1 O efeito Lutero Um olhar panorâmico e atual sobre a Reforma Protestante (Ef.2.8,9; Rm.1.17) Introdução 31 de outubro de 1517, Wittenberg, Alemanha. Um novo tempo começava, das ânsias guardadas nos corações inflamados por uma fé sem misturas, surge uma outra forma, Reforma. Como um abençoado e poderoso eco de John Wycliffe (1328-1384), cujos ossos foram queimados trinta anos depois de sua morte, e de John Huss (1373-1415), o ganso que profetizou sobre o cisne, um tempo de redescoberta começava. Martinho Lutero - o cisne - marcou a história com a fé que protesta, que mergulha profundo nas Escrituras e confia sua segurança ao Castelo forte. A vida de Lutero era marcada por um demolidor peso de culpa e senso absurdo do pecado, até o dia em que se deparou com Rm.1.17: Visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá da fé. Sua mente foi transformada para a verdade libertadora da justificação por graça e fé. Na porta da igreja do castelo de Wittenberg, Martinho Lutero afixou suas 95 teses que começaram a desmontar uma história de opressão teológica e desvios doutrinários. O canto do cisne ecoaria pelos séculos. Do ponto de vista teológico, a Reforma Protestante do século XVI, em síntese, tratou de três questões fundamentais: Jesus é o supremo cabeça da igreja (e não a autoridade papal); A Bíblia como Palavra de Deus é a autoridade sobre o cristão (e não a tradição); A salvação é somente (sola) pela fé (e não pelas indulgências ou qualquer outra prática). Dentre esses vários aspectos, o mais relevante é o impacto da leitura e exposição das Escrituras e o seu papel na transformação de indivíduos, da igreja e da sociedade. Uma das frases mais conhecidas no contexto da Reforma é o aforismo de Gisbertus Voetius, reformador holandês (1589-1676): Ecclesia reformata et semper reformanda est ( A igreja reformada está sempre se reformando ). A ideia é um retorno constante às Escrituras. O aforismo de Voetius não foi Ecclesia reformans, que significaria que a igreja reforma a si mesmo. O aforismo diz: Ecclesia reformanda, que está na voz passiva e indica que o agente da Reforma não é ela própria, mas sim o Espírito de Deus. Hoje, muitas igrejas querem o reformans, mas não querem o Sola Scriptura. Quais são as implicações atuais do efeito Lutero? esse desafio de destruir antigos cárceres e se abrir para a espiritualidade bíblica que liberta? 1. O resgate da justificação do pecador por graça e fé Questão central do Evangelho: Como podemos, míseros pecadores, sermos alvos da graça de Deus? John Stott dizia que ninguém entende o cristianismo, se não entende a palavra justificado ". A justificação por graça e fé começa onde há libertação dos esquemas de merecimento: indulgências, peregrinações, penitências, ativismo eclesiástico.
2 Reafirmar esse princípio nos leva a desmascarar teologias que priorizam o ter em detrimento do ser. É o efeito Lutero destruindo a ilusão do merecimento. 2. O resgate da autoridade normativa das Escrituras A redescoberta do evangelho tem passagem obrigatória pela oração e estudo da Palavra. Na época de Lutero, a hermenêutica estava presa aos esquemas próprios e tendenciosos de interpretação oficial da igreja. A reforma afirma que as Escrituras têm autoridade suprema sobre qualquer ponto de vista humano. Não somos chamados a pregar uma teologia, mas o evangelho! Lutero dizia que no momento em que lemos a Bíblia é quando o Diabo mais se apresenta. O exercício hermenêutico, bem como a exposição das Escrituras, precisam ser feitos em temor e profundidade, lembrando sempre que o livre exame não significa livre interpretação! Reafirmar esse princípio nos leva, hoje, a questionarmos a nossa hermenêutica, e assumirmos uma atitude bereana (At. 17.11). Como escreveu Kevin Vanhoozer, vivemos uma séria crise hermenêutica, uma incredulidade para com o sentido. 3. O resgate da igreja como comunhão dos santos Lutero amava a igreja, não queria dividi-la, mas restaurá-la. A igreja era governada pelo Papa, e não por Cristo. Somente o clero possuía a Bíblia, isso sem falar no acúmulo de riquezas e poder da igreja enquanto o povo sofria na miséria. Para Lutero, a igreja é o autêntico povo de Deus, os líderes servem à igreja, e não podem se servir dela. Por isso Lutero reafirmou o sacerdócio geral de todos os crentes todo cristão tem a responsabilidade de anunciar o evangelho. Reafirmar esse princípio hoje, numa sociedade do egoísmo, do individualismo e da indiferença, é assumir um chamado ao arrependimento. Esse arrependimento abrange desde os caciques denominacionais que ainda exploravam o povo, até às mentalidades ingênuas que, por preguiça mental, nunca progridem na fé. Os Tetzels contemporâneos ainda mercadejam a fé com suas novas indulgências e velhas indecências. 4. O resgate da liberdade do cristão Lutero redescobre o prazer de ser livre. Como somente Deus é livre, ele nos concede a liberdade por meio de Jesus Cristo (Jo. 8.31,32 e 36). Lutero perguntava: Para que serve a liberdade do cristão?, ao que ele mesmo respondia: O cristão é livre para amar. Estamos dispostos a amar hoje? John Stott disse que o amor é o outro nome do serviço. Reafirmar esse princípio significa reavaliar todo e qualquer sistema de submissão opressiva, legalismos asfixiantes, estreitamentos neurotizantes, experiências carismáticas carentes de misericórdia, que destroem a liberdade (Gl.5). 5. O resgate da centralidade da cruz de Cristo Através da libertação em Cristo, o cristão se torna um Cristo para os outros, portanto, quem é cristão não pode dominar sobre os seus semelhantes, sob pretexto algum. Antes, solidariza-se com o sofredor, ajudando-o a carregar a cruz.
3 Somos herdeiros diretos da toalha e da bacia (Jo. 13), e não dos tronos e medalhas. Uma frase muito repetida entre os cristãos antigos era: Crente sem cruz não é discípulo de Jesus. Na cruz, o cristão vê crucificado o mundo. Dela vem a nossa vocação para estabelecer o reino de justiça, igualdade e paz. É o sinal supremo do amor de Deus. Reafirmar esse princípio significa voltar à verdade de que não somos celebridades, mas servos. 6. O resgate da teologia dos 05 Solas A reforma protestante teve como base cinco princípios, conhecidos como os 05 solas. A Reforma restituiu à Igreja a crença em doutrinas essenciais, que se tornaram centrais para a sua pregação e para distingui-la dos erros que continuaram e ainda são mantidos em nossos dias. É a importância dessas doutrinas, conhecidas por sua designação latina, Sola Scriptura, Solus Christus, Sola Gratia, Sola Fide e Soli Deo Gloria, que quero apresentar, ainda que de forma breve. SOLA SCRIPTURA Esta convicção de sola Scriptura - somente as Escrituras são a Palavra de Deus e, portanto, a única regra infalível para a vida e doutrina - fornecia o combustível necessário para inflamar a Reforma. Na verdade, foi considerada como a causa formal da Reforma (considerando que sola fide, ou somente a fé, foi considerada como a causa material ). Os pontos de vista desta doutrina são personificados no famoso discurso de Lutero na Dieta de Worms (1521), depois que ele foi convidado a retratar-se dos seus ensinamentos: A menos que possa ser refutado e convencido pelo testemunho da Escritura e por claros argumentos (visto que não creio no papa, nem nos concílios; é evidente que todos eles frequentemente erram e se contradizem); estou conquistado pela Santa Escritura citada por mim, minha consciência está cativa à Palavra de Deus. Não posso e não me retratarei, pois é inseguro e perigoso fazer algo contra a consciência...que Deus me ajude. Amém! Para Lutero, as Escrituras, e somente as Escrituras, eram o árbitro máximo do que devemos acreditar. Que voltemos - urgentemente - à Sola Scriptura! SOLA GRATIA Os reformadores entenderam a importância da graça de Deus para o ensino bíblico sobre a salvação. De fato, um dos lemas que vieram a definir o ensino da Reforma era o Sola Gratia, que é o latim para somente pela graça. Os cristãos são salvos somente pela graça de Deus. Entre os protestantes, existe uma conhecida incompreensão e uma distorção do ensino da Igreja Católica Romana sobre a graça. Às vezes é dito: Roma ensina que somos salvos pelas obras, mas os protestantes ensinam que somos salvos pela graça. Esta declaração, mesmo sendo comum, é uma calúnia contra a Igreja Católica Romana. Roma
4 não ensina que alguém é salvo pelas obras à parte da graça de Deus. Ela, de fato, ensina que uma pessoa é salva pela graça de Deus. A que, então, Roma objetou no ensino dos reformadores? Onde está a linha que diferencia Roma da Reforma? Encontra-se em uma única palavra sola ( somente ). Os reformadores sustentavam que o pecador é salvo pela graça de Deus, o seu favor imerecido, somente. Essa doutrina significa que nada que o pecador fizer pode trazer-lhe o mérito para obter a graça de Deus, e que o pecador não coopera com Deus, a fim de merecer a sua salvação. Como protestantes, entendemos que porquê somos salvos é que praticamos boas obras, e não o contrário! Infelizmente, muitos ainda não compreendem o alcance e o poder da Maravilhosa Graça. SOLA FIDE Esta foi a doutrina central da Reforma. Lutero, de início, não podia compreender como a "justiça de Deus se revela no evangelho" (Rm 1.17). Para ele, a justiça de Deus só poderia condenar o homem, não o salvar. Tal justiça não seria "boas novas" (evangelho). Só quando compreendeu que a justiça de que Paulo fala nesse texto não é o atributo pelo qual Deus retribui a cada um conforme os seus méritos (o que implicaria em condenação para o homem), mas o modo como Ele justifica o homem em Cristo, é que a luz raiou em seu coração e a verdade aflorou em sua mente. Tornou-se, então, um homem livre, confiante e certo do perdão dos seus pecados. Compreendeu o evangelho! O Evangelho é a manifestação dessa justiça de Deus, que é recebida somente pela fé. Não é produzida pelas obras, pois o homem não as tem. Essa fé não é misticista, mágica nem uma espécie de senha para os mistérios de Deus, é a confiança plena no alcance universal da graça e na suficiência do sangue de Jesus Cristo. SOLUS CHRISTUS A teologia da Reforma afirma que a Escritura e sua doutrina sobre a graça e fé enfatizam que a salvação é Solus Christus, somente por Cristo, isto é, Cristo é o único Salvador (Atos 4.12). A centralidade de Cristo é o fundamento da fé protestante. Lutero disse que Jesus Cristo é o centro e a circunferência da Bíblia isso significa que quem ele é e o que ele fez em sua morte e ressurreição são o conteúdo fundamental da Escritura. Ulrich Zwinglio disse: Cristo é o Cabeça de todos os crentes, os quais são o seu corpo e, sem ele, o corpo está morto. Sem Cristo, nada podemos fazer; nele, podemos fazer todas as coisas (João 15.5; Filipenses 4.13). Somente Cristo pode trazer salvação. Paulo deixa claro em Romanos 1-2 que, embora haja uma automanifestação de Deus além da sua obra salvadora em Cristo, nenhuma porção de teologia natural pode unir Deus e o homem. A união com Cristo é o único caminho da salvação. SOLI DEO GLÓRIA Usamos a frase glória de Deus com tanta frequência que ela tende a perder sua força bíblica. Mas essa glória, como o sol, não é menos ardente e não menos benéfica porque
5 as pessoas a ignoram. No entanto, Deus odeia ser ignorado. Considerai, pois, nisto, vós que vos esqueceis de Deus, para que não vos despedace, sem haver quem vos livre. (Salmo 50.22). A glória de Deus é a santidade de Deus colocada em exposição. Isto é, o valor infinito de Deus manifestado. Isaías, em seu extraordinário chamado, mostra a gradação de santo para glória : E clamavam uns para os outros, dizendo: Santo, santo, santo é o SENHOR dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória. (Isaías 6.3). Quando a santidade de Deus enche a terra para que as pessoas vejam, ela chama-se glória. Dar glória somente a Deus significa que ninguém, nem homens nem anjos, deve ocupar o lugar que pertence a Ele, no mundo e em nossa vida, porque somente Ele é o Senhor. Os pregadores puritanos costumavam dizer: Se insistirmos na nossa glória, Deus retirará a sua. Conclusão Somos chamados a discernir o espírito de cada época. Será que estamos dispostos a assumir o efeito Lutero em nossa prática teológica atual? Que a igreja seja, a cada dia, uma igreja reformada, sempre se reformando. Bibliografia CAIRNS, E. Earle. O Cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1995. COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Raízes da Teologia Contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. DREHER, Martin. História do Povo de Jesus: uma leitura latino-americana. São Leopoldo/RS: Sinodal, 2013. FERREIRA, Franklin. Pilares da fé: a atualidade da mensagem da Reforma. São Paulo: Vida Nova, 2017. GONZALEZ, Justo L. Retorno à história do pensamento cristão. São Paulo: Hagnos, 2011. LOPES, Hernandes Dias. Panorama da História Cristã. São Paulo: Candeia, 2005. MATOS, Alderi Souza de. Fundamentos da teologia histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2007. VARGENS, Renato. Reforma agora: o antídoto para a confusão evangélica no Brasil. São José dos Campos/SP: Fiel, 2013. YAMAUCHI, Edwin M.; PIERARD, Richard V.; CLOUSE, Robert G. Dois reinos: a igreja e a cultura interagindo ao longo dos séculos. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. Bíblia Brasileira de Estudo. São Paulo: Editora Vida, 2016 Bíblia de Estudo de Genebra. São Paulo: Cultura Cristã, 2009