ENTREVISTA 1. Fabiano Mielniczuk 2

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Transcrição:

ENTREVISTA 1 Fabiano Mielniczuk 2 1 Entrevista sobre o papel da Rússia no novo cenário internacional. 2 Doutor em Relações Internacionais pelo IRI/PUC-Rio, é mestre em Relações Internacionais pelo mesmo Instituto e graduado em Ciências Sociais pela UFRGS. É Diretor da Audiplo: Educação e Relações Internacionais (www.audiplo.com), Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS (2015-2020) e professor da ESPM- Sul. Foi professor de Relações Internacionais dos programas de pósgraduação e graduação do IRI/PUC-Rio (2011-2013) e Coordenador de Pesquisas do BRICS Policy Center (2011-2013). Suas áreas de interesse são: Teoria de Relações Internacionais (abordagens pós-positivistas); Relações Internacionais da Rússia, do Espaço da Antiga URSS e da Europa; História das Relações Internacionais; Segurança Internacional; BRICS.

7 InterAção IA: Atualmente como está a situação da Ucrânia? IA: InterAção FM: Fabiano Mielniczuk FM: Após a derrubada de Yanukovich, a anexação da Criméia e a eclosão da guerra civil contra os movimentos separatistas do leste do país, a elite política Ucrânia passou a adotar um discurso nacionalista do partido da guerra, denunciando a Rússia como uma ameaça à sobrevivência do país. Assim, os russos do leste do país passaram a ser tratados como terroristas e a atual administração recorreu a todos os recursos necessários para angariar apoio ocidental contra a Rússia. O problema é que muitos desses políticos, inclusive o presidente Poroshenko, estavam habituados a participar confortavelmente do governo do presidente deposto e seus negócios privados eram beneficiados com a proximidade em relação à Rússia. Esse histórico compromete a legitimidade desses líderes em uma guerra, e fortalece grupos ultranacionalistas com feições fascistas que também ocupam o governo atual. É nesse contexto que as negociações em torno da crise ucraniana devem ser avaliadas. Representantes da Alemanha, da França, da Rússia e da Ucrânia criaram o "quarteto da normandia", e concluíram em 2015 os acordos de Minsk II, estabelecendo as etapas para a normalização da situação no leste ucraniano. O acordo previa armistício, a retirada de armamento pesado da zona de conflito e atendia à principal demanda de Moscou, a saber, a descentralização política da Ucrânia para dar mais autonomia aos russos do leste. Essa última etapa, porém, dependeria de uma reforma constitucional, compromisso assumido pelas autoridades do país. Todavia, o conflito entre setores nacionalistas e o governo Poroshenko inviabilizou a reforma constitucional e permitiu que a Rússia acusasse a Ucrânia de não cumprir sua parte nos acordos. O impasse

8 InterAção favoreceu a Rússia e arrastou a Ucrânia para o abismo econômico. Em 2015, o país enfrentou uma inflação mensal de 40% e seu PIB sofrerá uma retração de 12%. Em situação de falência, a dívida do país com o FMI foi perdoada. Para piorar, os gastos militares se mantiveram na casa dos 5% do PIB, de modo a sustentar o aumento de seus contingentes militares - em torno de 280 mil, quase o dobro do que existia antes da crise e um dos maiores da Europa. Só os Estados Unidos estimam que repassarão, em 2016, 300 milhões de dólares para as forças armadas ucranianas, alimentando ainda mais a crise com a Rússia. A situação atual é de intensificação dessa "Guerra Fria" entre os dois países, e não há uma perspectiva de melhora no curto prazo. IA: Vivemos uma "nova guerra fria"? FM: Desde o fim da Guerra Fria, as potências mundiais exerceram certo grau de transigência quando seus interesses conflitavam - seja por limitação em suas capacidades ou por vontade própria. Assim, os conflitos na antiga Iugoslávia, a invasão do Iraque, a Guerra Russo-Georgiana e os ataques à Líbia foram administrados de modo que não houvesse a possibilidade de que as crises regionais se tornassem um conflito maior. Infelizmente, as guerras civis na Ucrânia e na Síria mudaram essa realidade. As grandes potências passaram a ser inflexíveis. No caso da Síria, a situação é ainda mais grave, por aproximar forças militares que atuam com objetivos diferentes em um mesmo cenário de guerra. Foi na fronteira do país que um avião militar russo foi abatido por um ataque de um país membro da OTAN, a Turquia. Um fato dessa natureza não ocorria há mais de 50 anos. Na dimensão política, também percebemos a formação de alianças em contraposição ao Ocidente, como as que aproximam Rússia e China. Em um

9 InterAção certo sentido, os BRICS contribuem para essa nova configuração política, para desespero de alguns setores da diplomacia brasileira que temem uma maior saliência do país em um cenário internacional adverso. Aliás, acredito que muito do chamado "declínio do Brasil" em termos de política externa esteja relacionado com esse receio - acrescido, é claro, dos esforços da atual mandatária em apagar o legado dos Governos Lula/Celso Amorim na política externa brasileira. Apesar do Brasil, instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS evidenciam que o modelo de organização política, econômica e social erigido pelo Ocidente após a II Guerra está sendo contestado. Estamos caminhando, portanto, para um cenário de intransigência militar e de antagonismo ideológico que se retroalimentam. Porém, da mesma forma que um estimula o outro, a resolução de um pode levar ao arrefecimento de outro. Alterando um pouco a famosa frase de Alexander Wendt, podemos afirmar que a política internacional também é o que o Estados fazem dela. IA: Qual o papel da Rússia nesse cenário de intensa polarização e de polaridades indefinidas? FM: O ano de 2015 marcou a primeira intervenção militar da Federação Russa fora do espaço da antiga União Soviética no pós Guerra Fria. O combate ao Estado Islâmico na Síria permitiu à Rússia empregar diferentes peças de seu arsenal para proteger o governo de Assad, aliado da Rússia e do Irã. Os ataques demonstraram aos Estados Unidos e aos países da Europa que não se pode duvidar da capacidade militar russa, tão pouco de sua determinação em utilizála. Entre os russos, a atividade militar na Síria resgatou a auto-estima de grande potência e reforçou o papel de protetor exercido por Putin, uma vez que a

10 InterAção justificativa do governo para intervenção remete às atividades terroristas do Cáucaso russo nos anos 1990 à turbulência no Oriente Médio atual. Estima-se que existam em torno de 2500 russos combatendo a favor do Estado Islâmico na Síria. Essa atuação deixa claro que a Rússia exerce papel fundamental para a resolução de qualquer crise que se apresente como uma ameaça à paz e ordem internacionais. A comoção que tomou conta do mundo após os atentados de Paris serviu para impulsionar negociações entre o Ocidente e a Rússia, e a crise da Síria deve se encaminhar, em 2016, para um concerto entre as grandes potências a respeito da necessidade de união na luta contra o EI. Se, de fato, houver acordo entre Rússia e o Ocidente sobre a Síria, provavelmente haverá reflexos para a resolução da crise na Ucrânia. Se a crise da Ucrânia for resolvida, as sanções contra a Rússia serão levantadas e os russos terão cada vez mais importância para a manutenção da ordem internacional. IA: Como avalia a questão dos refugiados na Europa? Para entendermos a crise dos refugiados é importante acompanhar os últimos acontecimentos geopolíticos do Oriente Médio. A bagunçada transição de um regime sunita para um xiita no Iraque, feita de modo atabalhoado pelos Estados Unidos após a invasão do país em 2003 é o começo de tudo. Desconfortável com nova preponderância de governos xiitas na região (Irã e Iraque), a Arábia Saudita esforçou-se para a derrubada do regime de Assad na Síria, aliado de Teerã. Em função da aliança com os sauditas, os Estados Unidos e seus parceiros europeus não aceitaram negociar com Damasco, e embarcaram em uma guerra por procuração ao apoiar grupos armados "moderados", incluindo, entre eles, a Al-Nusra, a facção da Al Qaeda no país. O problema é

11 InterAção que, além de Teerã, o regime de Assad também é aliado da Rússia. Com o veto dos russos a qualquer autorização do Conselho de Segurança da ONU para uma intervenção no país, o conflito se arrastou por anos e resultou no vácuo de poder necessário para que o Estado Islâmico - que emergira no norte do Iraque como resultado do descontentamento dos sunitas com os desmandos do governo xiita - avançasse para o território sírio. A crise dos refugiados é uma consequência direta desse caos. Em 2015, mais de 1 milhão de refugiados chegaram à Europa. Desses, a maior parte são provenientes da Síria (50%), do Afeganistão (20%) e do Iraque (6%), países que sofrem com intervenções dos Estados Unidos e seus aliados há bastante tempo. O triste é que o fluxo de refugiados é fruto de uma estranha contradição: o Ocidente promove intervenções militares para levar democracia e direitos humanos a esses países, as intervenções fracassam, a barbárie se instaura (Estado Islâmico no Iraque e na Síria, ressurgimento dos Talibãs no Afeganistão) e as pessoas afetadas fogem para a Europa em busca de direitos humanos e democracia. Frente à falência do sistema de asilo da União Europeia, os solicitantes de refúgio são equiparados aos bárbaros dos quais tentam fugir e tratados como potenciais ameaças aos valores europeus por amplos setores das sociedade.