ATO I Capítulo 1 Aquela criança, era eu.



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Transcrição:

ATO I Capítulo 1 Aquela criança, era eu. Ele chegou animado na escola, com seu gameboy na mão esquerda. Passou correndo pela portaria e cumprimentou o porteiro que o recebeu com um sorriso. Pulou os seis últimos degraus da escada quase arrebentando as rodinhas de sua mochila, já judiada, que puxava com sua outra mão. Mas esse menino! reclamou a inspetora de alunos que estava a centímetros de onde o garoto aterrissou. Bom dia tia! disse ele passando veloz por ela. Já mandei você parar de fazer isso! Que Deus o livre de cair de cara um dia! resmungou ela com sua voz cada vez mais distante enquanto o garoto se afastava correndo. Cumprimentando todos os inspetores que ele atravessava, chegou ao lado de fora do prédio que teria aula e sem nem cumprimentar seus colegas foi logo dizendo. Consegui! Olha aqui! disse erguendo seu gameboy. Uma rodinha de garotos que estavam sentados sobre a janela ergueu a cabeça olhando para o menino recém chegado, todos com os gameboy'sempunhados. Deixa eu ver! gritaram em coro levantando todos ao mesmo tempo e formando uma roda ao redor de suas mãos. Ficaram ali por alguns minutos fazendo perguntas que eram respondidas com entusiasmo, até que um outro garoto entrou na roda o chamou. Ei! chega aí! disse ele já pegando o garoto pelos braços. O que foi? perguntou incomodado pela interrupção. Lembra o que eu falei ontem? disse baixando a voz. O que você disse ontem? perguntou não entendendo. Sobre a arma? disse ainda mais baixo. Lembro. Mentiroso! disse ele parecendo se lembrar da conversa.

Shhh! pediu silêncio com expressão de pânico, enquanto caminhavam para algum lugar longe dali. Vem aqui. pediu ele acelerando o passo. Os dois garotos, muito pequenos e um deles ainda menor, foram para trás do prédio, sozinhos. Certificando que não tinha ninguém por perto, o de olhos azuis tirou a mochila das costas e a entregou para o outro garoto, que a segurou e olhou para o colega esperando orientações. Abre logo! disse impaciente. O garoto loiro, com os cabelos cortados em um círculo perfeito, como um príncipe, apoiou a mochila no chão e a abriu. Ele soltou um gemido de exclamação e arregalou os olhos! É de verdade? perguntou com uma expressão de medo e espanto ao mesmo tempo. É. Tira da mochila para você ver! dizia em sussurros. O garoto obedeceu e sacou parcialmente a arma da mochila. É pesad... Uma arma! exclamou uma garota que espiava apenas com a cabeça na esquina do prédio. Os garotos se viraram assustados, socando a arma de volta na mochila. O que vocês estão fazendo? com voz autoritária, revelou se uma segunda garota, de cabelos escuros, cumpridos e olhos verdes. As duas saíram de trás das paredes e encararam os dois garotos aterrorizados. Não é da sua conta! disse o loiro, o mais baixo dos quatro, com imponência de um gigante, pondo se de pé e dando um passo a frente. Os olhos azuis do segundo garoto pareciam ainda mais azuis destacados no absoluto branco que se estampara em seu rosto. A gente vai contar para a inspetora! disse a garota que aplicara o flagrante. Cruzando os braços e apoiando o peso do corpo em uma só perna, a menina de cabelos castanhos ondulados e muito claros, quase loiros, ficou esperando a resposta. Se você falar a gente espanca você! pareceu voltar a sí o menino de olhos azuis, que tinha o cabelo curto e espetado.

Vai? Ou vai tentar dar um tiro na gente? se impôs novamente a garota que parecia ser a mais mandona das duas. porque você sabe que se não usar um revolver vocês apanham! Coitada de você garota! disse o mais baixinho e invocado. Mas pensando bem, é até possível! Mulher macho! bradou contra ela. Não é a gente que é macho! Vocês é que são gays! voltou a falar a mais bonita das garotas. Olha quem fala! Não é a gente que fica espiando vocês! Eu sei que vocês gostam de mim! A gente não gosta de tampinha! defendeu a menina de cabelos escuros dando um passo a frente. E a gente não gosta de gorda, sua rolha de vulcão! também se intrometeu o mais alto se pondo a frente do colega menor, os dois começaram a rir. Vocês são tão infantis! reclamou a garota ofendida. Rolha de vulcão! repetiu o tampinha e os dois voltaram a rir. As garotas se viraram e foram embora, os dois se olharam apreensivos quando elas os deixaram sozinhos. E agora? Ela vai contar que você trouxe uma arma para a escola! O que a gente faz? perguntou afoito. Sei lá! Joga no lixo. Não! Se eu sumir com essa arma meu pai vai me matar! Ele não sabe que eu trouxe! Sério? Achei que ele tinha dito: "Tó filhão! Leva isso aqui para a escola e arrasa geral hoje!". disse o menor irritado com a informação inútil. Guarda com você! Eu não! Sai fora! Você também é burro! Porque você trouxe uma arma para a escola!? Você duvidou que o meu pai tivesse uma! Ah sim! Isso explica tudo. disse dando um soco no braço do colega, que devolveu o soco. Após trocarem uns sete socos,idênticos, eles fecharam a mochila e ficaram se olhando. Vamos nos separar! disse finalmente tendo uma idéia o mais alto.

Boa! Eu fico com as balas e você com o revolver! O que isso adianta? O que vocês estão fazendo ai? disse um inspetor que aparecera do mesmo lugar de onde as garotas espiavam. Os dois se entreolharam pálidos. A aula já começou! Já para dentro. Os dois garotos correram aliviados passando pelo inspetor, que resmungou: Só o que me faltava! Antes era um ou o outro! Agora os dois juntos são demais para a minha cabeça! Os garotos foram os últimos a entrarem na sala, a professora já escrevia na lousa. Por cima dos ombros, ao vê los entrarem as pressas avisou: Da próxima vez vão ficar para fora! As duas meninas sentadas na primeira fileira olharam em sinal de desaprovação os dois e voltaram a olhar para frente. Bem feito. falou uma delas e a professora a ouviu. Isso serve para as duas também repreendeu a professora. Os garotos abafaram o riso com as mãos e foram para seus lugares. Começaram a tirar o material da mochila, o que estava armado, com muito mais cuidado. Eles sentavam um em cada canto, longe um do outro. Não eram amigos. Era fácil perceber o que acontecia ali. Os dois garotos não eram amigos, tinham uma rivalidade conhecida por todos os colegas e cada um era líder de um grupo, ou como falavam na época, de uma "panela". O contrario se aplicava as duas garotas, que não se desgrudavam, e compartilhavam risos a todo o momento, inseparáveis. Já os meninos, toda a vez que um falava uma coisa, o outro contrariava. No intervalo, os dois se enfrentavam em times oposto no futebol, cada um com seu time. Sempre que estavam na frente de seus respectivos amigos, trocavam provocações e faziam piadas um dos outros. Na última aula do dia aconteceu algo que marcou aqueles garotos para sempre.

Um garoto começou a chorar dizendo que alguém tinha pegado suas figurinhas e reclamou para a professora. A professora parou a aula e gentilmente pediu que todos verificassem suas mochilas, dizendo que alguém, por brincadeira, poderia ter colocado as figurinhas na mochila de um colega. Os quatro sabiam o que poderia acontecer por causa daquele incidente, eles se entreolhavam. Depois de todos verificarem suas mochilas, ninguém se pronunciou. Enquanto o garoto, que fora aparentemente roubado, chorava, a professora pensava em outra solução. A professora disse para todos abaixarem a cabeça, e pediu para que quem pegou as figurinhas depositasse as figurinhas em cima da mesa dela, ela sairia da sala por dois minutos e ninguém saberia quem foi que pegou. A sala obedeceu, mas nenhuma figurinha apareceu sobre a mesa da professora. Finalmente, a professora se desculpou a todos os alunos e pediu que os alunos abrissem as mochilas e ela passaria de mesa em mesa olhando o conteúdo de cada mochila. Os quatro voltaram a se entreolhar, o garoto de olhos azuis parecia um fantasma, todo o sangue de seu corpo parecia ter desaparecido. Enquanto os alunos resmungavam e colocavam a mochila sobre as mesas, a menina que fora chamada de rolha de vulcão levantou a mão. Professora, eu achei umas figurinhas no chão hoje, achei que fossem minhas e juntei no meu bolo, se o Bruno quiser ver se as figurinhas dele estão aqui eu deixo. Tá vendo como é mulher macho! Ainda coleciona figurinha! ridicularizou o menino de olhos azuis. Do outro lado da sala, o garoto de cabelos de príncipe entendeu a intenção da menina na hora e se irritou com a burrice do colega. Ela não é mulher macho! Seu burro. defendeu o menino antagonizando a fala de seu "rival". A professora repreendeu os dois garotos. Enquanto outro menino do grupo disparava: Tá defendendo a namorada! Tão namorando! disse provocativo A sala começou a cantar em coro:

Tão namorando! Tão namorando! Tão namorando! Com a voz firme, a professora recuperou o silêncio e aceitou a sugestão da garota. Bruno, fungando e tentando parar de chorar, olhou as figurinhas e separou algumas. Depois de ver todas as figurinhas ele reclamou: Está faltando um monte! disse voltando a chorar. Eu troquei um monte de figurinhas no intervalo, pode ser que tenham ido, você pode escolher outras que você quiser. disse em um tom de apreensão a menina. Não são essas as minhas, quando eu voltei do intervalo eu ainda tinha elas, e essas daqui tem umas que estão mais novas e umas que estão mais velhas que as minhas, não são essas! choramingou o menino. A professora olhou desconfiada para as duas meninas que se entreolhavam. A amiga, dos cabelos brilhosos e quase loiros, tomou a fala. Para de ser chorão Bruno! Você nunca vai achar as figurinhas, mesmo que você ache, quase todo mundo na sala tem figurinha, é impossível que ninguém tenha as mesmas que você, quem pegou vai falar que ele já tinha. Já era, aceita as figurinhas logo. É. Aceita logo. incentivaram em coro os dois garotos ao mesmo tempo, o garoto dos olhos azuis parecendo entender finalmente a ajuda da garota. A professora estranhou a súbita parceria dos dois que sempre eram antagônicos em tudo. Eu já terminei o meu álbum, pode ficar com todas! fez um apelo final a garota. A professora se abaixou para ficar da altura do garoto e o aconselhou a aceitar a proposta, a contra gosto ele aceitou. Após muito tempo perdido, tiveram poucos minutos de aula antes que o sinal batesse. A professora, esperta, percebeu algo de estranho nas quatro crianças e pediu que eles ficassem após a aula, depois de todos saírem. Os quatro ficaram de pé, em frente à mesa da professora, que sentada os encarava. Vocês querem me dizer alguma coisa? iniciou a conversa a professora. Meu motorista está me esperando! disse uma das garotas. Ele pode esperar um pouco. Vocês não querem me contar nada?

Como o que? pareceu mais destemido o menor de todos, atuando uma descontração que não existia. Você trouxe o seu álbum de figurinhas para a escola? perguntou a professora ignorando a pergunta do garoto e encarando profundamente a menina que doou as figurinhas. A garota respondeu positivamente com a cabeça e a professora pediu o álbum, que lhe foi cedido. Você não disse que tinha terminado o álbum? perguntou a professora, após folhear várias páginas e encontrar no máximo quatro ou cinco figurinhas coladas. A garota não respondeu, apenas encarava o chão. Uma lamentação, pena e admiração pela garota invadiu o menino baixinho, o outro olhava com os olhos arregalados para o álbum. Você sabe quem pegou as figurinhas? perguntou a professora olhando fixamente para ela, que continuava a olhar o chão. Respondendo negativamente com a cabeça, ela fez a mesma pergunta aos demais, que responderam da mesma forma. Tem certeza? insistiu a professora. Todos assentiram de forma sincronizada com a cabeça. O baixinho era o único que olhava para os olhos da professora, os outros três encaravam o chão. A professora lançou um olhar penetrante no único que correspondia o seu olhar. Vocês não me enganam. disse a professora. Vocês duas eu entendo ser cúmplices uma das outras,mas vocês dois!? disse lançando um olhar para os garotos. Ou melhor... Vocês quatro! Juntos? exclamou a professora para ela mesma. Cúmplices? um deles finalmente se impôs. O menino loiro com seus cabelos lisos e cortados em círculo começou a falar. Você acha que um de nós que pegou as figurinhas? Pode ver a minha mochila se você quiser! as outras três crianças olharam em um rompante para ele Eu vou contar para a minha mãe. ao ouvir essa fala a professora arregalou os olhos e nem reparou no olhar brusco das outras crianças. A professora pela primeira vez se colocou na defensiva e correu a se explicar:

Não! Não acho isso! Eu só acho que vocês sabem de alguma coisa e não querem me falar. Mas tudo bem. Já podem ir. devolveu o álbum a garota e a professora liberou os quatro, saíram todos ao mesmo tempo. Juntos, sem falar nada. Foram saindo do prédio para o pátio. Já no pátio eles pararam e se entreolharam e o silêncio foi quebrado. Burro! exclamou o baixinho sempre imponente, que claramente não sabia o seu tamanho. O que foi? perguntou o outro garoto com uma forçada naturalidade. De nada! bradou a garota que perdera as figurinhas com os olhos marejados e se virou indo embora com a amiga que apenas balançou a cabeça em sinal de desaprovação ao deixá los. Espero que você não duvide de mim quando eu disser que o meu pai tem uma espingarda. tentou mudar o assunto da conversa o garoto. Não tem graça! A gente quase se ferrou por sua causa! Mas não se ferrou. respondeu zangado. Graças a elas! E você ainda a chamou de mulher macho na frente de todo mundo! Vai defender ela agora? Vai ver você gosta dela mesmo! Você nem falou obrigado! ignorou o comentário o baixinho invocado. Obrigado por quê? perguntou o menino em um tom que já entregava seu sentimento de culpa. Você viu o álbum dela? Ela nem completou nada e deu todas as figurinhas para o moleque para safar você! o garoto ouviu em silêncio com uma evidente expressão de arrependimento, após um instante de silêncio, continuou Amanhã você vai comprar vários pacotinhos de figurinhas e vai dar para ela, falar obrigado e pedir desculpas! ordenou o baixinho. Apontando o dedo para cima para indicar o rosto de seu colega, ele ficou aguardando a reação que veio após alguns instantes. Tá bom. disse ele, para o espanto do baixinho. Eu dou as figurinhas e falo obrigado, mas não vou pedir desculpas! Por que não? Sua mãe não te ensinou a pedir desculpas?

Minha mãe morreu. falou melancólico fazendo o menino loiro amolecer por completo. Bom... Seu pai deve ter te ensinado então... disse com dó observando o garoto olhar o chão. Mas não é para falar para ninguém que a minha mãe morreu. pediu o garoto em voz baixa ignorando o comentário do outro amigo. Tá bom, mas por quê? quis saber o menino com uma inocente curiosidade. Por que todo mundo têm. explicou E eu não gosto que as pessoas saibam. Tá bom. Mas pedir desculpas é a coisa certa. Você não é a minha mãe. Mas eu sou seu amigo. Não é não! exclamou ele com uma expressão de indignação. Sou sim. falou o menino esticando o braço no alto para apoiar nos ombros de seu novo amigo e finalmente começaram a andar. Minha mãe fala que amigo nem sempre é o que faz o que a gente quer. E disseque tem amigos, mas que não são amigos, porque só ficam com a gente nas horas boas, que nem jogar videogame, mas nas horas ruins não. E aquelas duas além de não contar nada para ninguém, evitaram que alguém descobrisse. Você podia ter sido expulso. Elas são amigas também. Mas elas são muito chatas! reclamou o garoto. Eu sei. se lamentou o garoto baixinho concordando sem saber o que acrescentar. Vai ver que é por isso que meu pai falou que a gente não escolhe os amigos. revelou enquanto os dois subiam as escadas do pátio. Minha mãe nunca falou isso, mas acho que é verdade. Por quê? se interessou o menino. Ah... procurou as palavras o garoto Sabe... Eu não escolheria ser seu amigo, às vezes você é chato. Às vezes? pareceu estranhar o menino. É. Quando eu sou legal? Ah, não sei. Então por que você falou que eu só sou chato às vezes?

Ah, por que eu acho que você não deve conseguir ser chato sempre. Vai ver as garotas também não, né? perguntou parecendo mostrar um pouco de entusiasmo. Vai ver... pensou o menino enquanto escutava a buzina do carro de sua mãe vir da rua para chamá lo. É a minha mãe, tenho que ir. disse se apressando e correndo. O garoto parou no meio do caminho e olhou para trás com certa piedade em seus olhos. Como você vai embora? Meu motorista vem me buscar logo mais. Por que ela morreu? perguntou de repente. Por quê? estranhou a pergunta. É. Meu pai disse que Deus a chamou. respondeu com inocência. Não... Quero dizer, como foi que ela morreu? corrigiu a pergunta o garoto. Ah, foi câncer. O que é isso? É uma doença. Faz tempo? Não muito, eu tinha cinco anos. disse enquanto uma buzina soava novamente. Tenho que ir. Até amanhã. Não esquece as figurinhas. O garoto correu pela portaria, se despediu do porteiro e entrou em uma corrida no carro. Mãe, o que é câncer? perguntou a criança se jogando no banco de trás. Era o meu dia de ir no banco da frente! resmungou para a sua irmã que já estava sentada. Por que você quer saber o que é câncer, meu filho? perguntou a mãe do garoto misturando interesse com preocupação. Por que eu não sei o que é. disse ele fazendo sua mãe rir. É uma doença terrível que não tem cura. Seu avô não falava o nome. Ele falava "aquela doença".

O garoto ficou com aquilo na cabeça, passou o resto do dia assistindo Cartoon Network, jogando Super Nintendo e foi dormir ansioso pelo dia seguinte. O menino acordou animado e fez a sua lição de casa. Tomou banho, colocou o uniforme, brincou com o seu cachorro no quintal, tomou bronca da sua mãe por sujar o uniforme antes mesmo de ir para a escola, assistiu Chaves, almoçou e sua mãe foi deixá lo, junto a sua irmã. Fazendo tudo igual, ele saiu correndo, passou pela mesma portaria, cumprimentou o mesmo porteiro, pulou a mesma escada, mas dessa vez sem o gameboy em suas mãos e procurando por outra pessoa. Não achou seu novo amigo, mas avistou as duas garotas, que já estavam juntas e conversando sentadas na escada. Ele sentou longe e sozinho, para esperar seu amigo. Não ficou sozinho por muito tempo, vários colegas vieram sentar a sua volta. Minutos depois viu seu amigo descer a escada do pátio, varrendo o olhar por todos os cantos até encontrar o olhar que procurava. Ele chamou o amigo com a mão, que se levantou correndo e foi ao seu encontro. Deixou a arma em casa? foi logo dizendo. Claro! Trouxe as figurinhas? Trouxe. disse tirando sua mochila das costas e empurrando a para seu amigo. Eu tenho até medo de abrir isso aqui. falouo pequeno garoto, mas abriu a mochila sem receios. Caramba! Para que tanta figurinha? É, tive até que deixar o livro de ciências em casa porque não cabia. Nossa deve ter uns cinqüenta reais de figurinha aqui! Cem. corrigiu o amigo, fazendo o garoto menor assobiar. De onde você tirou tanto dinheiro para comprar figurinha? Meu pai. Você pediu cem reais para comprar figurinhas? perguntou muito espantado o garoto. Não. Eu só pedi dinheiro para comprar figurinhas. E ele te deu tudo isso?

Bem, primeiro ele me deu dez reais, aí eu perguntei se dava para comprar bastante, então ele falou: "Depende, você vai querer completar o álbum de uma vez?". Aí eu disse que não eram para mim as figurinhas, era para uma garota, então ele disse: "Ahhhh" contava o garoto imitando a expressão e a voz de seu pai "Então espera aí!". Ai ele me deu cem reais. Puxa! disse o garoto realmente surpreso. Bom, vai lá entregar então. Ah, entrega você e fala que fui eu. Não. Você vai entregar. disse autoritário. Depois eu entrego então. Não, vai agora. Mas já vai bater o sinal para entrar. Não importa, ainda tem tempo. Tá! Mas você vai comigo então. Eu já ia de qualquer jeito. revelou o amigo. Então vamos logo vai! estufou se de coragem agarrando com força a mochila cheia de figurinhas. Eles andaram acelerados em direção as garotas, mas quanto mais perto chegavam, mas devagar ficavam seus passos. As garotas olhavam os dois se aproximarem. O que vocês querem? disse a garota com os olhos verdes muito fixos nos dois. Os garotos se olharam e com um cutucão nas costas o baixinho fez seu amigo falar. A gente veio pedir desculpa e dizer obrigado. disse fingindo uma naturalidade que não saiu muito bem. "A gente"? cochichou o outro garoto ao ouvido do amigo. Desculpa? perguntou desconfiada a outra menina, que parecia ainda mais bonita aquele dia. Obrigado por quê? perguntou arrumando seus cabelos escuros. Por ter feito aquilo ontem por mim, eu ia me ferrar se não fosse você. E desculpa por ter te chamado de mulher macho. Você não é mulher macho, é uma mulher bastante menina. acrescentou o colega disparando depressa.

É! Desculpa por isso também. concordou o amigo pegando a mochila. A gente trouxe uma coisa para você. Os garotos tomaram coragem e se ajoelharam na frente das garotas, os três olhavam o menino abrir sua mochila, revelando vários pacotes de figurinhas. As meninas pareceram amolecer, e com uma voz muito mais amena, a morena falou: Obrigado, mas não precisa. O Bruno devolveu as minhas figurinhas agora pouco, parece que alguém se arrependeu e colocou as figurinhas de volta na mochila dele. disse um pouco desconcertada Mas muito obrigada de verdade. pareceu muito sincera. Bom, mas pode ficar com você mesmo assim, a gente comprou para você e nenhum de nós dois tem o álbum dessas figurinhas. Eu até tenho, mas a gente quer que fique com você. Acrescentou depressa o garoto mais baixinho. Bom, pode ser. Mas eu não tenho onde guardar tudo isso. A gente pode colar as figurinhas no álbum na hora do recreio. sugeriu a garota. O garoto consultou o amigo menor com o olhar e ele respondeu por ele. Claro! Pode ser. respondeu com um sorriso amigável. Olha a ladrazinha! disseram dois garotos que passavam pelas crianças. Os dois meninos levantaram imediatamente. Ela não é ladra! falou o mais baixinho, revoltado. Os garotos se afastaram sem entender a reação dos dois, que não haviam sido notadosaté então. Assustados, muito mais com o garoto de olhos azuis que fazia uma expressão não muito amigável do que com o pequenino garoto que se punha a frente valente. Tá bom, tá bom. concordaram os meninos deixando o lugar em que estavam justamente na hora em que bateu o sinal. Os quatro entraram juntos, sem conversar, mas visivelmente em harmonia, sobre os olhares de desconfiança dos professores e inspetores. Separaram se apenas quando chegaram à sala. A professora anunciou uma prova surpresa, e mandou os alunos se juntarem em dupla. Após todos se juntarem, a professora passou o olhar

pela sala e viu rapidamente as duplas, e após passar os olhos por uma estranha dupla voltou bruscamente a encarar a dupla, parecendo não acreditar no que via, mas apenas ignorou e começou a distribuir as provas. Até que elas não são tão chatas. comentou o garoto de cabelos espetados. É. Elas são legais até. Você sabe essa matéria? Sei lá. Acho que sim, você sabe? Mais ou menos. Você acha que elas acham a gente legal? Acho que sim, eu sou legal, não sou? Só quando você não está com os seus amigos. Você também. Eu sei essa daqui. disse o garoto de cabelos loiros analisando a prova. E eu sei a três. complementou espiando a prova com o pescoço torto. Nossa, a seis é muito fácil. Pode crer! Não está tão difícil. Pois é! Você sabe a oito? Eu não sei. Sei, mas eu não sei a sete. Ah, a sete eu sei disso com alívio dando um tapinha nas costas o pequeno amigo. Eles entregaram a prova antes de acabar a aula e mataram o resto do tempo em seus lugares conversando. Depois do termino da aula, enquanto colocavam as mesas e cadeiras no lugar, as duas garotas questionaram os meninos para ver se eles tinham ido bem, ambos conferiam as questões uns com os outros. Depois de duas trocas de professor, o intervalo chegou e eles saíram juntos com um monte de figurinhas e o álbum.foram caminhando vagarosamente até a sombra de uma árvore, a menina de olhos verdes conversava com o garoto baixinho enquanto o outro casal tomava a frente: Ela fala que você parece um anjo por causa do seu cabelo. dedurou a amiga enquanto andavam.

Descontraidamente começaram a colar as figurinhas e conversar. Quando chegaram ao destino, conversaram sobre diversos assuntos infantis entre outras coisas, até que o recreio estava próximo do fim Meu pai e o dela viajam muito, não é? a menina quase loira buscou o consentimento da amiga, que o deu, os garotos já tinham percebido que elas tinham mania de mexer no cabelo. Meu pai também viaja bastante, mas nos últimos anos ele não tem viajado tanto. revelou o menino de olhos azuis colando uma figurinha com muito cuidado. Meus pais não viajam muito, eles ficam bastante tempo em casa. completou as descrições o menino dos cabelos lisos. Deve ser legal viajar. É. Quando eu crescer vou querer ficar um ano inteiro viajando! revelou um sonho a menina dos olhos verdes. Eu também. disse a outra garota Mas eu vou levar os meus pais junto. Por quê? estranhou o menino de cabelos loiros. Porque eles nunca estão, e se eu viajar sozinha será mais tempo sem eles. disse com a verdadeira inocência de uma criança a menina cabelos quase loiros. É. concordou sua amiga esse ano eles não vão nem vir para o meu aniversário. lastimou a amiga com uma expressão de tristeza em seus olhos verdes. Quando é o seu aniversário? perguntou o menino baixinho, virando a folha do álbum. Dia 21 de outubro. E vocês? Eu faço dia 21 de Julho revelou o garoto dos olhos azuis. Eu faço dia 21 de Fevereiro. revelou a outra menina sorrindo pela recém descoberta. Os três encararam o menino baixinho, que ainda não tinha revelado seu aniversário, esperando para que ele dissesse que nasceu também no dia 21 de qualquer mês. O garoto, de cabelos loiros e de príncipe, nasceu em uma família normal, com alegrias e problemas. Nasceu no Higienópolis, um bairro nobre de São Paulo, onde morou até os três anos de idade.

Sua mãe nasceu em Manaus, mas passou a infância em Fortaleza e fugiu de casa aos dezoito anos com a ajuda das freiras de seu colégio. Foi para São Paulo prestes a fazer 18 anos. Continuou estudando e se formou em Direito. Seu pai teve uma empresa que fabricava mini tratores e carrinhos de golfe, e faliu na época da ditadura por causa de um golpe do governo. Desde então, se tornou joalheiro e, armado, ia vender jóias de porta em porta. Dessa forma conheceu sua futura esposa, mãe do garoto baixinho e invocado. Seu pai, que também se tornou advogado alguns anos depois, tinha se divorciado da primeira mulher, e tinha dois filhos, um homem e uma mulher. O garoto loirinho ficou muito apegado ao seu irmão e são muito próximos até os dias de hoje, a irmã por parte de pai foi morar nos Estados Unidos, mas ainda sim, se dão muito bem. Aos três anos se mudou para o Jardim Bonfiglioli. Onde morou até 2001. O cabelo do garoto loiro escureceu com o passar dos anos até se tornar castanho. Ele estudou em mais de dez escolas diferentes até se formar no ensino médio. O pequeno menino julga que tem uma vida comum, exceto por uma coisa. Ele acredita que ele cruzou o caminho de pessoas inacreditavelmente maravilhosas e que, dificilmente, existe outra pessoa com a mesma sorte que ele teve. Aquela criança, nasceu às 20:01 do dia 21 de Agosto de 1987. Aquela criança, era eu.