DIREITO À IDENTIDADE DE GÊNERO ALTERAÇÃO DE NOME E GÊNERO NO REGISTRO CIVIL
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- Artur Franca Mascarenhas
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1 DIREITO À IDENTIDADE DE GÊNERO ALTERAÇÃO DE NOME E GÊNERO NO REGISTRO CIVIL Flávia Marcelle Torres Ferreira de Morais Luiza Born Mendanha 1 INTRODUÇÃO Tradicionalmente a determinação do sexo humano é afirmada com fundamento nos órgãos genitais, mas este método não pode ser considerado exclusivo, pois, na espécie humana, o sexo da pessoa equivale a uma conjugação de fatores biológicos, psicológicos e sociais. Tal entendimento é corroborado pela Desembargadora Maria Berenice Dias: A identificação do indivíduo é feita no momento do nascimento, por meio do critério anatômico, de acordo com o aspecto da genitália externa. O sistema jurídico, cioso de seus mecanismos de controle, estabelece, desde logo, com o nascimento, uma identidade sexual teoricamente imutável e única. No entanto, a aparência externa não é a única circunstância para a atribuição da identidade sexual, pois com o lado externo concorre o elemento psicológico. Assim, o sexo civil ou jurídico deve espelhar e coincidir com o sexo vivido socialmente pela pessoa. (DIAS, 2010, p. 142). Dessa forma, o hábito de definir o sexo com fundamento apenas biológico causa problemas, na medida em que diversos indivíduos possuem identidade de gênero diferente daquela presente em seus registros de nascimento. Tal situação controversa gera grande sofrimento psicológico a estas pessoas que veem o seu direito constitucional à saúde ferido, além de uma ofensa a dignidade humana. Conforme a Organização Mundial da Saúde OMS, saúde é o completo estado de bem-estar físico, psíquico ou social. A partir daí, a não coincidência da sexualidade com o registro de nascimento provoca desajuste psicológico, não se podendo falar em bem-estar físico, psíquico ou social. Assim, o direito à adequação do registro é uma garantia à saúde, e a negativa de modificação afronta imperativo constitucional, revelando severa violação aos direitos humanos. Dessa forma, fica claro que o descompasso entre as informações no registro de nascimento e a identidade sexual de uma pessoa fere o seu direito à saúde. Porém é
2 possível ir ainda mais além e defender que essa situação viola também um direito fundamental à identidade de gênero depreendido da dignidade da pessoa humana. 2 DA POSSIBILIDADE DE RETIFICAÇÃO DO REGISTRO DE NASCIMENTO O constrangimento gerado por possuir um documento formal de identificação civil que não coaduna com a identidade de gênero de uma pessoa muitas vezes é causa de violação de vários direitos fundamentais, como de educação, saúde, cultura e lazer. Isso porque a utilização de um documento que não corresponde à realidade vivenciada pela pessoa, por ser constrangedor, angustiante e conflitante, impõe uma situação de invisibilidade e impossibilita seu direito de viver dignamente e exercer a cidadania. Dessa forma, a adequação do assento do registro de nascimento pode ser o fim dos constrangimentos e violações gerados por essa situação, proporcionando bem estar, harmonia pessoal e psíquica, equilíbrio individual e social, na medida em que passa a ser respeitado o desejo de cada pessoa de viver e ser aceita na sociedade conforme sua autodeterminação. A Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), apesar de não possuir dispositivo específico sobre a retificação de registro em virtude da identidade de gênero, no seu artigo 109, permite a alteração excepcional de assento do registro de nascimento por meio de um procedimento especial de jurisdição voluntária. Portanto, seria legalmente possível, apesar da necessária intervenção do Poder Judiciário, essa modificação do prenome e gênero no registro civil. 2.1 Da alteração do prenome No que diz respeito à retificação do prenome, como o nome civil é um atributo da personalidade e consiste no direito à identificação, a sua alteração importa em reconhecer à pessoa o direito de se autodeterminar, conforme o sentimento que tem de si mesma, não comprometendo sua interlocução com terceiros no meio social. Além disso, a adequação dos documentos formais de identificação com a realidade vivenciada pela pessoa transforma-se em um passaporte para inserção efetiva na sociedade vivenciando os atos da vida civil como toda pessoa merece.
3 É indiscutível que o nome das pessoas, enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar assume fundamental importância individual e social. Paralelamente a essa conotação pública, não se pode olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem eminentemente pessoal, na qualidade de direito personalíssimo que é constitutivo do atributo da personalidade. O artigo 16 do Código Civil proclama que toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendido o prenome e o sobrenome (BRASIL, Lei 10406, 2002). Portanto, o descompasso entre o nome registrado e o pelo qual a pessoa reconhece-se gera duas grandes consequências: a primeira é a violação da finalidade do instituto do nome, que é reconhecer socialmente o indivíduo e, a segunda é expô-lo constantemente a situação vexatória. Portanto, apesar da característica a imutabilidade relativa do nome civil, ambas situações fazem nascer, diante da excepcionalidade da situação, a possibilidade de adequar a sua situação fática à jurídica, considerando que o nome é um direito da personalidade. Assim ensina J. M. Leoni Lopes de Oliveira: um direito personalíssimo, essencial à pessoa humana, inalienável e imprescritível, dotado de natureza privada, mas com certas características, e com uma tutela, em parte, de direito público. (OLIVEIRA, 199, p. 224) Com propriedade também expõe Caio Mário: Elemento designativo do indivíduo e fator de sua identificação na sociedade, o nome integra a personalidade, individualiza a pessoa e indica, grosso modo, a sua procedência familiar. [...] Não há, pois, razão para que se recuse ao nome o caráter de um direito, e assim dispõe o novo código, ao estabelecer que toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome. (PEREIRA, 2005 p. 243 e 246). Estando evidente que a finalidade do nome é o conhecimento e individualização de uma pessoa no meio em que vive, claro torna-se que o desígnio constante dos registros públicos tem que manter relação direta com aquele aceito socialmente. Qualquer contradição entre o nome constante de registro público e o nome pelo qual se identifica alguém em uma comunidade é causa desviadora da finalidade desse instituto personalístico, autorizando sua alteração. No caso de pessoas famosas e seus apelidos que lhe dão notoriedade, a legislação foi benevolente, pois autoriza a substituição do prenome por apelidos
4 notórios, conforme enunciado do artigo 58 da Lei 6.015/1973, alterado pela Lei 9708/98. A referida lei, ainda, no seu artigo 55, parágrafo único, permite que os oficiais de registro não registrem prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. Tal norma permite que aqueles que possuam nomes capazes de expor ao ridículo invoquem a pretensão de sua alteração judicialmente, com o fim de que haja uma proteção contra a exposição e a ridicularização, o que também tem fundamento no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Dessa forma, interpretando a lei de registros públicos e seus dispositivos conforme a Constituição da República de 1988 e, consequentemente, aos princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição da República de 1988), da igualdade (art. 5º caput), da vedação de discriminações odiosas (art. 3º, inciso IV), da liberdade (art. 5º, caput), e da privacidade (art. 5º, X), e da saúde (art. 196), seria possível e legal a retificação do prenome daquelas pessoas cujo nome de registro não coaduna com a sua identidade de gênero. Até porque o prenome apresenta grande relevância social, sendo um dos atributos da personalidade humana e não pode estar em total descompasso com seu apelido público e notório e com sua imagem, ferindo seu direito fundamental de identidade de gênero. Depreende-se daí que o nome, servindo para identificar o indivíduo, jamais pode voltar-se contra o mesmo, expondo-o a situações vexatórias. Portanto, o princípio da inalterabilidade dos registros públicos deve ceder, em tais casos, para que se respeite o fundamento maior da República Federativa do Brasil, a Dignidade Humana, por intermédio de um direito fundamental à identidade de gênero. 2.2 Da alteração do gênero No que diz respeito à determinação do sexo humano, este, tradicionalmente, é afirmado no momento do registro de nascimento com fundamento nos órgãos genitais. Porém, apesar da praticidade, este método não pode ser considerado exclusivo porque, na espécie humana, o sexo da pessoa equivale a uma conjugação de fatores biológicos, psicológicos e sociais.
5 A ciência demonstra que o sexo de uma pessoa não tem relação, senão indireta, com seus genitais. Inclusive, para a psicanálise, ser homem ou mulher seria determinação psíquica de cada um. Dessa forma, o pedido de mudança de designação do gênero no registro de nascimento tem fundamento não apenas na dignidade humana, como também no direito à identidade sexual como um dos aspectos do direito à saúde, tese defendida por Szaniawski para a permissão da alteração no registro, nos termos a seguir descritos: De um lado, encontramos o fundamento para tal feito, no direito à identidade sexual, como um dos aspectos do direito à saúde, tutelado pelo art. 196 da CF. De outro, os incisos II e III do art. 1º e parg. 2º do art. 5º da Carta Magna, os quais cuidam do livre desenvolvimento da personalidade, da afirmação da dignidade e do exercício de cidadania de todo ser humano, que conduzem a uma releitura dos art. 57 e 58 da lei 6.015/73. Os citados artigos possibilitam ao Magistrado aplicar a lei ao caso concreto, deferindo ao transexual a pretensão requerida. (SZANIAWSKI, 1998, p. 255). Nesse sentido, importante mencionar a Carta de Princípios de Yogyakarta Princípios na Aplicação de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e à Identidade de gênero cujo 3º princípio prevê: Todos tem o direito de reconhecimento, em todos os lugares, como pessoa perante à lei. Pessoas de diversas orientações sexuais e identidade de gênero devem desfrutar de suas capacidades civis em todos os aspectos da vida. A auto percepção quanto à orientação sexual e a identidade de gênero de cada pessoa é parte integrante de sua personalidade e é um dos aspectos mais basilares à auto-determinação, dignidade e liberdade. Ninguém poderá ser obrigado a submeter-se a Procedimentos de médicos, inclusive à cirurgia de redesignação sexual, esterilização ou tratamento hormonal, como um requisito para reconhecimento legal de identidade e gênero. (ICJ, 2007, tradução nossa). Foi com base nesta Carta de Princípios que Argentina promulgou a Lei de 2012 que reconhece formalmente e garante a alteração de registro civil e em órgãos públicos conforme a identidade de gênero autopercebida, sem a necessidade de cirurgia de transgenitalização ou judicialização do procedimento: Artigo 2º - Definição. O termo identidade de gênero a experiência interna e individual do gênero que cada pessoa sente, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo. Isto pode envolver a alteração da aparência ou função corporal através de farmacológico, cirúrgico ou de outro modo, desde que seja escolhido livremente. Ele também inclui outras expressões de gênero, incluindo o vestido, forma de expressão e de boas maneiras.
6 Artigo 3º - Exercício. Qualquer pessoa pode solicitar retificação de registro de sexo, e mudar o nome caso este e a imagem não coincidem com sua identidade de gênero auto- percebida. (ARGENTINA, 2012, tradução nossa). Salienta-se, portanto, que a identidade sexual não deve basear-se unicamente em critérios biológicos aparentes. Isso porque há uma vulnerabilidade de critérios puramente biológicos frente à identidade de gênero quando entendida como fruto das relações sociais, como se pode ver no caso a seguir: Para ilustrar ainda mais a ideia-construção do sexo, considere o caso da atleta Maria Patiño. Patiño tem genitália feminina, sempre considerou-se como do sexo feminino e foi considerado como tal pelos outros. No entanto, descobriu-se que ela tem cromossomos XY e foi impedida de competir em esportes femininos (Fausto-Sterling, 2000b, 1-3). A genitália de Patiño estava em desacordo com os seus cromossomas e os últimos foram levados para determinar seu sexo. Patiño lutou com sucesso para ser reconhecida como uma atleta argumentando que seus cromossomos por si só não foram suficientes para não torná-la feminina tradução nossa, grifo nosso. O caso de Patiño ilustra como o reconhecimento social é preponderante, de modo que a não realização da cirurgia de transgenitalização não pode ser fato utilizado para negativa ao reconhecimento de pertencimento ao gênero autopercebido pela pessoa. Por fim, e não menos importante, há ainda o posicionamento da Desembargadora Maria Berenice Dias segundo a qual em tempos passados, a definição do sexo da pessoa se dava unicamente por meio da genitália. Tal entendimento não se coaduna com as necessidades hodiernas, haja vista a designação do sexo ser analisada sob o prisma plurivetorial e não univetorial. (DIAS, 2006, p.146). Nesse sentido, acrescenta-se que os direitos fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, por sua vez, atua como sendo uma qualidade inerente, indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. 3 DO RECONHECIMENTO DO DIREITO FUNDAMENTAL À IDENTIDADE DE GÊNERO A dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição de 1988, garante a todos os indivíduos o livre desenvolvimento de sua personalidade. Trata-se, em sua essência, do
7 alicerce constitucional que fundamenta e legitima a garantia do exercício pleno de sua identidade de gênero, de sua privacidade, liberdade e felicidade. Ressalta-se que a dignidade da pessoa humana foi consagrada como valor constitucional supremo, do qual irradia, direta e indiretamente, todos os direitos fundamentais do indivíduo, cujo reconhecimento constitui a manifestação necessária da primazia da dignidade humana, uma das mais destacadas diretrizes hermenêuticas do ordenamento jurídico. Além disso, o Poder Constituinte impôs aos poderes públicos o dever não só de observar e proteger esse valor supremo, mas também de promover os meios necessários ao alcance das condições mínimas indispensáveis a uma vida digna e ao pleno desenvolvimento da personalidade. Nesse sentido, os ensinamentos de Luiz Sanches: (...) o respeito a essa dignidade é, por conseguinte, a base do Direito e um Estado de Direito significa não só que os cidadãos e os poderes públicos estão sujeitos à Constituição e ao resto do ordenamento jurídico, senão que este ordenamento jurídico deve realizar o que é adequado para que a pessoa tenha sua plena dignidade e possa desenvolver livremente sua personalidade. (SANCHEZ AGESTA, 1980, p. 77). Sobre o tema, esclarece Canotilho que, quando a Constituição fala em respeito pela dignidade da pessoa humana, pretendeu o Poder Constituinte: (...) tornar claro que na dialética processo-homem e processo-realidade o exercício do poder e as medidas da praxis devem estar conscientes da identidade da pessoa com seus direitos (pessoais, políticos, sociais e econômicos), a sua dimensão existencial e a sua função social. (CANOTILHO, 1982, p.34 e 35). Ressalta-se, ainda, que a retificação do registro é um desdobramento do direito a não ser discriminado, cujo enfoque constitucional decorre diretamente dos princípios da dignidade humana, da liberdade e da igualdade. Ademais, o direito a não ser discriminado encontra-se intimamente vinculado às bases do Estado Democrático de Direito, cujo paradigma, hodiernamente, traz a noção intrínseca de pluralismo, cujo pressuposto consiste no respeito e na proteção a projetos de vida distintos daqueles considerados como padrão pela maioria da sociedade. Por fim, sobre o direito a não ser discriminado, o posicionamento do Tribunal de Justiça da União Européia, que se amolda perfeitamente na situação em debate. O Tribunal proferiu decisão afirmando que os tratamentos desfavoráveis decorrentes da
8 chamada "identidade de gênero" são hipóteses de discriminação por motivo de sexo. Isto porque, como demonstra a evolução da compreensão jurídica, discriminação por motivo de sexo concretiza-se, nos dias de hoje, não só na proibição de tratamento desfavorável a mulheres, homossexuais e transexuais, como também a todas as hipóteses em que "a forma de um indivíduo se perceber e ser percebido pelos outros como masculino ou feminino. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPÉIA, 2006). 4 DO PROJETO DE LEI 5002/2013 Com o fim de tornar o processo de retificação de registro administrativo e efetivar o direito à identidade de gênero, os Deputados Jean Wyllys e Érika Kokay são autores do Projeto de Lei 5002/2013, também conhecido como Lei João W. Nery ou Lei de Identidade de Gênero. Tal projeto, já em seu artigo primeiro, anuncia como inerente a toda pessoa, o direito ao reconhecimento, livre desenvolvimento e tratamento conforme a sua identidade de gênero. A garantia à alteração do nome pode ser vislumbrada no inciso III do mesmo artigo, que assegura à pessoa o direito de, em seus termos, ser tratada de acordo com sua identidade de gênero e, em particular, a ser identificada dessa maneira nos instrumentos que acreditem sua identidade pessoal a respeito do/s prenome/s, da imagem e do sexo com que é registrada neles. Essa garantia se mostra mais clara no artigo terceiro, que dispõe que Toda pessoa poderá solicitar a retificação registral de sexo e a mudança do prenome e da imagem registradas na documentação pessoal, sempre que não coincidam com a sua identidade de gênero auto-percebida. No artigo seguinte, são estabelecidos os requisitos para que se proceda à alteração e, em seu parágrafo único, determina-se a dispensabilidade de intervenção cirúrgica de transexualização (total ou parcial), terapias hormonais, qualquer tipo de tratamento/diagnóstico psicológico/médico ou de autorização judicial para que a alteração do prenome seja efetivada. Por sua vez, esta dispensabilidade de autorização judicial é reafirmada no artigo sexto, que disciplina que, presentes os requisitos dos dois artigos precedentes, sem necessidade de nenhum trâmite judicial ou administrativo, o/a funcionário/a autorizado do cartório procederá:
9 I - a registrar no registro civil das pessoas naturais a mudança de sexo e prenome/s; II - emitir uma nova certidão de nascimento e uma nova carteira de identidade que reflitam a mudança realizada; III - informar imediatamente os órgãos responsáveis pelos registros públicos para que se realize a atualização de dados eleitorais, de antecedentes criminais e peças judiciais. 1º Nos novos documentos, fica proibida qualquer referência à presente lei ou à identidade anterior, salvo com autorização por escrito da pessoa trans ou intersexual. 2º Os trâmites previstos na presente lei serão gratuitos, pessoais, e não será necessária a intermediação de advogados/as ou gestores/as. 3º Os trâmites de retificação de sexo e prenome/s realizados em virtude da presente lei serão sigilosos. Após a retificação, só poderão ter acesso à certidão de nascimento original aqueles que contarem com autorização escrita do/a titular da mesma. 4º Não se dará qualquer tipo de publicidade à mudança de sexo e prenome/s, a não ser que isso seja autorizado pelo/a titular dos dados. Não será realizada a publicidade na imprensa que estabelece a lei 6.015/73 (arts. 56 e 57). O projeto de lei prevê ainda, no parágrafo primeiro de seu artigo sétimo, que: da alteração do prenome em cartório prosseguirá, necessariamente, a mudança de prenome e gênero em qualquer outro documento como diplomas, certificados, carteira de identidade, CPF, passaporte, título de eleitor, Carteira Nacional de Habilitação e Carteira de Trabalho e Previdência Social. Por fim, a asseguração do respeito à identidade de gênero vem expressa também nos artigos décimo e décimo primeiro, que determinam, respectivamente, o respeito à identidade de gênero adotada por aqueles que usem um prenome distinto daquele que figura na sua carteira de identidade (e ainda não tenham realizado a retificação registral) e o respeito ao direito à identidade de gênero por toda e qualquer norma, regulamentação ou procedimento, não podendo nenhum destes limitar, restringir, excluir ou suprimir o exercício de tal direito. Além disso, o artigo décimo segundo altera o artigo 58º da Lei 6.015/73, o qual passa a ter a seguinte redação: O prenome será definitivo, exceto nos casos de discordância com a identidade de gênero autopercebida, para os quais se aplicará a lei de identidade de gênero. Admite-se também a substituição do prenome por apelidos públicos notórios. Considerando isso, o Projeto de Lei 5002/2013 visa, portanto, estabelecer mecanismos jurídicos efetivos para o reconhecimento da identidade de gênero. Para tanto, disciplina a retificação de dados registrais, como o sexo, o prenome e a imagem dos documentos pessoais. Entre outros, garante a continuidade jurídica da pessoa, através da manutenção do número da identidade e do CPC e o sigilo do procedimento.
10 Com isso, o projeto que hoje aguarda designação do relator na CDHM 1, representa um importante avanço na concretização da garantia ao direito de identidade de gênero. Em conclusão, nas palavras que justificam o referido projeto, As palavras visibilidade e invisibilidade são bastante significativas para a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Pertencer a esta sopa de letras que representa a comunidade sexo-diversa (ou a comunidade dos invertidos ) é transitar, ao longo da vida, entre a invisibilidade e a visibilidade. [...] Porém, de todas as invisibilidades a que eles e elas parecem condenados, a invisibilidade legal parece ser o ponto de partida. O imbróglio jurídico sobre as identidades legal e social das pessoas travestis, transexuais e transgêneros provoca situações absurdas que mostram o tamanho do furo que ainda existe na legislação brasileira. Graças a ele, há pessoas que vivem sua vida real com um nome o nome delas, pelo qual são conhecidas e se sentem chamadas, aquele que usam na interação social cotidiana, mas que carregam consigo um instrumento de identificação legal, uma carteira de identidade, que diz outro nome. E esse nome aparece também na carteira de motorista, na conta de luz, no diploma da escola ou da universidade, na lista de eleitores, no contrato de aluguel, no cartão de crédito, no prontuário médico. Um nome que evidentemente é de outro, daquele ser imaginário que habita nos papeis, mas que ninguém conhece no mundo real. Quer dizer, há pessoas que não existem nos registros públicos e em alguns documentos e há outras pessoas que só existem nos registros públicos e em alguns documentos. E umas e outras batem de frente no dia-a-dia em diversas situações que criam constrangimento, problemas, negação de direitos fundamentais e uma constante desnecessária humilhação. [...] O presente projeto de lei, (...) se aprovado, garantirá finalmente o respeito do direito à identidade de gênero, acabando para sempre com uma gravíssima violação dos direitos humanos que ainda ocorre no Brasil, prejudicando gravemente a vida de milhares de pessoas. Falamos de pessoas que se sentem, vivem, se comportam e são percebidas pelos outros como homens ou como mulheres, mas cuja identidade de gênero é negada pelo Estado, que reserva para si a exclusiva autoridade de determinar os limites exatos entre a masculinidade e a feminidade e os critérios para decidir quem fica de um lado e quem do outro, como se isso fosse possível. Travestis, transexuais e transgêneros sofrem cada dia o absurdo da lei que lhes nega o direito a ser quem são. E andam pelo mundo com sua identidade oficialmente não reconhecida, como se, das profundezas da história dos nossos antepassados filosóficos gregos, Crátilo voltasse a falar para Hermógenes: Tu não és Hermógenes, ainda que todo o mundo te chame desse modo. [...] A identidade de gênero e o nome social das pessoas travestis, transexuais e transgêneros estão sendo reconhecidas, portanto, parcialmente e através de mecanismos de exceção. A dupla identidade está sendo oficializada e o Estado começa a reconhecer que existe uma discordância entre a vida real e os documentos. Esse estado de semi-legalidade das identidades trans cresce a partir de decisões diversas carregadas de boa vontade, espalhadas pelo amplo território do público. São avanços importantes que devem ser reconhecidos, porque facilitaram a vida de milhares de seres humanos esquecidos pela lei, mas, ao mesmo tempo, evidenciam um caos jurídico que deve ser resolvido. 1 Verificação feita em 07 de novembro de 2014, no site da Câmara dos Deputados. Para conferir o atual andamento: Projetos de Lei e Outras Proposições. Câmara dos Deputadas. Disponível em: <
11 [...] O que falta, e é para agora, é uma lei federal que dê uma solução definitiva à confusão reinante. É o que muitos países têm feito nos últimos anos. O presente projeto, baseado na lei de identidade de gênero argentina, recolhe a melhor dessas experiências. (grifos nossos) 5 CONCLUSÃO Por todo o exposto, é indiscutível a necessidade da alteração de registro civil de nascimento com o fim de adequá-lo à identidade de gênero. Porém, apesar do ordenamento jurídico brasileiro não trazer referência expressa sobre a possibilidade dessa retificação, ele o permite quando autoriza a alteração em casos excepcionais, com a intervenção do Poder Judiciário por intermédio de um procedimento de jurisdição voluntária. No entanto, é urgente uma legislação no país, como a argentina, que permita essa retificação de forma administrativa e menos burocrática. Isso porque essa necessária intervenção do Poder Judiciário atenta contra o direito a autodeterminação do indivíduo e permite que existam decisões conflitantes no país, tendo em vista que a independência funcional do magistrado. Por exemplo, alguns, equivocadamente, condicionam o deferimento o pedido judicial de retificação após elaboração de um laudo psiquiátrico ou após procedimento cirúrgico transgenitalizador, o que viola a liberdade do indivíduo em escolher se deseja ou não se submeter a tal procedimento cirúrgico arriscado, vez que a não realização da cirurgia o impedirá de ter o seu direito à identidade de gênero e a dignidade humana garantidos. Assim, deixar a alteração do nome a critério único e exclusivo da discricionariedade do juiz é não reconhecer a necessariedade de se garantir o efetivo respeito à identidade de gênero, haja vista ser o nome uma das principais formas de exteriorização desta identidade e a ausência de lei nesse sentido abrir espaço para decisões contrárias à alteração. Considerando isso, um passo importante no sentido de assegurar o respeito à mencionada identidade é o Projeto de Lei 5002/2013, de autoria dos deputados Jean Wyllys e Érika Kokay, também denominado Lei João W. Nery e Lei de Identidade de Gênero.
12 REFERÊNCIAS ARGENTINA, Ley /2012: Identidad de género. Disponível em: IDENTIDAD-DE-GENERO.pdf Acesso em: 07/11/2014 BRASIL. Código civil, Código Civil e Constituição Federal. 65.ed. São Paulo: Saraiva; 2014 BRASIL, Congresso Nacional. Projeto de Lei 5002/2013. Lei de Identidade de Gênero. Disponível em: E343C516C78B72B76.proposicoesWeb1?codteor= &filename=PL+500 2/2013. Acesso em: 07/11/2014 BRASIL. Lei 6.015/1973, Lei de Registros Públicos. CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição Dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra, DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, INTERNATIONAL COMMISSION OF JURISTS (ICJ), Yogyakarta Principles - Principles on the application of international human rights law in relation to sexual orientation and gender identity, March Disponível em: Acesso em: 07/11/2014. NEPOMUCENO, Cleide Aparecida. Transexualidade e o direito a ser feliz como condição de uma vida digna. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 90, jul Disponível em: < 9896&revista_caderno=6>. Acesso em ago OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes de. Direito Civil teoria do direito civil. Direito Civil teoria do direito civil. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1999, vol. 2. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, volume I: Introdução ao direito civil e teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense SANCHEZ AGESTA, Luis: El sistema político de la Constitución española de Ensayo de un sistema, Editora Nacional, Madrid, SZANIAWSKI, Elimar. Limites e possibilidades do direito de redesignação do estado sexual: Estudo sobre o transexualismo: Aspectos médicos e jurídicos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPÉIA. Acórdão do Tribunal no processo C-423/ de Abril de Disponível em:
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