Domingos Fernandes Mestre Alfaiate A MEDIDA CERTA Aos 10 anos começou a trabalhar com o pai numa pequena vila do Baixo Alentejo e aos 16 rumou ao Montijo para se fazer homem e aprender o ofício. Hoje com 63 anos, o mestre alfaiate põe todo o conhecimento e paixão em cada fato que faz. 0 resultado? Os clientes regressam sempre Texto de PATRÍCIA CINTRA Fotografias de HELENA GARCIA NUMA PEQUENA ALDEIA perto de Mértola o tempo livre de Domingos era passado na alfaiataria do pai. Em plenos anos 50, era ali que se confeccionava a roupa que toda a gente vestia. Havia os fatos para os casamentos, baptizados e até funerais, mas também a roupa do dia-a-dia, a samarra para o avô e para o menino, as calças de trabalho para os homens da terra e os vestidos de domingo das senhoras. «Aos 10 anos já fazia as minhas coisas, dando uma importante ajuda ao meu pai», lembra o alfaiate Domingos Fernandes. «Mas ali as coisas não tinham futuro, era um sítio pequeno e com a chegada das grandes confecções estava tudo destinado a acabar. Em cada fato há pormenores que não podem faltar, as inciais do cliente no interior e a marca da loja e do tecido
Foi então que o meu pai, como via que eu tinha jeito, me mandou para o Montijo para aprender o oficio com os mestres», acrescenta. Para Domingos, Montijo era a 'grande cidade', cheia de pessoas e de oportunidades. Foi lá que continuou o longo período de aprendizagem que um alfaiate tem que ter para chegar a Mestre. O esforço deu frutos mas, também para ele, a Guerra no Ultramar pôs em espera sonhos e desejos. Destacado para Angola, deixou tecidos, tesouras e fatos e teve que se cozer apenas com as linhas da vida, enfrentando «um inimigo que não o era, numa guerra em que ninguém acreditava». Mas mesmo lá, longe de casa, não deixou de dar o seu ponto sem nó. Sempre que havia tempo, fazia umas peças para camaradas e amigos. O regresso à pátria foi feito com grande alegria. Nomeado Mestre aos 36 anos, «algo que é quase inédito porque isto leva muito tempo a aprender», Domingos trabalhou no Pestana e Bruto, uma das maiores casas - entretanto desaparecida - de Lisboa. Foi lá que continuou a fazer fatos por medida, a aperfeiçoar a sua técnica e a estudar constantemente aritmética e geometria aplicada ao corpo humano, afinal «todas as pessoas são diferentes e quem manda fazer um fato por medida quer que lhe assente como uma luva», assinala. Até por que os preços na loja onde trabalha podem facilmente ultrapassar os 2 mil euros. Ao longo destes anos, já fez milhares de fatos e deixou a sua assinatura em todos eles: «a minha imagem de marca é o bolso de dentro com as iniciais do cliente bordadas e um triângulo a proteger o botão», resume. Mas até chegar a essa fase, o Mestre Fernandes tem muito trabalho pela frente. Primeiro reúne-se com o cliente para este escolher os tecidos (do fato e do forro) e os botões w depois são tiradas «minuciosamente as medidas» que vão integrar a respectiva ficha. Seguem-se os moldes, as«-
marcações a giz, o corte e só então começa o trabalho de costura. «Digamos que o Mestre é o líder de uma equipa, é quem tem as ideias e as concebe, depois tenho as minhas costureirinhas que me ajudam no trabalho de pôr a entretela nos casacos, enchumaçá-los, tratar dos bolsos... Mas eu sou sempre o responsável por tudo e sou muito rigoroso com elas e com tudo o que faço», desabafa. Tão rigoroso que das habituais três ou quatro provas, já as reduziu para uma ou duas: «eu sei que os clientes de hoje não têm tempo e não vale a pena maçá-los com muitas provas». E até há clientes que não fazem prova nenhuma: «tenho uns clientes angolanos que vieram cá, tiraram as medidas e mandaram fazer nove fatos. Depois ligaram a dizer que queriam mais 12 ou 18 e a única coisa que fazemos é mandar as amostras de tecidos para eles escolherem e depois no final enviamos-lhes a encomenda». Até hoje nenhum ficou desiludido com o resultado, garante. «De qualquer maneira o trabalho de alfaiataria só acaba quando o mestre e o cliente estão satisfeitos», resume Domingos. Depois de meio século dedicado à alfaiataria por medida, o Mestre está desde 2003 a trabalhar na loja Wesley, no Saldanha, onde atende pessoalmente os clientes e onde faz todos os fatos «à mão, sem máquinas nem colas», acrescenta. Á marca tem, aliásm uma grande ligação a esta arte já que o avô do administrador da Wesley, Valdemar Rafael, tinha uma alfaiataria em Alcains com 30 costureiras, «o que há 70 anos era já considerado uma grande empresa!», brinca o neto. Depois o pai e o tio de Valdemar deram continuação ao negócio de família e abriram nos anos 60 a Dielmar: «Apesar de ser uma fábrica de confecções, na altura era tudo feito por alfaiates e hoje a fábrica continua a ser a maior na confecção de fatos, embora seja muito difícil encontrar alfaiates actualmente». Todos os dias saem mil peças da Dielmar, que exporta 50% da sua produção para os EUA, Europa e América do Sul, enquanto os restantes 50% são vendidos em lojas próprias e de retalho, como a Wesley, que conta com quatro espaços em Lisboa e dois no Porto: «O problema é encontrar As medidas são minuciosamente tiradas, rigor que se mantém nos moldes e no corte das peças
O Mestre está presente em todas as fases da confecção do fato. Recebe os clientes, faz as provas e certifica-se que está tudo perfeito alfaiates! Até há dois meses só tínhamos dois para todas estas lojas. A verdade é que isto é uma profissão que está destinada a acabar se não se apostar na formação de novas pessoas». Valdemar e o mestre Fernandes concordam que a solução podia passar por criar uma academia de formação que capacitasse aprendizes para continuar esta arte. E de formação percebe Domingos Fernandes, que na década de 90 regressou a África só para dar um curso de alfaiataria aos ex-combatentes de guerra que tinham ficado incapacitados: «Foi comovente porque de repente tinha ali as pessoas que durante anos me disseram que eram meus inimigos e que nunca o foram. E além disso tentei dar formação aos meninos de rua para lhes arranjar um oficio e tirã-los da miséria, mas isso já não consegui...», lamenta. potricio.cintra@sol.pt