ANÁLISE ACÚSTICA DAS VOGAIS ORAIS DA LÍNGUA AKUNTSÚ 1

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Transcrição:

ANÁLISE ACÚSTICA DAS VOGAIS ORAIS DA LÍNGUA AKUNTSÚ 1 Carolina Coelho ARAGON Universidade de Brasília/LALI Fernando Orphão de CARVALHO Universidade de Brasília/LALI RESUMO O presente artigo focaliza a descrição acústica preliminar das vogais orais em Akuntsú, língua indígena brasileira da família Tuparí, falada no Sueste de Rondônia. Apresenta-se uma descrição quantitativa das características fonéticas das vogais e uma versão inicial do espaço vocálico da língua. Os resultados contribuem significativamente para reavaliar o status da vogal [ø] com respeito a sua função no sistema fonológico do Akuntsú. ABSTRACT The present paper offers a preliminary acoustic description of the oral vowels of Akuntsú, a Brazilian indigenous language belonging to the Tuparí family and spoken in southeast Rondônia. It presents a quantitative description of the phonetic properties of the vowels as well as a tentative version of the vowel space. The results bear significantly on the status of the [ø] vowel and its role in the Akuntsú phonological system. PALAVRAS-CHAVE vogais orais, análise acústica, língua Akuntsú, família Tuparí. KEY WORDS oral vowels, acoustic analysis, Akuntsú language, Tuparí family. Revista da ABRALIN, v. 6, n. 2, p. 41-55, jul./dez. 2007.

ANÁLISE ACÚSTICA DAS VOGAIS ORAIS DA LÍNGUA AKUNTSÚ 1 Introdução O presente trabalho apresenta os primeiros resultados da análise acústica das vogais orais na língua Akuntsú (família Tuparí, tronco Tupí), que é falada por seis pessoas que sobreviveram ao extermínio organizado contra o seu povo, nas últimas décadas do século passado. Os remanescentes Akuntsú vivem na Terra Indígena Rio Omerê, localizada à margem direita do rio Guaporé, no sueste do Estado de Rondônia. Com este trabalho pretendemos reunir os primeiros resultados do estudo acústico dos sons da língua Akuntsú. São descritas as articulações vocálicas, mediante a identificação acústica dos correlatos de gestos articulatórios específicos, em especial o grau de constrição vertical causada pela ação do articulador ativo (dorso ou lâmina da língua) e o ponto ao longo da dimensão anterior-posterior em que se implementa a função de área que caracteriza o espectro de cada tipo vocálico. Este estudo permitiu-nos testar a hipótese da existência de um fonema /ø/ em contraste com o fonema /a/. Com base nos dados acústicos, também será avaliada a hipótese levantada a partir de julgamentos auditivos e articulatórios de que muitos tokens [ø] estão dentro do mesmo espaço de variação de /a/. Os dados que serviram de base para o estudo foram extraídos de enunciados proferidos por Konibú, um homem de aproximadamente 70 anos, e por Txarúi, uma mulher de aproximadamente 40 anos. 2 Descrição articulatória das vogais 2.1 Análise Fonológica A língua Akuntsú possui 12 fonemas consonantais /p, t, k, kw, /, ts, m, n, N, r, w, j/, em cuja produção distinguem-se cinco pontos de articulação labial, alveolar, alveo-palatal, velar e glotal e cinco modos de articulação oclusiva, oclusiva labializada, africada, nasal e aproximante. Foram identificados, em um primeiro estudo, baseado em 42

CAROLINA COELHO ARAGON & FERNANDO ORPHÃO DE CARVALHO impressões auditivas, 11 fonemas vocálicos, seis orais e cinco nasais /i, e, È, a, u, O, i), e), È), ã. u) )/, na produção dos quais são distinguidos dois graus de altura alto e não alto e três pontos relativos ao avanço e recuo da língua anterior, central e posterior, sendo o traço arredondado associado somente às vogais posteriores (CABRAL & ARAGON, 2005). Quadro 1 - Quadro preliminar dos fonemas vocálicos orais. anterior central posterior alta i È u não-alta e a O não-arredondada arredondada Os exemplos abaixo sugerem a existência de contraste entre seis vogais do Akuntsú. Mostraremos adiante, entretanto, que, de fato, a língua distingue apenas cinco vogais fonológicas. Em alguns exemplos abaixo são indicadas as iniciais de referência aos informantes: K - Konibú e T Txarúi. Estes exemplos foram marcados para identificar as divergências na pronúncia de /a/ e / / destes falantes. Quando não há a marcação, não se encontraram diferenças nas pronúncias. / i / /îpi/ pé /îpu/ mão /uîpi/ meu pé /uîpe/ minha pele /îti/ mãe / ìtè/ urina / e / /eîtu/ cesto /ÈîtÈ/ veado /eîni/ /rede/ /iînu/ o outro T /aîpe/ caminho /uîpa/ minha coxa 43

ANÁLISE ACÚSTICA DAS VOGAIS ORAIS DA LÍNGUA AKUNTSÚ / È / / kèp / pau /kap/ vespa /E/È / sangue /E/u/ barriga /ÈîkÈ/ água /iîku/ comida / u / K /tup/ pai /top/ cobertura /puîtsu/ antebraço /paîtse / jatobá /kuîpi/ cupim /kèîpi/ irmã.de.mulher mais nova / a / /aîkwa/ cará /uîkwa/ irmão.de.mulher T/K /aîpe/ caminho /øîpe / afiado /îka/ comer /îkè/ líquido / O / K /Omeî)ku/ onça /ume)nîpit/ minha filha.de.mulher T/K /topîtut/ mandioca /tapîtep/ orelha dele(a) K /øtse/ 1 pl. excl. /atsi/ dor 2.2 Análise fonética O quadro seguinte apresenta as realizações fonéticas dos sons vocálicos da língua Akuntsú. 44

CAROLINA COELHO ARAGON & FERNANDO ORPHÃO DE CARVALHO Quadro 2 - Quadro fonético das vogais orais. Anterior Central Posterior Alta Fechada [i] [È] [ ] [u] Aberta [I] [U] Média Fechada [e] [Ø] [o] Aberta [E] [á] [ ] [O] Baixa [æ] [a] Não-arredondada Arredondada Os julgamentos auditivos e impressões articulatórias dos primeiros trabalhos de campo levaram à postulação de um contraste entre /ø/ e /a/, considerados os pontos arrolados adiante. Konibú, o homem mais velho dos Akuntsú, é o que apresenta pronúncias mais diferenciadas dos demais membros do grupo, com respeito à produção da vogal central baixa aberta e à produção da vogal posterior média aberta. Na fala de Konibú, [a] não flutua com [ø] em sílabas iniciais pré-tônicas e em ambientes contíguos a sons labiais, tendendo a realizar-se ora pelos alofones [á], [ ], ora pelo [ø]. Por outro lado, na fala das mulheres, há flutuação de [ø], [a], [á] e [ ] nos mesmos contextos da fala masculina. Porém, em determinadas palavras como /øîpe/ afiado, /tøpîdut/ mandioca, é pronunciado ora como [ø], ora como [á] e [ ], tanto na fala feminina quanto na masculina. Ou seja, nestes exemplos não existiria confusão quanto à interpretação de um fonema /ø/, uma vez que não ocorreria variação livre entre [a] e [ø]. Para compreender o que realmente acontece com estas variações e verificar se o postulado fonema /ø/ pode ou não ser inserido no sistema fonológico da língua, recorremos a uma análise acústica, cujos resultados apresentamos em seguida. 3 Descrição acústica das vogais Nesta seção, apresentamos uma descrição acústica preliminar das vogais do Akuntsú, considerando os dois primeiros formantes (F1 e F2) de 45

ANÁLISE ACÚSTICA DAS VOGAIS ORAIS DA LÍNGUA AKUNTSÚ cada vogal. De acordo com os critérios estabelecidos para a tomada de decisão quanto à seleção dos segmentos de fala utilizados, decidimos excluir desta análise inicial o fonema /π/. A maioria dos tokens disponíveis para essa vogal em nossa amostra encontrava-se em posição medial de palavra, apresentando efeitos coarticulatórios de consoantes adjacentes e efeitos de economia articulatória típicos da fala casual (LINDBLOM, 1983). O número total de tokens de segmentos vocálicos submetidos à análise foi respectivamente para Konibú (sexo masculino) e Txarúi (sexo feminino): número total por falante: (51/43); /a/: (13/11); /i/: (11/11); /e/: (13/11); /u/: (12/7) e /o/: (7/5). 3.1 Métodos Os dados que fundamentam a presente análise foram coletados junto a dois falantes Akuntsú 2 por meio de gravadores digitais (Sony IC Recorder ICD-MX20), MDs (Sony Portable Minidisc Recorder MZ-NH700) e fitas cassete (Sony Cassette-Corder TCM-200 DV e Sony TCM-5000), e consistem em enunciados proferidos pelos índios em diversos contextos discursivos do seu dia-a-dia. Os microfones usados foram, para a maioria das gravações, colocados a cerca de 30 cm de distância dos informantes, e sempre empunhados pela pesquisadora. Os segmentos vocálicos submetidos à estimação de formantes foram extraídos preferencialmente de contextos CV, em sílaba inicial de palavra, não acentuada, não laringalizada e de preferência quando C = oclusiva glotal. Este último critério para a tomada de decisão na escolha dos trechos de fala baseia-se na pouca influência que estas consoantes têm sobre os formantes das vogais vizinhas (SHANK & WILSON, 2000; AL-ANI, 1970). Dada a quantidade limitada de dados utilizados neste estudo preliminar, esse critério teve de ser relaxado para que um número mais representativo de tokens fosse considerado. As conseqüências deste fato para as conclusões do nosso trabalho serão discutidas adiante. Os formantes foram estimados através da ferramenta do programa Praat de extração de formantes a partir de segmentos espectrográficos. 46

CAROLINA COELHO ARAGON & FERNANDO ORPHÃO DE CARVALHO Para tanto foram utilizadas as especificações default do programa, com um alcance dinâmico de 60 db e uma janela de análise de duração de 5 ms (0.005 s). As análises estatística descritiva e exploratória (representações gráficas) foram efetuadas com o software SPSS 14.0. Como medida de tendência central dos valores contidos em nossa amostra, utilizamos as medianas e não as médias aritméticas, pois estas últimas apresentam maior sensibilidade a distorções causadas pela presença de valores extremos (outliers). O alcance (hingespread) refere-se à diferença entre o valor máximo e o valor mínimo da amostra, e foi aqui usado como medida de dispersão dos valores da amostra. O uso de estatísticas como essas, no lugar de outras como a média aritmética ou o desvio-padrão, é mais apropriado em estudos preliminares e não-experimentais, nos quais é difícil controlar o efeito de variáveis estranhas que possam afetar os valores mensurados de maneira significativa (Cf. SMITH & PRENTICE, 1993). 3.2 Resultados e Discussão Os valores numéricos da estatística descritiva para as vogais analisadas são: Tabela 1 - Estatística descritiva. Falante 1 Konibú. F1/a/ F2/a/ F1/ø/ F2/ø/ F1/i/ F2/i/ F1/e/ F2/e/ F1/u/ F2/u/ Mediana 662 1095 555 1143 332 1840 516 1846 435 943 Alcance 285 461 346 1039 181 455 379 381 93 698 Mínimo 500 986 431 544 254 1746 392 1484 405 745 Máximo 785 1447 777 1583 435 2201 771 1865 498 1443 Falante 1 (Konibú, sexo masculino) 47

ANÁLISE ACÚSTICA DAS VOGAIS ORAIS DA LÍNGUA AKUNTSÚ Tabela 2 - Estatística descritiva. Falante 2 Txarúi. F1/a/ F2/a/ F1/ø/ F2/ø/ F1/i/ F2/i/ F1/e/ F2/e/ F1/u/ F2/u/ Mediana 913 1415 664 1180 381 2413 865 1963 445 895 Alcance 357 666 240 681 244 891 578 574 258 423 Mínimo 736 1280 560 875 270 1783 447 1495 427 629 Máximo 1093 1946 800 1556 514 2674 1025 2069 685 1052 Falante 2 (Txarúi, sexo feminino) A forma da distribuição de valores encontrados pode ser visualizada no gráfico de boxplot abaixo: Gráfico 1. Boxplot dos valores dos informantes para as cinco vogais. Estimativas de dispersão e tendência central em função do falante. Os números indicam casos extremos e outliers discutidos na seção seguinte. 48

CAROLINA COELHO ARAGON & FERNANDO ORPHÃO DE CARVALHO Gráfico 2 - Espaço vocálico preliminar da língua Akuntsú definido sobre as medianas de cinco das seis vogais fonêmicas da língua. Legenda:? /u/,? / /, + /a/,? /e/, x /i/. Ao comparar o quadro vocálico dos dois falantes através da distribuição das medianas de F1 x F2 para cada vogal, mostra-se evidente um padrão de diferenças sexuais, já documentado em diversas línguas, em que o espaço vocálico feminino tende a ser claramente maior do que o masculino (HENTON, 1995; SIMPSON & ERICSDOTTER, 2007). Parece haver 49

ANÁLISE ACÚSTICA DAS VOGAIS ORAIS DA LÍNGUA AKUNTSÚ consenso de que tal diferença na área dos espaços vocálicos não pode ser atribuída somente à diferença média de tamanho do trato vocal que existe entre homens e mulheres (SIMPSON, 2001). Além disso, existem evidências de que esta tendência geral realiza-se de maneira distinta em diferentes línguas, muito provavelmente de maneira contingente a sistemas vocálicos particulares (HENTON, 1995). Tais fatos levam-nos a crer que a análise destas e outras diferenças acústico-articulatórias têm um papel importante na descrição fonética das línguas 3. No que tange às hipóteses levantadas a partir de julgamentos auditivos e articulatórios, a amostra submetida à presente análise mostra diferentemente que há uma maior variação na produção do (postulado) fonema /ø/ na fala dos homens do que na fala das mulheres. Quando comparados aos dados relativos aos dois informantes (tabelas 1 e 2), podese ver que o alcance da variação na produção do postulado fonema /ø/ é maior na amostra do informante do sexo masculino (F1: 346; F2: 1039) do que na do informante do sexo feminino (F1: 240; F2: 681). Quanto ao valor da mediana do /ø/ (gráfico 2), observa-se que o valor central do espaço vocálico desta vogal está bem mais próximo do centro do espaço vocálico de /a/ na fala masculina do que na fala feminina, aproximandose ainda do espaço de variação de /u/. Estes resultados, somados aos valores mínimos e máximos de cada formante na amostra (Cf. tabelas 1 e 2), são fundamentais para a revisão da proposta inicial de um fonema /ø/ para a língua Akuntsú. Os dados aqui apresentados coadunam-se com a hipótese alternativa de que não há um fonema /ø/ na língua Akuntsú. Em especial, o comportamento excepcional dessa vogal, em ser exatamente a única onde não se manifesta a tendência de maior variação na produção de vogais particulares na fala feminina (o alcance de variação; Cf. tabelas 1 e 2), parece colocá-la à parte dos outros segmentos fonológicos, independentemente motivados apenas pelos métodos tradicionais de estabelecimento de pares mínimos e comutação de segmentos. 50

CAROLINA COELHO ARAGON & FERNANDO ORPHÃO DE CARVALHO Gráfico 3 - Espaço vocálico definido sobre os valores de F1 e F2-F1 de todos os tokens de ambos os falantes. Legenda:? /u/,? / /, + /a/,? /e/, x /i/. Com respeito aos pares mínimos apresentados anteriormente, podese afirmar que o que na proposta anterior foi representado como fonema /ø/ é na realidade o fonema /a/ realizado foneticamente como [ø]. No exemplo do par /aîpe/ e /øîpe/ caminho e afiado respectivamente (apresentados na seção 2.1.), temos uma flutuação entre os alofones [a] e [ø] de um fonema /a/. Trata-se, então, de dois itens lexicais provavelmente homófonos, como também ocorre, por exemplo, na língua Tuparí (ALVES, 2004). A partir destes resultados, os alofones do fonema /a/ da língua Akuntsú passam a ser identificados como: [a], [á], [ø] e [ ]. Como se observa no quadro acima 4 (gráfico 3), os valores de [ø] encontram-se dentro do espaço de variação dos alofones tanto de /a/ quanto de /u/. Cabe notar que todos os fones vocálicos vocálicos, com exceção do [ø], possuem uma porção do seu espaço de variação onde não há sobreposição de tokens de outras vogais. Em alguns casos, a presença de um ou outro valor extremo, seja de um alofone de /u/ ou /a/, pode ser 51

ANÁLISE ACÚSTICA DAS VOGAIS ORAIS DA LÍNGUA AKUNTSÚ explicada em termos da operação de princípios e restrições funcionais bem conhecidos. Como exemplo, o valor extremo que /a/ assume em itens como /ajîba/ chapéu (outlier número 2, na coluna de Konibú no gráfico 1; menor valor F2-F1 no gráfico 3), que o aproxima de [ujîba], deve-se ao princípio funcional de acentuação de contrastes sintagmáticos (BOERSMA, 1998), implicando em uma acentuação do seu caráter posterior (em oposição a [j]), pela diminuição extrema do valor de F2. 4 Conclusão Além de fornecer uma descrição preliminar das vogais da língua Akuntsú, o presente estudo também aduziu evidências de que parte dos sons vocálicos previamente interpretados como alofones do postulado fonema /ø/ em Cabral e Aragon (2005) são, na verdade, alofones do fonema /a/, enquanto os demais são alofones do fonema /u/. Logo, a língua Akuntsú possui um sistema de cinco vogais /a, e, i, È, u/, mais próximo do sistema vocálico das línguas irmãs. Quadro 3 - Fonemas vocálicos da língua Akuntsú. anterior central posterior alta i È u não-alta e a não-arredondada arredondada Este estudo constitui a etapa preliminar da construção de uma base sólida de conhecimento acerca da fonética acústica e articulatória da língua Akuntsú, com o intuito de que, em estudos futuros, possamos explicar padrões morfofonológicos e fonológicos desta língua considerando restrições funcionais fonéticas e as relações destas com variáveis, como sexo ou idade (OHALA, 1990). 52

CAROLINA COELHO ARAGON & FERNANDO ORPHÃO DE CARVALHO Notas 1 Agradecemos à Profa. Dra. Ana Suelly Arruda Câmara Cabral pela sua sugestão do tema, revisão e atenção, aos Professores Dr. Aryon Dall Igna Rodrigues e Dr. Wilmar da Rocha D Angelis também pelos comentários e atenção às nossas discussões. 2 O acervo lingüístico digitalizado é composto por dados coletados durante os anos de 2004, 2006 e 2007, somando um total de 235 dias de trabalho de campo com este grupo. As digitalizações foram efetuadas utilizando-se os parâmetros default do software Sound Forge: 44.100 Hz; 16 bits; Stereo. 3 Uma hipótese interessante para se explicar as diferenças sexuais nos espaços vocálicos apela para as diferenças de pitch médio (o correlato perceptual da freqüência fundamental de vibração da laringe; F0) entre a fala de homens e mulheres (DIEHL et al, 1996). A idéia é que os altos valores de pitch da fala feminina dificultariam o processo de extração das harmônicas do pulso laríngeo, afetando a resolução do envelope espectral, e que as mulheres compensariam esta desvantagem alargando seus espaços vocálicos (i.e., adotando automaticamente uma pronúncia mais clara ou cuidadosa das vogais). 4 A variável relativa à diferença entre F2 e F1 foi usada como medida geral de localização na dimensão anterior-posterior do trato vocal (LADEFOGED E MADDIESON, 1990). Essa medida é usualmente empregada para normalizar os dados para diferenças sexuais (i.e., eliminar o efeito da variável sexo; WHITESIDE, 2001) provendo então uma representação mais limpa do espaço vocálico da língua, dado que valores absolutos de formantes são sensíveis a diversas variáveis extra-lingüísticas. Referências AL-ANI, S. Arabic phonology: an acoustical and physiological investigation. The Hague: Mouton, 1970. ALVES, Poliana Maria. O léxico do Tuparí: proposta de um dicionário bilíngüe. Tese de doutorado em Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2004. 53

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