II Colóquio da Pós-Graduação em Letras UNESP Campus de Assis ISSN: 2178-3683 www.assis.unesp.br/coloquioletras coloquiletras@yahoo.com.br ENTRE O REAL E O SOBRENATURAL: O FANTÁSTICO DE GUY DE MAUPASSANT Mara Keylla Medeiros Conessa (Graduanda UNESP/Assis) Renan Fornaziero de Oliveira (Graduando UNESP/Assis FAPESP) RESUMO: O conto Le Horla, de Guy de Maupassant, publicado na França em 1886, apresenta uma misteriosa narrativa, capaz de tornar seus acontecimentos levemente ambíguos e inquietantes, devido à presença da loucura, do elemento sobrenatural, rompendo com a ordem do cotidiano e causando no leitor um sentimento de dúvida, de hesitação ante os fatos narrados. Por meio de um flashback, há a recuperação desses fenômenos estranhos que, embora tenham na loucura uma explicação plausível, esta não se faz de forma a assegurar ao leitor a certeza científica do fato, pois ocorre uma constante oscilação entre a pura aceitação psicológica e a de uma possível subversão da ordem estabelecida. Esse dilema - real versus sobrenatural - mantém-se em suspenso, sem uma solução. Tal sensação de dúvida é que faz o conto pertencer à literatura fantástica, gênero literário surgido na França no século XVIII e que se tornou objeto de variados estudos acerca de suas origens e desdobramentos na modernidade do século XX.. PALAVRAS-CHAVES: Literatura fantástica, loucura, sonho, sobrenatural, Guy de Maupassant. 1. O fantástico: breve definição. A literatura fantástica adquire, a partir de meados do século XX, maior reconhecimento por parte da crítica literária, sobretudo com os trabalhos de Tzvetan Todorov e Irene Bessière. Partindo das teorias elucidadas pelos autores, propomos uma leitura sob o olhar do fantástico do conto Le Horla (1886), do escritor francês Guy de Maupassant. Em sua obra Introdução à literatura fantástica (2008), Todorov começa por explicitar o que vem a ser o gênero fantástico: A expressão literatura fantástica refere-se a uma variedade de literatura ou, como se diz comumente, a um gênero literário. Examinar obras literárias a partir da perspectiva de um gênero é um empreendimento absolutamente peculiar. Nosso propósito é descobrir uma regra que funcione para muitos textos e nos permita aplicar a eles o nome de obras fantásticas, não pelo que cada um tem de específico. (TODOROV, 1975, p. 17-18) 148
Desse modo, Todorov discorre acerca da existência de um sistema de obras cuja temática poderia associá-las a um mesmo grupo, ou seja, a um gênero literário. Ademais, o autor define o fantástico como um momento de hesitação do leitor diante de um acontecimento estranho narrado, fazendo-o decidir se este fenômeno relacionase ou não com a realidade, tal como a conhecemos. É por meio desse embate entre o real e o sobrenatural que se instaura o fantástico, havendo no decorrer da narrativa, a constante manutenção da ambiguidade, condição esta indispensável ao gênero. Diferentemente de outros gêneros aos quais se aproxima, o estranho e o maravilho, o fantástico apresenta recursos textuais que reforçam a incerteza da narrativa, fazendo com que a história permaneça com final aberto, sem solução; assim, cabe ao leitor decidir entre uma e outra possibilidade. Entre as nuances do fantástico residem outros dois gêneros que, embora permeados pela hesitação, esta é dissolvida antes do desfecho; são eles o estranho e o maravilhoso. O estranho ocorre quando o leitor opta por uma solução racional diante dos acontecimentos aparentemente sobrenaturais. Já o maravilhoso caracteriza-se pelo fato de ser aceito, por parte do leitor, sem contestação. O maravilhoso, assim, se caracteriza por apresentar a própria natureza dos acontecimentos, como, por exemplo, nos contos de fadas, onde os fenômenos sobrenaturais animais e objetos falantes, seres voadores são aceitos como sendo irreais, sem qualquer tipo de surpresa ao leitor. Ainda para Todorov, o fantástico é produto de três fatores que, para ele, são indispensáveis a uma obra fantástica: o primeiro faz referência à ambiguidade que a narrativa deve causar no leitor, fazendo-o titubear entre uma explicação sobrenatural e outra racional; o segundo diz respeito ao modo como essa dúvida é representada no texto, o que geralmente se configura no papel de uma personagem; e o terceiro trata do papel assumido pelo leitor implícito ante ao texto, de modo que este recuse leituras que o levem para longe da atmosfera de dúvida e tensão provocada pelo texto. Uma das críticas mais severas feitas a Todorov refere-se à delimitação feita pelo autor ao gênero. Segundo Selma Calasans Rodrigues (1988), Todorov foi muito restritivo quanto a este ponto, uma vez que, mesmo havendo um número sem fim de obras em que a hesitação é encontrada, um número muito menor de obras são tidas como sendo fantásticas, já que a hesitação não se mantém até o fim, recaindo nos gêneros vizinhos já ditos acima. 149
Após Todorov, diversos críticos se inclinaram à pesquisa do gênero fantástico, dedicando-lhe variados estudos. Entre os pesquisadores, destaca-se Irène Bessière que, em 1974, publica Le recit fantástique: la poétique de l incertain, cuja obra se contrapõe em muitos aspectos às teorias de Todorov. Sua principal crítica diz respeito à condição exigida por Todorov para a existência do fantástico: a hesitação do leitor. Bessière demonstra ao longo de seu estudo que o fantástico reside no texto em questão, não dependendo da simples e pura hesitação de um leitor e nem no modo como este receberá o texto. Da mesma forma, contrapondo-se a Todorov, que vê o fantástico como um gênero literário, Bessière nega este postulado, vendo-o como uma característica inerente aos textos, como produto da imaginação. É nesse ponto que suscita a maior dúvida em relação ao fantástico: devemos estudá-lo a partir de qual perspectiva: como gênero literário, ou como um modo de se produzir um texto que suscite medo, dúvida? Bessière foi muito incisiva ao criticar Todorov, afirmando que o fantástico não resulta da hesitação entre a ordem do sobrenatural e do natural, mas da contradição e da recusa mútua e implícita entre eles. (BESSIÈRE, 1974. pág. 97). Mais do que uma contradição mútua e implícita, Bessière vê o fantástico muito além do que a simples hesitação do leitor, aumentando o seu campo de abrangência. Embora as duas visões apontadas pareçam contrárias, na medida em que uma nega a outra, há entre elas um ponto de convergência: a presença do natural e do sobrenatural, coabitando em um mesmo plano, o do discurso literário. Por meio do encontro desses dois pólos, da mescla entre fatores tão diversos, é que surge a ambiguidade, a incerteza, tão necessária para esse tipo de texto. Assim, à luz dessas duas correntes de pensamento e com base num dos contos mais célebres da literatura francesa, verificaremos quais são os mecanismos linguísticos e literários utilizados para se conceber um conto do gênero fantástico. Para tanto, pretende-se fazer uma leitura sob perspectiva fantástica do conto de Maupassant, ressaltando suas características e sua importância para a literatura fantástica, uma vez que esta se encontra profundamente ligada à literatura francesa, da qual Maupassant é um dos grandes mestres. 2. O fantástico e Maupassant Henry René Albert Guy de Maupassant foi um escritor que transitou por diversos gêneros literários, passando pela poesia, pelo romance, mas eternizando-se 150
com um dos contistas mais geniais de todos os tempos. De sua infância e juventude, sabe-se que foi um período aparentemente tranquilo, vivido em companhia da mãe, uma mulher abandonada pelo marido e vítima de violentas crises nervosas. Dizemos aqui aparentemente, pois boa parte de sua tendência a problemas nervosos acreditase ter sido herdado de sua mãe, Mme. Laura de Maupassant. Isso mais tarde seria confirmado por um de seus grandes amigos, Gustave Flaubert, que diz, em uma das muitas cartas trocadas pelos escritores, as voltas de 1880: Il (Maupassant) a probablement la miem nèvrose que sa mère. 1 Além das crises nervosas, Maupassant contrai sífilis em sua juventude, mal que o acompanhará até a morte. Cabe ainda salientar a tênue relação do autor com a loucura, manifestada a partir da experiência de uma internação psiquiátrica por volta de 1892. Tais dados acerca de sua vida são aqui resgatados a fim de tentar explicar sua abordagem temática referente às questões acerca da disfunção mental, ao devaneio, a presença do desconhecido, que no conto em questão, apresentam-se de maneira muito patente. Também ressaltamos aqui a existência de mais de uma versão da mesma narrativa, que levou nossa análise a basear-se na primeira versão, de 1886, constituindo-se como um depoimento do narrador que não crê mais em sua lucidez, não se vê atormentado, confuso, e que descreve suas inquietações a um público selecionado. Por meio de um flashback, descreve os acontecimentos que, até aquele momento, mantinham-se desprovidos de qualquer explicação plausível. Por isso, viuse obrigado a questionar sua própria sanidade. Essa inquietude surge quando, inesperadamente, ele, o narrador, constata que uma garrafa que estivera cheia durante a noite aparece vazia pela manhã. Nas noites seguintes, esse fato se repete, fazendo-o pensar na possibilidade de ser ele mesmo que, durante a noite, numa espécie de sonambulismo, se levantava e a bebia. Uma outra sensação de inquietude o perturba ainda mais quando, numa manhã de primavera, vê um galho de árvore partir-se da mesma maneira que uma pessoa faz ao colher uma rosa e a leva à altura da boca, permanecendo assim por vários instantes, a poucos metros do nosso narrador. A constatação sombria vem no momento em o suposto louco se põe sobre a poltrona a ler, espreitando de seu observador, que logo será sentido ao roçá-lo por cima de sua vista. É nesse momento que se instaura a dúvida, quando ao virar-se para o espelho, não vê projetada sua imagem; o espelho continuava vazio, sem refleti- 1 Ele provavelmente tem a mesma neurose que a mãe. 151
lo. O clímax da narrativa se encontra na seguinte passagem, onde ocorre o embate dos dois planos, real e sobrenatural: Diante de mim, minha cama, uma velha cama de carvalho, com colunas. À esquerda, a porta, que eu fechara com cuidado. Atrás de mim, um vasto armário, de espelho, que me servia todos os dias para barbear-me, para vestir-me, onde tinha o costume de olhar-me dos pés à cabeça toda vez que lhe passava diante. Então, eu fingia ler para enganá-lo, pois ele me espiava também, e de repente senti, estava certo de que ele lia por cima do meu ombro, que ele estava ali, roçando-me a orelha. Ergui-me e me voltei tão rápido que quase caí. Pois bem!... Enxergava-se como se fosse em pleno dia... e não me enxerguei no espelho! Ele estava vazio, limpo, cheio de luz. Minha imagem não estava lá dentro... E eu me postara á sua frente...(maupassant, 1985, p. 129) Associado a essa presença do sobrenatural, o médico, figura representativa da razão, também se questiona sobre a existência ou não dessa entidade fantasmagórica que acomete o paciente. Tal dúvida permanece até o fim, posto que nem a explicação científica, nem tampouco a da loucura prevalecem, somente a dúvida gerada entre elas: estaria realmente louco o narrador da história? Esse ambiente permeado de dúvida, de acontecimentos insólitos, onde a explicação racional não é capaz de solucionar as questões suscitadas pela personagem, deixando, assim, margem para a permanência da ambiguidade, reforça o rótulo de fantástico ao conto de Maupassant, na medida em que oferece ao leitor duas possíveis soluções: a da loucura e da existência de um ser sobrenatural, chamado pela personagem por Horla. Segundo José Paulo Paes: Em O Horla [...] a ciência médica é expressamente convocada pelo protagonista-narrador a fim de achar uma explicação que não a da insanidade para os até então inexplicáveis fenômenos de que foi testemunha e vítima e sobre os quais ele mesmo formula uma vaga teoria que roça os domínios da ficção científica, como seria de esperar de um escritor realista. (PAES, 1985, p. 14) Dessa maneira, Le Horla perpetuou-se com um dos mais importantes contos fantásticos da atualidade por lidar com questões arraigadas no imaginário humano, suscitando no leitor a dúvida, a incerteza que, ao final, continua em suspendo. Por isso, cabe ao leitor uma possível solução, resultando numa aproximação a outros gêneros, visto que o fantástico está construído nos pilares da loucura e da ordem estabelecida, vendo na desordem psíquica uma tentativa de subversão dessa mesma ordem, mas que também se funde com o universo ambíguo da narrativa. 152
Referências bibliográficas BESSIÉRE, Irene. Le récit fantastique: la poétique de l incertain. Paris: Larousse, 1974. MAUPASSANT, Guy de. O Horla. In: PAES, José Paulo (Org. e Trad.) Os buracos da máscara. São Paulo: Brasiliense, 1985. PAES, José Paulo (Org. e Trad.) Os buracos da máscara. São Paulo: Brasiliense, 1985. RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castelo. São Paulo: Perspectiva, 1975. 153