Da perda à luta pela retomada do Tekoha Yvy Katu: o ciclo da erva-mate ao ciclo do soja (1940-2010)



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Transcrição:

Da perda à luta pela retomada do Tekoha Yvy Katu: o ciclo da erva-mate ao ciclo do soja (1940-2010) Eliezer Martins Rodrigues Acadêmico do Curso de Licenciatura Indígena Teko Arandu (UFGD/FAED) Profª. Dra. Noêmia dos Santos Pereira Moura - Orientadora Meu nome é Eliezer Martins Rodrigues, sou da etnia Guarani, nasci em 12 de setembro de 1972, na Aldeia Porto Lindo, município de Japorã. Meu pai Elias Martins e minha mãe Aparecida Rodrigues estão vivos. Tenho cinco irmãos e três irmãs, sendo uma já falecida. Desde que eu me empenhei na educação foi com muita vontade de alcançar meus objetivos. Iniciei trabalhando na escola da Missão Evangélica Caiuá, em 1999, a convite da missionária Marice e do Guarani Marcos Martinez, responsáveis pela direção da Missão. A partir daí comecei a me interessar, principalmente, a melhorar o aprendizado das crianças guarani da minha aldeia. Estudei no Distrito Jacareí, município de Japorã e na cidade de Iguatemi para concluir o Ensino Fundamental. No ano de 1999, quando cursava o oitavo ano, surgiu a primeira turma do Magistério Médio Específico para os Guarani e Kaiowá Ara Verá e eu fui um dos alunos da mesma. Durante o curso participei da autoria do livro ñe e poty kuemi, que fala do artesanato de minha etnia. Após o magistério Ara Verá me inscrevi no Vestibular da UFGD no Curso de Licenciatura Indígena Teko Arandu, e faço parte da Turma I, que iniciou no ano de 2006. Estou na Área de Ciências Sociais e gosto muito dos estudos que faço. O presente artigo é um dos resultados das atividades que desenvolvi no Curso de Licenciatura Indígena, que foi o meu Trabalho de Conclusão de Curso. Pretendo nesse trabalho registrar a história da reocupação do tekoha Yvy Katu e meu objetivo geral é demonstrar como foi a perda do território guarani kaiowá e como está sendo a luta pela sua retomada, através do depoimento dos mestres tradicionais e das pesquisas já realizadas pelos não indígenas. A escola indígena tem que assegurar esse conhecimento para seu povo, explicando porque pouca terra para tanto índio. Os professores são lideranças em suas aldeias e tem a responsabilidade de lutar pela garantia dos direitos de seu povo e de mostrar os conhecimentos das leis que garantem seus direitos. Os alunos e a comunidade precisam saber da história contada pelo próprio parente indígena.

Para desenvolver essa pesquisa dialoguei com os guarani kaiowá mais velhos da comunidade e pedi para que os mesmos desenhassem, a partir de sua memória, o território total do antigo tekoha antes da chegada dos ervateiros. Conversei com os anciãos mais velhos da Aldeia Porto Lindo: Eduardo Martins, falecido aos 85 anos, Elias Martins, 65 anos, Ambrósio Vilhalva (Kunumi Taperendy, 49 anos, Delosanto Centurion, 68 anos e Sabino dias, 55 anos. Fiz uso de recursos variados como papel sulfite, pincel, régua, computador, folders de eventos e câmera digital. Vou iniciar apresentando cada um dos anciãos que contribuíram com meu trabalho. Ambrósio Vilhalva é o mais novo com 49 anos. Nasceu em 1961 na Aldeia Guyraroka, Terra Indígena Caarapó, município de Caarapó-MS e desde os dezoito anos começou a se envolver na luta pela causa indígena. As lideranças de Yvy Katu (Rosalino Ortiz, Valdomiro Ortiz, Cícero Rodrigues e Onório) convidaram Ambrósio para dar orientação para a comunidade no processo de luta pela retomada daquele tekoha. Lá permaneceu dezoito dias e é por isso que recolhi sua contribuição. Eduardo Martins, falecido em 2003, é pai de Elias Martins e viveu a história que relatou para seus filhos e netos. Eu mesmo, seu neto, ouvi várias vezes essa história. Elias Martins é hoje o guardião da memória ouvida de seu pai e viveu parte dessa história constituindo sua própria memória sobre a retomada. Foi um dos produtores de mapas. Sabino Dias conhecedor dos lugares sagrados para os guarani e kaiowá e outros locais importantes para a identificação das fronteiras da área indígena como os portos Karuvai, para cima do rio Iguatemi, Kurupai, Porto Moreno, Porto Lindo, para baixo do rio Iguatemi, desenhou o outro mapa da área. Delosanto Centurion, falecido em 08 de janeiro de 2009, foi um líder religioso guarani que através da reza fortaleceu o povo guarani e kaiowá na luta pelo seu tekoha. Ao retomar o tekoha de Yvy Katu o rezador voltou para lá com seus parentes. Desde 2003, dezoito de dezembro, os Guarani Kaiowá resolveram retomar Yvy Katu, estão acampadas mais de oitenta famílias lá. O novo tekoha de Porto Lindo somaria mais ou menos 9.600ha se a área de Yvy Katu fosse totalmente retomada. Yvy Katu foi um antigo tekoha Guarani Kaiowá ocupado pelos exploradores da erva mate. Segundo o ancião Eduardo Martins Guarani (Karai Moço), o senhor Ataliba, explorador de erva, cortou uma área de 1.648 ha e deu aos Guarani. Nessa área não tinha erva mate na mata, que deu origem à Reserva Porto Lindo. 2

Elias Martins, morador há 54 anos na Aldeia Porto Lindo, é filho de Karai Moço e guarda os ensinamentos de seu pai. De acordo com suas palavras, tinha onze anos quando veio do Paraguai para a região de Iguatemi. Veio trabalhar como canoeiro e cuidava do Porto Karuvai. Naquela época, ele já viu muitos parentes trabalhando na erva mate. Depois se casou e ficou fora da área Yvy Katu e dentro da Reserva Porto Lindo. Durante a sua vivência ele chegou a conhecer, através da conversa com os mais velhos, os limites do tekoha e os pontos principais da reza. Os anciãos Nolaco Lopes, Gregória Martins, Davino Cervin, que conheciam bem essa região, mostraram os limites para os mais jovens. Todos participavam da reza e visitavam cada ponto dos limites do território verdadeiro desse tekoha. Conforme o desenho do mapa hidrográfico de Elias Martins, a divisa desse tekoha começa da nascente Guasori (norte da Aldeia Porto Lindo), que desce até o Rio Iguatemi. Do rio Iguatemi vai descendo até a divisa da Fazenda Remanso e dali vai descendo até a ponta do córrego Jacareí. De acordo com sua fala, nesse espaço viviam oito ou mais famílias grandes que circulavam o tekoha, ou seja, se movimentavam para pescar, caçar, procurar remédios tradicionais, faziam festa da chicha em seus quatro cantos. O mapa hidrográfico localiza os dois córregos e um rio que delimitam o tekoha Yvy Katu: córregos Guasori e Jacareí e o rio Iguatemi. Localizou ainda os pontos limites dentro do município de Japorã MS. Com o objetivo de explicar melhor faço a diferenciação entre a área de Porto Lindo e a de Yvy Katu a partir das informações da liderança Rosalino Ortiz. Após a retomada da área pelos guarani e kaiowá, os rezadores decidiram batizar novamente aquele tekoha. O território já ocupado continuou a ser denominado Porto Lindo. O nome ficou, pois os indígenas em sua maioria trabalhavam no porto e se acostumaram com a denominação dada pelos não indígenas. A terra reconquistada e rebatizada recebeu a denominação de Yvy Katu (Terra Sagrada). Foi assim denominada, pois lá havia o cemitério guarani e kaiowá e locais de reza dessa etnia. YvY Katu divide-se em cinco setores: Larreakue, Paloma, Remanso, Agrolak e a Missão Evangélica Caiuá. Os lugares onde os guarani e kaiowá estabeleceram seus acampamentos receberam o nome das fazendas que estavam dentro dos limites do tekoha. Porto Lindo, por sua vez, possui quatro setores divididos pelos agentes de saúde 3

da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA): Bentinho, Guasori, Yú (nascente) e Escola do Alfredo. Mapa 1 Desenhado por Elias Martins no dia 28.09.2010 Localização dos córregos e rio que limitam a área guarani e kaiowá do município de Japorã-MS. Outro ancião, O senhor Sabino Dias, acima apresentado, localizou o primeiro cemitério das pessoas falecidas (oñehundy va kue) desse tekoha, inclusive participou da identificação do tekoha da Aldeia Porto Lindo. Foi ele quem acompanhou os antropólogos no estudo sobre seu tekoha. Conforme Sabino Dias, perto do córrego Guasori tinha uma família grande, do rezador Nolaco, que depois se mudou para Larreakue dentro da área de Yvy Katu. O rezador, naquela época, já vivia bem no meio desse tekoha e a circulação dos parentes indígenas era trânquila. Logo depois da divisão feita pelo extrativista Ataliba a circulação passou a diminuir cada vez mais, pois já era proibida. A população cresceu e as fazendas aumentaram, acabaram as matas, as caças e a cultura ñandereko ficou em silêncio, pois 4

este tekoha estava entre o Brasil e o Paraguai. Tanto os brasileiros, quanto os paraguaios mantinham contato permanente na área. Na verdade, a cultura não indígena era muito forte e existiam órgãos que pretendiam acabar com a cultura indígena. A área de Japorã está no meio de duas culturas e por isso, estamos nessa situação. De acordo, com esse ancião a única garantia que temos para reivindicar o nosso tekoha é saber a nossa reza e saber onde foi enterrado o primeiro rezador, onde foi feito o batismo das crianças e das plantas. Enfim, saber como era a organização e o sistema de nosso povo da Reserva Porto Lindo. É por essa razão que estamos ocupando esse espaço que pertencia há muitos anos a essa comunidade. Aqui a gente não tinha uma estrada boa como hoje. Sabino lembra-se que tinha picadinha no mato por onde seguia para visitar os parentes. Por isso, muitos dos não índios não percebiam o nosso trânsito, mas nós sabíamos os limites de todos os nossos parentes, disse Sabino. Hoje no pedacinho que a justiça liberou, que corresponde mais ou menos a quatrocentos hectares, Sabino e sua família está plantando melancia, mandioca e milho. Sua roça antiga na Aldeia Porto Lindo foi ocupada pelos parentes. Todos os seus parentes estão perto dele. Segundo suas informações todos os seus filhos casados tem um pedacinho de roça plantada. Afirma que as coisas hoje são bem mais difíceis. Ainda bem que sou aposentado e a minha esposa também, mesmo assim não estou contente porque a minha luta é ocupar toda essa terra que é o nosso tekoha, que corresponde mais ou menos a 9.650 hectares. Porque este era a esperança de seu avô falecido o senhor Eduardo Martins (Karaí Moço). Ele conversava muito a respeito de nosso tekoha nas reuniões pedia para a comunidade, as lideranças, jovens, mulheres para que se reunissem em busca de nosso tekoha (Sabino Dias). Quando a comunidade resolveu reivindicar e ocupar novamente Yvy Katu, segundo Sabino, meu avô começou a adoecer e, recentemente, faleceu. Os guarani e kaiowá estão há cinco anos esperando a resposta da justiça no pedacinho de terra que foi liberado e está sendo ocupado pelos parentes. Algumas lideranças faleceram no seu barraquinho, como foi o caso do rezador Delo Santo Centurion. Sabino afirma, Estamos passando muita dificuldade aqui. Bastante gado ao redor de nossos barracos, falta encanamento de água, crianças com dificuldades de brincar, longe 5

de posto de saúde, mas tudo isso não é por mim que estou lutando é pelo meu povo e principalmente pelo nosso tekoha. O líder Sabino Dias destacou a situação que os guarani kaiowá estão vivendo em Yvy Katu e Porto Lindo. Ilustrou seus comentários com os dois mapas com os quais representou o tekoha que envolve as duas comunidades de Porto Lindo e Yvy Katu. O mapa, abaixo, mostra a localização dos moradores antigos desse tekoha. Perto do rio Iguatemi, para cima da ponte, morava a família do Gavino Servin; para baixo da ponte do rio Iguatemi, perto da estrada principal que liga os municípios de Iguatemi a Sete Quedas e Mundo Novo, morava a família de Gregória Martins. Nas proximidades da morada de Gregória havia um cemitério guarani e kaiowá. Nolaco Lopes morava próximo ao centro de Yvy Katu, onde realizava as rezas com toda a comunidade; perto do córrego Guasori havia um outro cemitério; entre a casa de Gregória Martins e a nascente (Yú) morava a família Larrea. Mapa 2- Desenhado por Sabino Dias, liderança de Yvy Katu em 20.05.2010 Localização das famílias antigas. 6

O terceiro mapa é utilizado para mostrar o pedaço liberado pela justiça para ocupação dos guarani e kaiowá, que é de 400 ha. Essa área corresponde a Yvy Katu. Foi destacada a área de Porto Lindo, os córregos e rio; o local dos portos (Kurupai, Porto Moreno, Remanso, Itapopo) que ficam na parte do tekoha Yvy Katu. Mapa 3 Desenhado por Sabino Dias em 20.05.2010 - Representa os limites de Porto Lindo e Yvy Katu. Dessa forma, através da memória histórica e cartográfica demonstrei que foi na época da exploração da erva mate que os Guarani e Kaiowá perderam parte de seu território. Muitas conseqüências são percebidas após a diminuição do território, tais como: luta pelo poder de capitania, jovens indo trabalhar nas usinas de canas e até no Paraguai roçando mato, pois não tem espaço para produzir suas roças. Os parentes vindos de outros lugares já não conseguem pegar espaço. Os alunos e a comunidade precisam saber da história contada pelo próprio parente indígena. 7

Os mapas históricos e cartográficos desenhados pelos representantes guarani e kaiowá, acima dispostos, representam o conhecimento que as lideranças e pessoas de Porto Lindo e Yvy Katu têm do seu tekoha. Segundo o historiador Neimar Sousa (2002), (...) os mapas [são] instrumentos de representação de lugares e se tornam uma representação a ser interpretada. (...) A cartografia histórica, além de ser um exercício metodológico interdisciplinar que aproxima a história e geografia, cumpre uma função de relevância comunitária porque aumenta o conhecimento sobre os territórios tradicionalmente ocupados pelas populações indígenas, especialmente no Mato Grosso do Sul, onde a melhora das condições materiais das populações nativas perpassam, necessariamente, pela demarcação de seus territórios tradicionais. (SOUSA, 2002, PP. 173-174, grifo meu). O registro escrito da memória histórica e cartográfica dos guarani e kaiowá vai aumentar o conhecimento dos parentes sobre os seus territórios tradicionais, no caso em estudo, do tekoha de Porto Lindo e Yvy Katu. Muitas vezes, a memória dos anciãos guarda um respeito especial por alguns não indígenas, como é o caso de Eduardo Martins (Karai Moço) pelo ervateiro Ataliba. No entanto, pelas leituras realizadas percebi que os ervateiros invadiram o território habitado pelos guarani e kaiowá. Karai Moço faleceu agradecendo a Ataliba a doação da área de Porto Lindo. Sua memória é preservada pelos seus descendentes, como é o caso de Elias Martins e Sabino Dias. De acordo, com os estudos de Antônio Brand (2004), concluí que os meus parentes foram expropriados e não presenteados. Essas reservas, demarcadas sob a orientação do Serviço de Proteção aos Índios, SPI, constituíram importante estratégia governamental de liberação de terras para a colonização e conseqüente submissão da população indígena aos projetos de ocupação e exploração dos recursos naturais por frente não indígenas (...) As primeiras frentes não indígenas adentraram pelo território kaiowá e guarani, a partir da década de 1880, após a Guerra do Paraguai, quando se instala na região a Companhia Matte Laranjeira. (...) responsável pelo deslocamento de inúmeras famílias e núcleos populacionais [guarani e kaiowá] (...). (BRAND, 2004, p. 138-139). Quando a Companhia Matte Laranjeira se instalou na região os guarani e kaiowá já a habitavam. Muitas famílias indígenas foram expulsas, recuaram território adentro 8

ou morreram no corte da erva. Por isso, é importante conhecer os estudos realizados pela academia nessa região. Atualmente, as populações indígenas, no caso os guarani e kaiowá estão lutando para retomar seus tekoha. No caso de Japorã, está ocorrendo a luta pela reconquista total de Yvy Katu. Ainda segundo Brand (2004), pode-se afirmar que, (...) cabe registrar a recente iniciativa da população indígena da reserva de Porto Lindo, município de Japorã em reocupar o Yvy Katu, área contígua à reserva. (...) Tem tornado-se prática corrente na região que após a ocupação de determinada área pelos kaiowá e/ou guarani, negociar-se um acordo, segundo o qual os indígenas permanecem na posse de um pequeno lote de terra enquanto esperam a decisão final do processo na justiça. (Idem, p. 148). A situação acima destacada pelo pesquisador Antônio Brand retrata o processo vivido pelos guarani e kaiowá de Porto Lindo, que esperam a justiça liberar a totalidade da área de 9.640 ha. Enquanto aguardam, fazem seus roçados na pequena área de 400 hectares, como foi descrito pelos representantes na primeira parte do texto. Continuadamente, os rezadores fortalecem o seu povo através da reza, das danças e dos rituais tradicionais, como é o caso do Jeroky. Atualmente, a população de Porto Lindo é de aproximadamente cinco mil pessoas vivendo em 1.646 hectares (Dorival, agente indígena de saúde da FUNASA). Tem pouco espaço para plantar roças, para criar animais domésticos. Os índios não têm hábito e não tem condições de desenvolver uma pecuária intensiva. Há mais ou menos cinco anos, a população de Porto Lindo convive com agrotóxicos utilizados no plantio do soja, pois antes disso os fazendeiros investiam somente na pecuária. Meu interesse por esse tema tem ligação com a escola. A escola indígena tem que assegurar esse conhecimento para seu povo, explicando porque pouca terra para tanto índio. Os professores são lideranças em suas aldeias e tem a responsabilidade de lutar pela garantia dos direitos de seu povo e de mostrar os conhecimentos das leis que garantem seus direitos. Os alunos e a comunidade precisam saber da história contada pelo próprio parente indígena. A pesquisa teve como objetivo geral mostrar como foi a perda do território guarani de Porto Lindo e como está sendo a luta pela retomada através dos depoimentos dos mestres tradicionais e das pesquisas já realizadas pelos não-indígenas. 9

Referências: SOUSA, Neimar Machado de. Cartografia Histórica. In: TELLUS/Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas NEPPi, ano, 2, nº 2, abr.2002. Campo Grande: UCDB, 2002. PP. 173-175. BRAND, Antônio. Os complexos caminhos da luta pela terra entre os Kaiowá e Guarani no MS. In: TELLUS/Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas NEPPi, ano 4, nº 6, abr.2004. Campo Grande: UCDB, 2004. PP. 137-150. MURA, Fábio. O Tekoha como categoria histórica: elaborações culturais e estratégia Kaiowá na construção do território. Fronteiras: Revista de História/Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. nº 1 (1997) Campo Grande, MS: UFMS, 1997. PP. 109-143. 10