INTERTEXTO EM O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO: UM ESTUDO DA CENA DA CRUCIFICAÇÃO DE JESUS

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Transcrição:

INTERTEXTO EM O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO: UM ESTUDO DA CENA DA CRUCIFICAÇÃO DE JESUS Hugo de Andrade Silvestre (hugoasilvestre@yahoo.com.br) RESUMO Este artigo tem por objetivo analisar a cena da crucificação de Jesus na obra Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, em busca de intertextos com as narrativas bíblicas de Mateus, Marcos, Lucas e João. Para tanto são utilizados os conceitos de intertexto e influência oferecidos por Nitrini (1997) e as críticas literárias de Calbucci (1999). Como método se empregou a leitura e análise da obra literária em estudo e dos quatro evangelhos sacralizados por meio da Bíblia. A partir disso, foram traçadas comparações entre os textos, estabelecendo semelhanças e diferenças entre eles no que tange aos elementos constitutivos da cena da crucificação na narrativa da vida de Jesus, o Cristo. A partir disso contatou-se que na obra do autor português o momento da crucificação é um intertexto elaborado em função de uma perspectiva irônica e crítica de elementos sagrados do cristianismo. PALAVRAS-CHAVE: Evangelho Segundo Jesus Cristo, Saramago, crucificação, intertexto ABSTRACT This article aims to examine the scene of the crucifixion of Jesus in the Gospel According to Jesus Christ of José Saramago, in search of intertexts with the biblical narratives of Matthew, Mark, Luke and John. Therefore the concepts of intertext and influence offered by Nitrini (1997) as well literary criticism from Calbucci (1999) were used. The reading and analysis of Saramago s work and the study of the four Gospels (made holy through the Bible) were the method here applied. From this, comparisons were drawn between the texts, establishing similarities and differences between them with respect to the constituent elements of the crucifixion scene in the narrative of Jesus' life, the Christ. The conclusion of the analysis was: the Gospel According to Jesus Christ is an intertext, marked by criticism and ironies towards sacred elements from Christianity. Key-words: Gospel Acoording to Jesus Christ, Saramago, crucifixion, intertext INTRODUÇÃO Este trabalho propõe análise da cena da crucificação na obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago. Tal análise se centra na constatação de intertextos com as narrativas bíblicas da vida de Jesus presentes nos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. De maneira sistemática, o artigo oferece: referencial teórico, conceituando arte, influência e intertexto; a metodologia empregada; apresentação do autor português, José Saramago, e de sua obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo; apresentação da cena da crucificação na obras em análise e nos quatros evangelhos bíblicos; análises e considerações sobre a presença de intertexto na produção de Saramago. 1

REFERENCIAL TEÓRICO Para que se chegue a reflexões sobre a intertextualidade na constituição do texto de Saramago, o conceito de arte e do fazer artístico são básicos e fundamentais. Bosi (1985, p. 13), retomando perspectivas clássicas, afirma que A arte é um fazer. A arte é um conjunto de atos pelos quais se muda a forma, se transforma a matéria oferecida pela natureza e pela cultura. [...] Percebe-se em tal conceituação que há íntima relação entre o fazer artístico e a realidade natural e sociocultural. Ao se propor a produção artística, o homem se lança a realizar um fazer que tem como referente o contexto em que se insere, sendo ele calcado no físico ou no espírito de sua época ou sociedade. (1991): Bosi (1985, p.28) acaba por retomar a ideia de arte presente na poética de Aristóteles Uma das mais antigas tradições teóricas filia-o à representação. É o conceito de arte como mímesis. O termo comparece em vários textos da filosofia grega. O seu significado preciso, depende, naturalmente, dos contextos. Pode aludir à mera imitação de traços e gestos humanos, tal como ocorria nos mimos e na pantomima, representações de caráter jocoso e satírico. Pode também significar a reprodução seletiva do que parece mais característico em uma pessoa ou coisa, e ser, portanto, uma operação que revele aspectos típicos da vida social; neste sentido, o artista escolheria os perfis relevantes do original antes de figurá-los[...] O evangelho segundo Jesus Cristo, de Saramago 1 (1991), pode ser enquadrado como obra de arte a partir do que indica Bosi. Primeiro por realizar um transformar da matéria oferecida pela cultura, especificamente a cristã ocidental. Segundo por ser uma reprodução seletiva de um construto social, a vida e morte de Cristo. A análise aqui proposta de elementos dessa obra de Saramago exige a definição de alguns conceitos fundamentais advindos da literatura comparada, coadunando com o conceito de arte já empregado. Nitrini (1997) oferece aparato teórico substancial ao elaborar discussões sobre os conceitos de influência e intertextualidade. Para a autora: O conceito de influência tem duas acepções diferentes. A primeira, a mais corrente, é a que indica a soma de relações de contato de qualquer espécie, que se pode estabelecer entre um emissor e um receptor [...] A segunda acepção é de ordem qualitativa. [...] entendendo-se por contato o conhecimento direto ou indireto de uma fonte por um autor. [...] (NITRINI, 1997, p. 127) Dessa maneira, buscar a presença de uma influência em uma produção artística, qualquer que seja ela, é se lançar sobre uma análise acerca das relações entre interlocutores, 1 A partir deste momento, este trabalho se referirá a obra O evangelho segundo Jesus Cristo por meio da sigla OESJC. 2

como também entre o autor e seu repertório cultural, social, religioso, científico, etc. Trata-se de elemento de difícil apreensão, que em alguns casos pode ser possível por indícios presentes na biografia e em declarações do artista a ser estudado. A autora chega à ideia de que [...] o estudo de influências é a pesquisa de semelhanças escondidas, de parentescos secretos entre duas visões de mundo. (NITRINI, 1997, p. 133) Nitrini (1997) ainda faz questão de distinguir influência de imitação, mostrando que essa última é mais limitada e pontual, não chegando a modificar a personalidade artística do escritor. Ainda dentro da ideia de influência, encontra-se a definição de intertextualidade: Uma das re-elaborações mais interessantes do conceito de intertextualidade é a de Laurent Jenny em La stratégie de la forme, aliás, já referido no início deste item. [...] Para Laurent Jenny, a intertextualidade não é uma adição confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos operado por um texto centralizador que mantém o comando do sentido. Destaquemos os três pontos essenciais nessa definição: O reconhecimento da presença de outros textos em toda e qualquer obra literária. O trabalho de modificação que os textos estranhos sofrem ao serem assimilados. O sentido unificador que deve ter o intertexto [...] (JENNY, apud. NITRINI, 1997, p. 163) Nota-se que as exposições de Nitrini e de Jenny se aproximam das concepções de bakhtinianas. Bakhtin (2009) pensa a linguagem a partir das interações sociais e das interconexões entre os discursos, adotando a dialogicidade como base. Para o pensador, não haveria discurso isolado e completamente recortado da realidade linguística, mas sim elaborações interligadas às suas predecessoras e às que ainda estiverem por se constituir. Consequentemente, a visão de Bakhtin corrobora à discussão sobre o fenômeno do intertexto nas obras artísticas e, mais especificamente, literárias. Nitrini indica ainda a seguinte reflexão (que contribui fortemente para os objetivos traçados neste artigo): Há, portanto, três elementos em jogo: o intertexto (o novo texto), o enunciado estranho que foi incorporado e o texto de onde este último foi extraído. E há dois tipos de relações a considerar na problemática intertextual: as relações que ligam o texto de origem ao elemento que foi retirado, mas já agora modificado no novo contexto, e as relações que unem este elemento transformado ao novo texto, ao texto que o assimilou. Assim, a análise de uma obra literária buscará inicialmente avaliar as semelhanças que persistem entre o enunciado transformador e o seu lugar de origem e, em segundo lugar, ver de que modo o intertexto absorveu o material do qual se apropriou. (NITRINI, 1997, p.164) Assim, a proposta de análise de OESJC basicamente leva a cabo uma comparação entre os escritos de Saramago e a narrativa da crucificação de Cristo presente nos evangelhos constantes na Bíblia (Mateus, Marcos, Lucas e João). Surge dessa forma o intento de delinear as transformações presentes no novo texto e contexto em relação a sequência de fatos já consagrada ou até mesmo sacralizada - pelos cristãos e pelas igrejas cristãs ocidentais. Em decorrência disso, não serão 3

considerados os evangelhos apócrifos, ou melhor, aqueles não internalizados nos dogmas e liturgias das instituições religiosas do Ocidente. METODOLOGIA Como procedimento de pesquisa adotou-se: leitura dos quatro evangelhos presentes na Bíblia; leitura da obra OESJC, de José Saramago; comparação das cenas da crucificação de Cristo presentes nos cinco textos. A seleção da crucificação como objeto desta análise se deu por sua significância e simbologia na cultura cristã ocidental, como também para a narrativa elaborada pelo autor português. A crucificação é possuidora de valor simbólico e religioso mais significativo do que os demais fatos da vida e morte de Jesus, o Cristo, pois é a partir dela que se fundamentam as fés das religiões de base cristã no Ocidente. O AUTOR E A OBRA JOSÉ SARAMAGO Antes da obra, se impõe conhecer o autor. Para tanto, Calbucci (1999) narra de maneira impecável a origem de Saramago. No Ribatejo, expressão que identifica o norte de Portugal, numa aldeia chamada Azinhaga em que camponeses andam descalços -, no dia 16 de novembro de 1922, nasceu José de Sousa (esse era para ser o nome de Saramago). Era para ser porque a família do escritor tinha apenas um sobrenome, Sousa. Acontece que em Azinhaga todas as famílias eram conhecidas por apelidos, e ade Saramago recebeu esta alcunha por associação a uma planta silvestre. Quando o pai foi fazer o registro do recém-nascido, ele disse: Vai se chamar José como o pai, e o funcionário do cartório resolveu, por conta própria, acrescentar ao nome escolhido o apelido da família. O engano só foi descoberto sete anos mais tarde, quando o garoto foi matriculado na escola primária e os pais perceberam que ele se chamava José de Sousa Saramago. O pior é que a família nunca viu com bons olhos a alcunha recebida em Azinhaga... (CALBUCCI, 1999, p. 11) De gênese simples, como visto acima, Saramago tem uma trajetória homérica, de serralheiro, passando por funcionário público, chegando a jornalista e escritor. Quanto à sua formação, carreira e morte, na página oficial de sua fundação (www.josesaramago.org), encontra-se o seguinte: 4

Fez estudos secundários (liceais e técnicos) que, por dificuldades económicas, não pôde prosseguir. O seu primeiro emprego foi como serralheiro mecânico, tendo exercido depois diversas profissões: desenhador, funcionário da saúde e da previdência social, tradutor, editor, jornalista. Publicou o seu primeiro livro, um romance, Terra do Pecado, em 1947, tendo estado depois largo tempo sem publicar (até 1966). Trabalhou durante doze anos numa editora, onde exerceu funções de direcção literária e de produção. Colaborou como crítico literário na revista Seara Nova. Em 1972 e 1973 fez parte da redacção do jornal Diário de Lisboa, onde foi comentador político, tendo também coordenado, durante cerca de um ano, o suplemento cultural daquele vespertino. Pertenceu à primeira Direcção da Associação Portuguesa de Escritores e foi, de 1985 a 1994, presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores. Entre Abril e Novembro de 1975 foi director-adjunto do jornal Diário de Notícias. A partir de 1976 passou a viver exclusivamente do seu trabalho literário, primeiro como tradutor, depois como autor. Casou com Pilar del Río em 1988 e em Fevereiro de 1993 decidiu repartir o seu tempo entre a sua residência habitual em Lisboa e a ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias (Espanha). Em 1998 foi-lhe atribuído o Prémio Nobel de Literatura. José Saramago faleceu a 18 de Junho de 2010. (2013) Merece destaque em sua biografia o Nobel de Literatura, recebido em 1998. O autor publicou seus discursos nos eventos de premiação, como preambulo da publicação encontrase o seguinte: A 8 de Outubro de 1998, a Academia Sueca, a quem compete atribuir anualmente os prémios Nobel, anunciava a sua decisão de atribuir o Prémio Nobel de Literatura a José Saramago. Pela primeira vez desde que o Prémio Nobel o mais importante prémio literário do mundo fora criado, foi ele atribuído a um escritor de língua portuguesa. [...] (SARMAGO, 1999, p.3) O fato é de grande importância na vida do autor e na história da produção literária de língua portuguesa. Também ganha importância neste trabalho pois a obra motivadora da atribuição do prêmio foi OESJC. Desde então, Saramago ganhou ainda mais projeção como um autor e pensador de alcance universal, sendo lido e pensado mundo afora, especialmente em função de seu realismo absurdo em que a epidemia de uma cegueira branca toma conta de toda uma população (em Ensaio sobre a cegueira), passando pelo descolamento da Península Ibérica, que se torna uma jangada (em a Jangada e Pedra), e incluindo a greve da Morte, que decide não mais levar os humanos deste mundo (em As intermitências da morte). OESJC não foi somente motivo de premiação, mas também de polêmica. Devido ao seu conteúdo e dessacralização dos textos bíblicos, a discórdia coma Igreja Católica se tornou sensível, culminando no corte de relações entre o autor e a instituição. A postura ateia de Saramago acabou por ser ainda mais marcante em seu perfil público e em suas declarações. 5

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO E OS TEXTOS BÍBLICOS DA CRUCIFICAÇÃO José Saramago selecionou como epígrafe para OESJC um texto bíblico significativo para as análises aqui pretendidas. Antes mesmo que a narrativa se inicie, é apresentada a seguinte citação: Já que muitos empreenderam compor uma narração dos factos que entre nós se consumaram, como no-los transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares e se tornaram sercidores da Palavra, resolvi eu também, depois de tudo ter investigado cuidadosamente desde a origem, expor-tos por escrito e pela sua ordem, ilustre Teófilo, a afim de que reconheças a solides da doutrina em que foste instruído. LUCAS, 1, 1-4 (LUCAS, apud. SARAMAGO, 1991) A obra ainda apresenta uma segunda epígrafe, uma fala de Pilatos em latim, presente no evangelho de João, Quod scripsi, scripsi. (JOÃO, apud. SARAMAGO, 1991), cuja tradução seria o que escrevi, escrevi. O tom provocador do romance que está por se abrir na página seguinte já se prenuncia. A escolha dos textos bíblicos indica um autor que se apossa da possibilidade de recontar a trajetória de Jesus, assim como o fez Lucas e outras. Em sequência, a epígrafe latina encaminha a ideia de libertação e de ausência de pesar quanto ao se declara. Calbucci (1999), ao analisar o uso dessas citações, lembra que muitos outros foram aqueles que se lançaram na empreita de recontar vida e morte de Cristo. Exemplo por ele dado é o de O guardador de rebanhos de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, também um clássico da literatura de língua portuguesa. O processo de dessacralização da narrativa e dos personagens nela envolvidos já estão presentes no uso de tais textos, algo que ganhará profundidade no decorrer das páginas. Calbucci aponta o caráter incômodo presente no romance. Nota-se que Saramago escolhe muito bem esses versículos, tanto para justificar a sua criação ficcional como para incomodar certas crenças inabaláveis. Aliás, esse desejo pelo incômodo, que encontra para no ateísmo do romancista, mais uma vez dialoga com o propósito de desmistificar a História oficial, neste caso a sagrada, apresentando uma versão humanizadora dos acontecimentos. O Evangelho Segundo Jesus Cristo leva às últimas consequências esse princípio desmistificador, dando cores à vida de Jesus, de Maria, de José, de Maria Madalena (ou de Magdala), de Pedro, de Judas, de Deus e do Demônio. Essas personagens não precisaram ser inventadas, Saramago apenas aproveitou dos evangelhos e roubou-lhes o ar solene da religiosidade, para apresentá-las com a densidade psicológica que tinham ou que têm ou que deveriam ter tido. (CALBUCCI, 1999, p. 71) 6

A CRUCIFICAÇÃO EM SARAMAGO E NOS EVANGELHOS Nas quatro primeiras páginas do enredo, quebrando a linearidade da narrativa, é composta uma rica descrição da crucificação, que parece ser realizada a partir de uma tela que a representa. Nela, a dessacralização e os aspectos observados por Calbucci (1999) estão fortemente presentes. Jesus (o Cristo), o bom ladrão e o mau ladrão; as Marias ao pé da cruz; José de Arimatéia e etc. são construídos nos mínimos detalhes, tanto fisicamente quanto psicologicamente. Essa se trata da primeira aparição desta cena na obra. Já seguindo o fluxo cronológico da narrativa que se estabelece nas páginas seguintes, como desfecho da obra surge pela segunda vez a cena da crucificação, a qual será dedicada análise mais detida, por se tratar de elemento componente da história (não uma espécie de preâmbulo como a primeira). Levaram dali Jesus para uma altura a que chamavam Gólgota, e, como já lhe iam fraquejando as pernas sob o peso do patíbulo, apesar da sua robusta compleição, mandou o centurião comandante que um homem que ia de passagem e parara um momento para olhar o desfile tomasse conta da carga. De apupos e vaias já se deu antes notícia, como da multidão que os lançava. Também da rara piedade. Quanto aos discípulos, esses andam por aí, agora mesmo uma mulher acabou de interpelar Pedro, Tu não eras dos que estavam com ele, e Pedro respondeu, Eu, não, e tendo dito escondeu-se atrás de todos, mas ali tornou a encontrar a mesma mulher e outra vez lhe disse, Eu, não, e porque não há duas sem três, sendo a de três a conta que Deus fez, ainda Pedro foi terceira vez perguntado e terceira vez respondeu, Eu, não. As mulheres sobem ao lado de Jesus, umas tantas aqui, umas tantas ali, e Maria de Magdala é a que mais perto vai, mas não pode aproximar-se porque não a deixam os soldados, como a todos e todas não deixarão passar nas proximidades do local onde estão levantadas três cruzes, duas ocupadas já por dois homens que berram e gritam e choram, e a terceira, ao meio, esperando o seu homem, direita e vertical como uma coluna sustentando o céu. Disseram os soldados a Jesus que se deitasse, e ele deitouse, puseram-lhe os braços abertos sobre o patíbulo, e quando o primeiro cravo, sob a bruta pancada do martelo, lhe perfurou o pulso pelo intervalo entre os dois ossos, o tempo fugiu para trás numa vertigem instantânea, e Jesus sentiu a dor como seu pai a sentiu, viu-se a si mesmo como o tinha visto a ele, crucificado em Séforis, depois o outro pulso, e logo a primeira dilaceração das carnes repuxadas quando o patíbulo começou a ser içado aos sacões para o alto da cruz, todo o seu peso suspenso dos frágeis ossos, e foi como um alívio quando lhe empurraram as pernas para cima e um terceiro cravo lhe atravessou os calcanhares, agora não há mais nada a fazer, é só esperar a morte. Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já não chegou a ver, 7

posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava. (SARAMAGO, 1991, p. 443 445) O cenário é o mesmo dos textos bíblicos, Gólgota. Os personagens participantes da crucificação também coincidem com os textos sagrados presentes na Bíblia. Já a descrição do ato da crucificação propriamente dito, perpetrado pelos soldados, e o diálogo estabelecido entre Jesus e Deus diferem das narrativas de Mateus, Marcos, Lucas e João. Para que os contrastes e paralelos entre esses cinco textos seja visível, é imprescindível a leitura dos trechos dos evangelhos que narram a mesma cena presente na obra de Saramago. Em Mateus 27 (26-50), encontra-se a seguinte narrativa: 26 Então lhes soltou Barrabás; mas a Jesus mandou açoitar, e o entregou para ser crucificado. 27 Nisso os soldados do governador levaram Jesus ao pretório, e reuniram em torno dele toda a corte. 28 E, despindo-o, vestiram-lhe um manto escarlate; 29 e tecendo uma coroa de espinhos, puseram-lha na cabeça, e na mão direita uma cana, e ajoelhando-se diante dele, o escarneciam, dizendo: Salve, rei dos judeus! 30 E, cuspindo nele, tiraram-lhe a cana, e davam-lhe com ela na cabeça. 31 Depois de o terem escarnecido, despiram-lhe o manto, puseram-lhe as suas vestes, e levaram-no para ser crucificado. 32 Ao saírem, encontraram um homem cireneu, chamado Simão, a quem obrigaram a levar a cruz de Jesus. 33 Quando chegaram ao lugar chamado Gólgota, que quer dizer, lugar da Caveira, 34 deram-lhe a beber vinho misturado com fel; mas ele, provando-o, não quis beber. 35 Então, depois de o crucificarem, repartiram as vestes dele, lançando sortes, [para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta: Repartiram entre si as minhas vestes, e sobre a minha túnica deitaram sortes.] 36 E, sentados, ali o guardavam. 37 Puseram-lhe por cima da cabeça a sua acusação escrita: ESTE É JESUS, O REI DOS JUDEUS. 38 Então foram crucificados com ele dois salteadores, um à direita, e outro à esquerda. 39 E os que iam passando blasfemavam dele, meneando a cabeça 40 e dizendo: Tu, que destróis o santuário e em três dias o reedificas, salva-te a ti mesmo; se és Filho de Deus, desce da cruz. 41 De igual modo também os principais sacerdotes, com os escribas e anciãos, escarnecendo, diziam: 42 A outros salvou; a si mesmo não pode salvar. Rei de Israel é ele; desça agora da cruz, e creremos nele; 43 confiou em Deus, livre-o ele agora, se lhe quer bem; porque disse: Sou Filho de Deus. 44 O mesmo lhe lançaram em rosto também os salteadores que com ele foram crucificados. 45 E, desde a hora sexta, houve trevas sobre toda a terra, até a hora nona. 46 Cerca da hora nona, bradou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactani; isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? 47 Alguns dos que ali estavam, ouvindo isso, diziam: Ele chama por Elias. 48 E logo correu um deles, tomou uma esponja, ensopou-a em vinagre e, pondoa numa cana, dava-lhe de beber. 49 Os outros, porém, disseram: Deixa, vejamos se Elias vem salvá-lo. 50 De novo bradou Jesus com grande voz, e entregou o espírito. (MATEUS, online) Já na versão de Marcos (15: 22-37), a cena é exposta da seguinte maneia: 22 Levaram-no, pois, ao lugar do Gólgota, que quer dizer, lugar da Caveira. 23 E ofereciam-lhe vinho misturado com mirra; mas ele não o tomou. 24 Então o crucificaram, e repartiram entre si as vestes dele, lançando sortes sobre elas para ver o que cada um levaria. 25 E era a hora terceira quando o crucificaram. 26 Por cima dele estava escrito o título da sua acusação: O REI DOS JUDEUS. 27 Também, com ele, crucificaram dois salteadores, um à sua direita, e outro à esquerda. 28 [E cumpriu-se a escritura que diz: E com os malfeitores foi contado.] 29 E os que iam passando blasfemavam dele, meneando a cabeça e dizendo: Ah! tu que destróis o santuário e em três dias o reedificas. 30 salva-te a ti mesmo, descendo da cruz. 31 De igual modo também os principais sacerdotes, com os escribas, escarnecendo-o, diziam entre si: A 8

sacralizada. outros salvou; a si mesmo não pode salvar; 32 desça agora da cruz o Cristo, o rei de Israel, para que vejamos e creiamos, Também os que com ele foram crucificados o injuriavam. 33 E, chegada a hora sexta, houve trevas sobre a terra, até a hora nona. 34 E, à hora nona, bradou Jesus em alta voz: Eloí, Eloí, lamá, sabactani? que, traduzido, é: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? 35 Alguns dos que ali estavam, ouvindo isso, diziam: Eis que chama por Elias. 36 Correu um deles, ensopou uma esponja em vinagre e, pondo-a numa cana, dava-lhe de beber, dizendo: Deixai, vejamos se Elias virá tirá-lo. 37 Mas Jesus, dando um grande brado, expirou. (MARCOS, online) No evangelho de Lucas (23: 26-46) a crucificação ganha sua terceira versão 26 Quando o levaram dali tomaram um certo Simão, cireneu, que vinha do campo, e puseram-lhe a cruz às costas, para que a levasse após Jesus. 27 Seguia-o grande multidão de povo e de mulheres, as quais o pranteavam e lamentavam. 28 Jesus, porém, voltando-se para elas, disse: Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai antes por vós mesmas, e por vossos filhos. 29 Porque dias hão de vir em que se dirá: Bem-aventuradas as estéreis, e os ventres que não geraram, e os peitos que não amamentaram! 30 Então começarão a dizer aos montes: Caí sobre nós; e aos outeiros: Cobri-nos. 31 Porque, se isto se faz no lenho verde, que se fará no seco? 32 E levavam também com ele outros dois, que eram malfeitores, para serem mortos. 33 Quando chegaram ao lugar chamado Caveira, ali o crucificaram, a ele e também aos malfeitores, um à direita e outro à esquerda. 34 Jesus, porém, dizia: Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem. Então repartiram as vestes dele, deitando sortes sobre elas. 35 E o povo estava ali a olhar. E as próprias autoridades zombavam dele, dizendo: Aos outros salvou; salve-se a si mesmo, se é o Cristo, o escolhido de Deus. 36 Os soldados também o escarneciam, chegando-se a ele, oferecendo-lhe vinagre, 37 e dizendo: Se tu és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo. 38 Por cima dele estava esta inscrição [em letras gregas, romanas e hebraicas:] ESTE É O REI DOS JUDEUS. 39 Então um dos malfeitores que estavam pendurados, blasfemava dele, dizendo: Não és tu o Cristo? salva-te a ti mesmo e a nós. 40 Respondendo, porém, o outro, repreendiao, dizendo: Nem ao menos temes a Deus, estando na mesma condenação? 41 E nós, na verdade, com justiça; porque recebemos o que os nossos feitos merecem; mas este nenhum mal fez. 42 Então disse: Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino. 43 Respondeu-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso. 44 Era já quase a hora sexta, e houve trevas em toda a terra até a hora nona, pois o sol se escurecera; 45 e rasgou-se ao meio o véu do santuário. 46 Jesus, clamando com grande voz, disse: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. E, havendo dito isso, expirou. (LUCAS, online) Bíblia. Finalmente, no evangelho de João (19: 17-31) surge a quarta versão constante na 17 Tomaram, pois, a Jesus; e ele, carregando a sua própria cruz, saiu para o lugar chamado Caveira, que em hebraico se chama Gólgota, 18 onde o crucificaram, e com ele outros dois, um de cada lado, e Jesus no meio. 19 E Pilatos escreveu também um título, e o colocou sobre a cruz; e nele estava escrito: JESUS O NAZARENO, O REI DOS JUDEUS. 20 Muitos dos judeus, pois, leram este título; porque o lugar onde Jesus foi crucificado era próximo da cidade; e estava escrito em hebraico, latim e grego. 21 Diziam então a Pilatos os principais sacerdotes dos judeus: Não escrevas: O rei dos judeus; mas que ele disse: Sou rei dos judeus. 22 Respondeu Pilatos: O que escrevi, escrevi. 23 Tendo, pois, os soldados crucificado a Jesus, tomaram as suas vestes, e fizeram delas quatro partes, para cada soldado uma parte. Tomaram também a túnica; ora a túnica não tinha costura, sendo toda tecida de alto a baixo. 24 Pelo que disseram uns aos outros: Não a rasguemos, mas lancemos sortes sobre ela, para ver de quem será (para que se cumprisse a escritura que diz: Repartiram entre si as minhas vestes, e lançaram sortes). E, de fato, os soldados assim fizeram. 25 Estavam em pé, 9

junto à cruz de Jesus, sua mãe, e a irmã de sua mãe, e Maria, mulher de Clôpas, e Maria Madalena. 26 Ora, Jesus, vendo ali sua mãe, e ao lado dela o discípulo a quem ele amava, disse a sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. 27 Então disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. E desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa. 28 Depois, sabendo Jesus que todas as coisas já estavam consumadas, para que se cumprisse a Escritura, disse: Tenho sede. 29 Estava ali um vaso cheio de vinagre. Puseram, pois, numa cana de hissopo uma esponja ensopada de vinagre, e lha chegaram à boca. 30 Então Jesus, depois de ter tomado o vinagre, disse: está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito. 31 Ora, os judeus, como era a preparação, e para que no sábado não ficassem os corpos na cruz, pois era grande aquele dia de sábado, rogaram a Pilatos que se lhes quebrassem as pernas, e fossem tirados dali. (JOÃO, online) Considerando as cenas oferecidas por cada um dos quatro evangelhos presentes na Bíblia (Mateus, Marcos, Lucas e João), é possível retomar o texto elaborado por Saramago e perceber que sua versão dos fatos se sustentam da seguinte maneira: é apoiada nas versões dos quatro evangelhos bíblicos; realiza sobreposições de elementos presentes nos textos de Mateus, Marcos, Lucas e João; recontextualiza falas e comportamentos, conferindo-lhes novos significados; oferece sua própria perspectiva do acontecimento, humanizando o acontecimento e as personagens nele envolvidas. A presença material de Deus em OESJC com quem Jesus, da cruz, estabelece um diálogo, faz com que emanem da cena novos significados, pois ali o Cristo pede perdão por Deus e por todos os sofrimentos que surgiriam na face da Terra a partir de sua morte. Na obra de Saramago a crucificação deixa de ser um momento sagrado e de pagamentos dos pecados para ser uma reflexão de toda a história do cristianismo que estaria por vir, assim como dos desígnios divinos e das motivações divinas. O ateísmo e Saramago sobressai no texto por meio da ironia com que a imagem do Deus cristão é desconstruída, assim como de seu Filho. RESULTADOS E ANÁLISE Quando o leitor se coloca diante da cena da crucificação de Jesus em OESJC, pode notar uma série de elementos bíblicos que ali se inserem, dos quatro evangelhos. Entre eles podem ser citados: o espaço, Gólgota; os três crucificados, o bom ladrão e o mal ladrão ao lado de Cristo; as Marias aos pés da cruz; a presença do anônimo que humedece a boca de Jesus com a solução de água e vinagre; etc. Desta maneira, o primeiro ponto para que identifique um intertexto é correspondido - conforme Jenny (apud. NITRINI, 1997) - o de que seja notória a presença de outro texto dentro da obra. Paradoxalmente, o segundo ponto que nos auxilia a identificar a presença do intertexto conforme a autora também é perceptível em OESJC: a modificação do texto estranho que é 10

inserido na obra. Concomitantemente aos elementos expostos acima, há aqueles que não correspondem às versões bíblicas da crucificação. A presença material de Deus no momento da crucificação é uma delas. Ele surge no céu e se comunica com o Jesus crucificado, seu filho. Essa comunicação remete a outro diálogo presente na obra que é de grande representatividade: Jesus, o Demônio e Deus estabelecem uma conversação dentro de uma pequena embarcação em pleno mar da Galileia. Nela, os planos de Deus são abertos ao seu filho, que fica chocado ao saber das tragédias que estão por vir em seu nome e devido a sua morte. É a partir disso que surge um segundo aspecto da cena elaborada por Saramago que a distância dos evangelhos sacros: Jesus pede aos Homens perdão pelos planos divinos e pelas consequências que eles trarão à humanidade. Isso se esclarece na fala do Jesus crucificado: [...]Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez. (SARAMAGO, 1991, p.405) Ainda quanto às modificações, o momento da morte na cruz ganha um novo tom psicológico. Jesus começa a morrer no meio de um sonho e nele surge um Deus sorrindo e admitindo suas limitações por não poder fazer todas as perguntas e, ao mesmo tempo, apontado a limitação de Jesus, por este não poder oferecer todas as respostas. Os textos bíblicos de Mateus, Marcos, Lucas e João não invadem o psicológico de Jesus e não demonstram conhecimento de seus pensamentos e anseios, quanto mais de seus sonhos. Por meio das alterações e semelhanças, emerge o terceiro elemento que constitui o intertexto na perspectiva de Jenny (apud. NITRINI, 1997): o sentido unificado. Mesmo que se observe a presença de um texto estranho dentro da obra, há a elaboração de um sentido único realizada pelo autor, no caso Saramago. O texto bíblico é perceptível dentro da cena da crucificação, mesmo assim não se mostra como um ponto que rompa a coesão e a coerência da narrativa que se constitui em OESJC. Tanto o que faz com que o leitor resgate as narrativas bíblicas tanto o que o faz perceber as diferenças, são empregados pelo autor para elaborar uma crucificação de Jesus que seja inovadora, mas que não caia na descaracterização completa. A ironia, a crítica e a dessacralização propostas pelo escritor português se realizam justamente devido às semelhanças e contrastes com as narrativas que foram socialmente sacralizadas. Caso não houvesse tal paradoxo na relação dos textos, ou o leitor não identificaria a que se remete a obra, assim não sendo incomodado, ou o mesmo leitor não encontraria motivação para ler uma narrativa em que nada se difere das originais. Como se vê, a construção do intertexto em OESJC é complexa, fruto de uma empreita artística capaz de conferir literariedade a uma narrativa consagrada e sacralizada na civilização ocidental. 11

CONSIDERAÇÕES FINAIS A cena da crucificação de Cristo na obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo é estruturada a partir de um intertexto. Isso considerando as reflexões elaboradas por Nitrini (1997) sobre influência e intertextualidade. De maneira engenhosa, Saramago consegue estabelece a ligação entre sua obra e os evangelhos tanto pela afirmação quanto pela negação das narrativas anteriores a sua. Muito provavelmente, o fenômeno seja recorrente em outros momentos do romance, entretanto tal análise exigiria um tempo maior de análise das histórias contadas por Mateus, Marcos, Lucas e João, como também pelo próprio Saramago. Ainda se pode afirmar que o intertexto foi instrumento para o autor português na expressão de uma contestação de elementos sagrados da fé cristã e da cultura ocidental. O desfecho da vida de Cristo ganha novos sentidos, que podem inclusive serem percebidos como irônicos em relação a ideia de divindade e salvação associada à imagem de Jesus. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Poética. In. José Américo Motta Pessanha. Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores. V.2) BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009. Bíblia Sagrada. Tradução de: João Ferreira de Almeida Disponível em: http://www.glorifica.org/wp-content/uploads/b+%c2%a1blia-sagrada-port-br.-pdf.pdf Acesso em: 10 ago 2013 BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1985. CALBUCCI, Eduardo. Saramago: um roteiro para os romances. Cotia: Ateliê Editorial, 1999. FUNDAÇÃO JOSÉ SARAMAGO. Biografia. http://josesaramago.blogs.sapo.pt/240431.html. Acesso em: 10 set 2013 NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. Disponível em: http://media.josesaramago.org/images/folheto_discursos_saramago.pdf,. Discursos de Estocolmo. José Saramago e Editorial Caminho, 1999. 12