de Almeida (Univ. Brown); Pál Ferenc (Univ. Elme de Budapeste); Petar Petrov (Univ. Algarve); Raquel Bello Vázquez (Univ. Santiago de Compostela); Teresa Cristina Cerdeira da Silva (Univ. Fed. do Rio de Janeiro); Thomas Earle (Univ. Oxford). Conselho Fiscal Carmen Villarino Pardo (Univ. Santiago de Compostela); Isabel Pires de Lima (Univ. Porto); Roberto Vecchi (Univ. Bolonha) Associe-se pela homepage da AIL: Informações pelo secretaria@lusitanistasail.net

3 Veredas Revista de publicação semestral Volume 17 Junho 2012 Diretor: Elias J. Torres Feijó Diretora Executiva: Raquel Bello Vázquez Conselho Redatorial: Anna Maria Kalewska, Axel Schönberger, Clara Rowland, Cleonice Berardinelli, Fernando Gil, Francisco Bethencourt, Helder Macedo, J. Romero de Magalhães, Jorge Couto, Maria Alzira Seixo, Marie-Hélène Piwnick, Sebastião Tavares Pinho; Sergio Nazar David; Vera Lúcia de Oliveira. Por inerência: Benjamin Abdala Junior; Cristina Robalo Cordeiro; Ettore Finazzi-Agrò; Helena Rebelo; Laura Cavalcante Padilha; Manuel Brito Semedo; Onésimo Teotónio de Almeida; Pál Ferenc; Petar Petrov; Regina Zilberman; Roberto López-Iglésias Samartim; Teresa Cristina Cerdeira da Silva; Thomas Earle. Redação: VEREDAS: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas Endereços eletrônicos: Desenho da Capa: Atelier Henrique Cayatte Lisboa, Portugal Impressão e acabamento: Unidixital, Santiago de Compostela, Galiza ISSN AS ATIVIDADES DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS TÊM O APOIO REGULAR DO INSTITUTO CAMÕES

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5 SUMÁRIO ANA MARIA DOMINGUES DE OLIVEIRA Cecília Meireles, leitora de poesia portuguesa...7 CAIO GAIARDI De uma Mansarda Rente ao Infinito: A outra cidade no Livro do Desassossego 19 DANIELA BIRMAN Confinamento e testemunho em Lima Barreto e Graciliano Ramos...41 DELVANIR LOPES A compreensão do tempo em Solombra, de Cecília Meireles...63 ELIZABETH DA PENHA CARDOSO A linguagem silenciosa das mulheres na obra de Lúcio Cardoso...83 IMACULADA NASCIMENTO Murilo Mendes: Entre a imagem e o signo RECENSÕES MARIA LUÍSA MALATO BORRALHO Entre filosofia e literatura.uma viagem urgente neste milenio

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7 VEREDAS 17 (Santiago de Compostela, 2012), pp Cecília Meireles, leitora de poesia portuguesa ANA MARIA DOMINGUES DE OLIVEIRA Universidade Estadual Paulista RESUMO No cenário de meados do século XX, a poetisa Cecília Meireles fez soar, no Brasil, uma voz de difusão da literatura portuguesa em nosso país. Provavelmente favorecida pelos contatos intelectuais que seu primeiro marido, o artista plástico português Fernando Correia Dias, tinha com o universo cultural português, Cecília certamente teve acesso privilegiado a publicações portuguesas antes que se tornassem mais populares no Brasil. Assim, ao publicar, em 1944, a antologia Poetas novos de Portugal, pela Editora Dois Mundos (dirigida por Jaime Cortesão), Cecília pôde difundir no Brasil muitas vozes da poesia portuguesa que nunca tinham sido publicadas em livro em nosso país. Nunca reeditada, a antologia evidencia um olhar percuciente sobre o cenário da literatura portuguesa de seu tempo. Meu trabalho, portanto, pretende debruçar-se sobre o volume, em busca de tentar apreender os critérios que nortearam Cecília na seleção dos autores e poemas, na crença de que tal recorte evidencia uma determinada compreensão das relações da literatura portuguesa com o Brasil. Palavras-chave: Cecília Meireles, Poetas novos de Portugal, poesia portuguesa. ABSTRACT: In the early XX century scene, the poem writer Cecilia Meireles was the voice of the Portuguese Literature in Brazil. Probably as the writer s first husband, the Portuguese

8 8 ANA MARIA DOMINGUES DE OLIVEIRA artist Fernando Dias, was in contact with the intellectuals from the Portuguese cultural universe, Cecilia certainly had access to Portuguese publishing before they were popular in Brazil. So, by printing, in 1944 the anthology Poetas novos de Portugal, by Dois Mundos Publishing house (directed by Jaime Cortesão), Cecília could spread the Portuguese poetry which had never been published in books in our country. As it has never been printed again, the anthology shows a detailed view about the Portuguese literature scene at that time. My work aims at looking thoroughly this volume, in order to understand the criteria used by Cecilia when selecting the authors and poems, in the light of such piece indicates certain understanding of the Portuguese Literature relations with Brazil. KEYWORDS: Cecília Meireles, New Portuguese Poets, Portuguese poetry. No contexto do início dos anos quarenta no Brasil, uma antologia de poesia contemporânea portuguesa foi publicada pela Editora Dois Mundos, no âmbito da Coleção «Clássicos e Contemporâneos», dirigida pelo intelectual português Jaime Cortesão, que então se encontrava exilado no Brasil. Sob o título Poetas novos de Portugal, a coletânea estava inserida num conjunto de obras que propunham ser «[a] melhor Antologia da cultura portuguesa até hoje publicada», conforme anunciado por Jaime Cortesão na orelha da edição, antes de anunciar os títulos que compunham a série. Entre esses títulos, encontram-se edições como Sonetos Completos e Poemas Escolhidos de Antero de Quental, com seleção e prefácio de Manuel Bandeira, As Farpas (em dois volumes), de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, com prefácio de Gilberto Freyre, a Carta de Pero Vaz de Caminha, com estabelecimento de texto e estudos de Jaime Cortesão etc. Em quase todas as edições aparecem autores importantes da literatura portuguesa e brasileira como responsáveis pela apresentação da obra ou pela seleção dos textos, no caso de antologias. O símbolo da editora, presente na capa traseira, expressa o sentido de difusão da cultura portuguesa no Brasil, com cinco naus num mar revolto ao redor da esfera armilar cruzada pela faixa com o nome da editora. Não resta dúvida, portanto, sobre a identificação da editora com a ideia de levar a cultura portuguesa a outros povos, já que a esfera armilar é figura presente no próprio brasão de Portugal:

9 CECÍLIA MEIRELES, LEITORA DE POESIA PORTUGUESA 9 Ao tomarmos como significativos tanto o símbolo da editora quanto a proposta da coleção, fica evidente em que contexto Jaime Cortesão publica a coletânea de poesia portuguesa elaborada por Cecília Meireles, já que o livro surge no bojo de um esforço de difusão da cultura portuguesa no Brasil. Nas primeiras décadas do século XX, em nosso país, ainda era precária e irregular a chegada de livros de autores portugueses contemporâneos. A esse respeito, os organizadores da Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea, Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno (1999: 24), afirmam: «Era difícil acompanhar-se a nova poesia que se publicava em Lisboa ou no Porto. Os livros de poetas jovens saíam geralmente em pequenas edições, de circulação restrita até mesmo em Portugal». Mesmo após o término da Segunda Guerra, a situação não melhora, conforme os mesmos autores (Costa e Silva; Bueno, 1999: 24): «A forma aleatória com que os livros portugueses, desde alguns anos após o fim da Segunda Grande Guerra, passaram a chegar, ou melhor, a não chegar ao Brasil».

10 10 ANA MARIA DOMINGUES DE OLIVEIRA Nesse cenário, a antologia organizada por Cecília Meireles teria, como teve, um papel decisivo na difusão da poesia portuguesa contemporânea no Brasil. Cito mais uma vez os organizadores da Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea (Costa e Silva; Bueno, 1999: 24): Por isso, como tantas outras pessoas, eu li pela primeira vez alguns dos portugueses do entre-guerras numa antologia de Cecília Meireles, Poetas novos de Portugal, publicada no Rio de Janeiro em O livro andou de mão em mão entre a gente jovem, e foram muitos os que nele aprenderam que existira Fernando Pessoa. Conforme afirmam os autores, é quase certo que a coletânea elaborada por Cecília Meireles seja uma das primeiras aparições representativas da poesia de Fernando Pessoa num livro de maior circulação, no Brasil. Mesmo para os portugueses, a antologia teve sua importância, como se pode depreender deste depoimento de Eduardo Lourenço a Leila Gouvêa, em 2000, transcrito no livro Cecília em Portugal (Gouvêa, 2001: 22-23): [...] a antologia Poetas novos de Portugal, que a escritora organizou e prefaciou, revelando no Brasil, e até certo ponto mesmo no Portugal salazarista (onde o livro também circulou), a produção do modernismo lusíada a começar pela de Fernando Pessoa e a de Sá-Carneiro, e ainda a de poetas como Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena, Miguel Torga, Irene Lisboa ou José Régio, num total de 34 autores. Produção na época mal-vista pela ditadura de Salazar. «A antologia foi a primeira consagração, com um olhar de fora, da poesia modernista portuguesa, e por meio dela tomei conhecimento também da poesia de Pessoa, que naquela época ainda era quase desconhecido mesmo em Portugal», observou Eduardo Lourenço.

11 CECÍLIA MEIRELES, LEITORA DE POESIA PORTUGUESA 11 Como se pode notar, à coletânea de Cecília Meireles se deve uma circulação mais abrangente da obra de vários poetas portugueses, Pessoa incluído, mesmo em Portugal. É curioso também observar a referência a um desagrado da ditadura salazarista para com a edição, certamente por incorporar, entre os autores selecionados, vozes de oposição a Salazar, como a de Jorge de Sena, para ficar em apenas um exemplo. O livro, publicado durante a Segunda Grande Guerra, deixa ver as condições difíceis para os editores daquele tempo: o papel é ruim, em poucos anos acidifica-se e torna-se quebradiço, tornando a leitura da obra um risco para a preservação do volume. Como forma de remediar essa precariedade do suporte, uma nota inicial no verso da folha de rosto revela: «Deste livro foram tirados 250 exemplares em papel bouffant de 1ª qualidade, numerados de 1 a 250 e rubricados pelo Diretor literário desta Editora». Sessenta e sete anos depois, a antologia ainda não foi reeditada. Os duzentos e cinquenta exemplares em papel de boa qualidade transformaram-se em raridades bibliográficas. Quanto aos demais exemplares, em papel jornal, todos igualmente numerados, porém não rubricados, vão-se desfazendo nas mãos dos leitores, por mais cuidadosos que sejam. Não obstante toda essa dificuldade, toda a precariedade da edição, a coletânea segue cumprindo seu papel de referência obrigatória. A título de exemplo, veja-se o que afirma o autor do texto constante das orelhas da mesma Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea (Costa e Silva; Bueno, 1999: orelhas): Toma como ponto de partida a organizada por Cecília Meireles em 1944, com o título de Poetas novos de Portugal, responsável pela primeira difusão efetiva, entre nós, dos grandes nomes do Modernismo português, como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, e dos poetas da Presença.

12 12 ANA MARIA DOMINGUES DE OLIVEIRA Ainda no que se refere à relevância da antologia, o próprio Jorge de Sena daria seu testemunho, já depois da morte da poetisa brasileira, inclusive revelando gratidão pela inclusão de seu nome entre os autores escolhidos (Sena apud Gouvêa, 2001: 94): Tenho observado que esse livro meritório (e que pouca gente, em Portugal, estaria então em condições de organizar com tanta lucidez e tanta equidade) é, vinte anos passados, ainda a única fonte, no Brasil, e para muita gente, de conhecimento da poesia moderna brasileira. No longo prefácio, além de discorrer sobre os poetas, Cecília expõe seus critérios (Meireles, 1944: 20): Fez-se uma antologia de «poetas novos» como se fazem antologias de «poetas clássicos» ou «românticos», o que, em realidade, só envolve uma definição de época e de estilo. Pelos nomes incluídos, ver-se-á que são considerados «novos» ou seus precursores muitos poetas já não contemporâneos. Isso explicará, por outro lado, como vários e bons poetas contemporâneos possam ter deixado de ser considerados «novos». Cecília estabelece uma distinção entre a ideia de «novos» e «contemporâneos» que vai lhe permitir selecionar autores sem precisar manter-se amarrada seja à contemporaneidade seja à história literária. Sua compreensão de cronologia literária é, pois, bastante singular e muito conveniente para os propósitos de sua antologia. Os trinta e seis autores selecionados por Cecília estão divididos em dois grupos. O primeiro, «Camilo Pessanha e o grupo de Orpheu», inclui, além do próprio Pessanha, nomes como o de Luiz de Montalvor, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e seus três heterônimos mais conhecidos e um jovem poeta açoriano de quem, em razão da antolo-

13 CECÍLIA MEIRELES, LEITORA DE POESIA PORTUGUESA 13 gia, Cecília Meireles se aproximaria, tornando-se ambos, desde 1945, fiéis correspondentes: Armando Côrtes Rodrigues. O segundo grupo, intitulado «Da Presença aos poetas mais novos», tem entre seus nomes José Régio, Vitorino Nemésio, António Botto, Branquinho da Fonseca, Carlos Queiroz, Miguel Torga, Adolfo Casais Monteiro, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio e Jorge de Sena. Dos trinta e seis poetas, trinta e quatro recebem notas biográficas no início do volume. Estão ausentes Joaquim Namorado e Jorge de Sena, curiosamente dois nomes de oposição à ditadura. Casualidade ou artifício? Seja como for, a presença de nomes de autores que se opunham à ditadura não passou despercebida a Salazar que, conforme testemunhado por Jorge de Sena, não via a antologia com bons olhos. Não deixa de ser interessante, ainda, notar que a poetisa brasileira fez questão de incluir nomes de poetisas, em meio a tantos poetas. Há duas delas: Fernanda de Castro e Natércia Freire. A primeira era a esposa de António Ferro, diretor do Secretariado de Propaganda Nacional de Portugal e responsável pelo convite para visitar Portugal feito a Cecília e Correia Dias em Cecília Meireles manteve-se próxima de Fernanda de Castro ao longo da vida, com uma correspondência que foi muito intensa nos primeiros anos posteriores à viagem de Em seu livro Cartas para além do tempo, Fernanda de Castro relembra com carinho a amiga. Natércia Freire foi também amiga de Cecília, com quem igualmente manteve correspondência ao longo da vida, com encontros frequentes nas ocasiões em que a poetisa brasileira visitou Portugal. Há poemas dedicados a Cecília Meireles na obra de Natércia Freire e poemas dedicados a Natércia na obra de Cecília. Há ainda uma terceira poetisa, ocultada sob pseudônimo masculino: Irene Lisboa, presente na antologia com o nome de João Falco. Embora oculta sob pseudônimo, é ela a poetisa com mais poemas selecionados por Cecília Meireles: enquanto Fernanda de Castro e Natércia Freire comparecem com três poemas cada uma, João Falco teve seis de seus poemas transcritos.

14 14 ANA MARIA DOMINGUES DE OLIVEIRA A inclusão das poetisas portuguesas sinaliza a atenção que Cecília dedicava às mulheres escritoras, como prova inclusive sua conferência de 1959, intitulada «Expressão feminina da poesia na América», sobre as escritoras da América Latina. É importante também destacar o lugar ocupado por Fernando Pessoa na antologia, considerando que, entre os poetas ali presentes, foi o que alcançou maior visibilidade nos anos seguintes. Já no prefácio da antologia, Cecília (Meireles, 1944: 35) destaca Sá-Carneiro e Pessoa do conjunto dos poetas ligados à revista Orpheu: «É em Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa que a Poesia fita seus olhos: é a eles especialmente que quer transmitir seu segredo, quando os reúne, em 1915, na revista Orpheu». Vale lembrar que as relações entre Cecília Meireles e Fernando Pessoa, datam de muito antes da publicação da antologia. Podemos supor que é muito provável que Cecília tenha sido favorecida pelos contatos intelectuais que seu primeiro marido, o artista plástico português Fernando Correia Dias, mantinha com o universo cultural português. Cecília certamente teve acesso privilegiado a publicações portuguesas antes que se tornassem mais populares no Brasil, recebendo em sua casa edições de livros e de revistas culturais. Além disso, como já se disse, em 1934, a poetisa brasileira e o marido, o artista plástico português Fernando Correia Dias, fazem uma viagem a Portugal. Ele, voltando ao país pela primeira vez, depois de vinte anos vivendo no Brasil. Ela, em sua primeira viagem à Europa. Correia Dias foi ilustrador da revista Águia, onde também atuou Fernando Pessoa. Cecília, provavelmente por intermédio das relações de seu marido com as artes portuguesas, desde muito já tinha alguma familiaridade com a poesia de Pessoa. Cito a propósito o mesmo livro de Leila Gouvêa (2001: 67-68): É certo que desembarcou em Lisboa [em 1934] sabendo bem quem era o ainda pouco editado Pessoa. A comprovação está no fato de que, em

15 CECÍLIA MEIRELES, LEITORA DE POESIA PORTUGUESA 15 sua tese O espírito vitorioso, cuja primeira edição saiu no Rio em 1929, ela transcrevera excertos da «Ode triunfal», de Álvaro de Campos. Foi provavelmente a primeira vez em que se imprimiu a poesia de Pessoa no Brasil. Assim, poucos dias antes da volta para o Brasil, o casal agendou um encontro com Pessoa no Café «A Brasileira» do Chiado. Esperaram em vão pelo poeta. Ao chegarem de volta ao hotel, encontraram um exemplar do recém-lançado livro Mensagem, com a dedicatória: «A Cecília Meyrelles, alto poeta, e a Correia Dias, artista, velho amigo e até cúmplice (vide Águia etc...), na invocação de Apolo e de Atena,/ Fernando Pessoa/ 10-XII-34». Outra vez citando a obra Cecília em Portugal, este certamente foi um dos primeiros exemplares do livro a serem autografados por Pessoa, já que a data é a mesma dos exemplares com que o poeta presenteou a ex-namorada Ofélia Queiroz e o sobrinho desta, Carlos Queiroz, amigo de Pessoa e poeta também, a quem Cecília conheceu na mesma viagem. Afirma ainda Leila Gouvêa (2001, p. 65) que «Cecília foi provavelmente a única brasileira a receber e a primeira a ler o livro, chegando a opinar, tempos depois, que aquele volumezinho era precisamente o que menos caracteriza o autor». Antes de se completar um ano desse desencontro, os dois Fernandos estariam mortos: Correia Dias suicida-se em 19 de novembro de 1935 e Pessoa falece no último dia do mesmo mês. Dez anos depois da viagem, Cecília Meireles publicaria Poetas Novos de Portugal. Pessoa ocupa um lugar de destaque na coletânea, já que, do poeta português, Cecília selecionou treze poemas, incluindo entre eles «O menino de sua mãe», «Eros e psique» e dois poemas de Mensagem: «O dos castelos» e «D. Sebastião». De Ricardo Reis, apenas a ode «Para ser grande, sê inteiro». De Alberto Caeiro, o polêmico poema VIII de O guardador de rebanhos que humaniza a figura do menino Jesus. Da obra de Álvaro de Campos, Cecília recolhe seis poemas, incluindo «Apostila» e «Dactilografia».

16 16 ANA MARIA DOMINGUES DE OLIVEIRA A seleção é bastante acertada, revelando talvez uma certa gradação de relevância, para Cecília, tanto no conjunto da obra ortônima quanto da obra heterônima. No caso da obra de Pessoa ele mesmo, a poetisa seleciona onze poemas muito representativos do Cancioneiro, escolhendo, de Mensagem, apenas dois poemas, o primeiro e o último da primeira parte da obra, intitulada «Brasão». Entre os heterônimos, se estabelecermos uma hierarquia tendo como critério o número de páginas dedicadas a cada um, Álvaro de Campos estaria em primeiro lugar, com seis poemas que ocupam sete páginas da coletânea. Alberto Caeiro, em segundo, com o longo poema VIII que ocupa cinco páginas do volume. A Ricardo Reis, apenas os seis versos da famosa ode «Para ser grande, sê inteiro». Ao Pessoa ortônimo de Mensagem, obra de viés mais nacionalista, Cecília reserva um lugar discreto, dando destaque, em lugar disso, aos poemas mais esotéricos como «Eros e Psique» e «O último sortilégio», assim como o poema «O menino de sua mãe», texto de caráter mais social. O heterônimo mais transgressor, Álvaro de Campos, fica em destaque, com poemas que evidenciam sua postura desafiadora das convenções como «Apostila» e «Adiamento». De O Guardador de Rebanhos, Cecília escolhe o poema que alguns julgam o mais incômodo do livro, com ácidas críticas à igreja católica. A seleção revela uma leitora muito arguta da obra de Pessoa, com critérios que passam longe da imagem que se esperaria de uma mulher bem comportada de sua geração. O Pessoa de Cecília é um poeta plural, muito pouco convencional e sempre questionador de seu tempo. O recorte singular que Cecília faz da obra de Pessoa é representativo da importância de sua coletânea para entender o tipo de circulação da poesia pessoana no Brasil, que vai ganhar uma abrangência maior a partir da publicação brasileira da Obra Poética de Pessoa pela Editora Aguilar, no início dos anos sessenta. Qualquer estudo que se proponha

17 CECÍLIA MEIRELES, LEITORA DE POESIA PORTUGUESA 17 a analisar a recepção de Fernando Pessoa no Brasil tem como leitura obrigatória a antologia Poetas Novos de Portugal. Considerando, além disso, que Pessoa é apenas um dos trinta e seis autores selecionados por Cecília Meireles, fica evidente que há muito ainda por analisar nesse volume de Poetas Novos de Portugal, a começar do longo prefácio escrito por Cecília Meireles. Sua compreensão singular da literatura portuguesa, ali exposta, é ainda hoje instigante e evidencia um olhar percuciente sobre o cenário da literatura portuguesa de seu tempo. Faz-se, portanto, urgente uma reedição dessa obra de relevância para os estudos de poesia portuguesa, tanto no Brasil quanto em Portugal, de modo a permitir que o olhar de Cecília continue a abrir perspectivas renovadoras, trazendo ainda hoje lições para todos os interessados na poesia produzida em Portugal nas primeiras décadas do século XX. REFERÊNCIAS CASTRO, Fernanda de. Cartas para Além do tempo. Lisboa: Europress, COSTA E SILVA, Alberto; Alexei BUENO. Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea: Um Panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, GOUVÊA, Leila. Cecília em Portugal. São Paulo: Iluminuras, MEIRELES, Cecília. Poetas Novos de Portugal. Rio de Janeiro: Dois mundos, OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de. De Caravelas, Mares e Forcas: Um Estudo de Mensagem e Romanceiro da Inconfi dência. São Paulo: FFLCH/USP, Tese de doutorado, fotocopiada.