A ASCENSÃO DO ROMANCE

Documentos relacionados
Meu livro violeta Meu livro violeta 4A PROVA.indd 1 Meu livro violeta 4A PROVA.indd 1 28/05/18 08:31 28/05/18 08:31

Histórias de Shakespeare

j. p. cuenca O único final feliz para uma história de amor é um acidente

JOSÉ ROBERTO TORERO E MARCUS AURELIUS PIMENTA

coleção carlos drummond de andrade conselho editorial Antonio Carlos Secchin Davi Arrigucci Jr. Eucanaã Ferraz Samuel Titan Jr.

Charles M. Schulz. e sua turma CURIOSIDADES, FATOS ENGRAÇADOS, QUADRINHOS E MUITO MAIS! Baseado nas tirinhas. Adaptado por NATALIE SHAW

DE AMOR TENHO VIVIDO. IlustraçÕes De ana Prata

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Pela luz dos olhos teus

poesia de bolso hilda hilst júbilo, memória, noviciado da paixão

Ignácio de Loyola Brandão. O menino que vendia. Ilustrações de Mariana Newlands

OndJakI. a menina das cinco tranças. Ilustrações de Joana Lira

Tradução: Edith Asbech Revisão: Iana Ferreira Projeto Gráfico: Raul Gonzalez Sobre capa do original em alemão por: Raul Gonzalez

IBAN BARRENETXEA. Tradução EDUARDO BRANDÃO. conto. carpinteiro

ÚNICO E VERDADEIRO REI DO BOSQUE IBAN BARRENETXEA. tradução de EDUARDO BRANDÃO

de Cassiano Sydow Quilici, Kika Antunes, Luciana Viacava, Nina Blauth e Simone Grande

s, José Paulo Paes, Francisco Alvim, Eucanaã Ferraz, Carlos lvim, Eucanaã Ferraz, Carlos Drummond de Andrade,

MICHAEL BROAD. a merendeira. robô. Tradução de Antônio Xerxenesky

tradução Antônio Xerxenesky

Crescendo atrás da Cortina de Ferro PETER SÍS. Tradução de Érico Assis

PERNILLA STALFELT UM LIVRO SOBRE TOLERÂNCIA. Fernanda Sarmatz Åkesson. Tradução de

Jostein Gaarder. Juca e os. Ilustrações: Jean-Claude R. Alphen. Tradução: Luiz Antônio de Araújo

Shakespeare. o gênio original

Nancy Maria de Souza

COLEÇÃO FORA DE CENA apresenta. de Angelo Brandini. Adaptação de. rei lear, de william shakespeare. Organização. gabriela romeu.

poesia de bolso angélica freitas um útero é do tamanho de um punho

HORÁRIO CURSO DE LETRAS 1 ANO - 1º SEMESTRE - PERÍODO DIURNO E NOTURNO

Entre raios e caranguejos

cores por Jose Garibaldi

PROPOSTA CURSO DE LETRAS HORÁRIO 2017

Carlos Drummond de Andrade Uma forma de saudade

Colette Swinnen. Ilustrações de Loïc Méhée. Tradução Hildegard Feist

A aprendizagem da Leitura e da Escrita

HORÁRIO DO CURSO DE LETRAS PERÍODOS DIURNO E NOTURNO ANO LETIVO DE º ANO/1º SEMESTRE

NA VERTIGEM DO DIA PREFÁCIO ALCIDES VILLAÇA

Artigo 2 - O Curso de Letras habilitará o aluno em Português e uma Língua Estrangeira e suas respectivas literaturas.

gonçalo m. tavares A máquina de Joseph Walser

Antoine de Saint-Exupéry

2 3 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Os Filósofos no Divã. Quando Freud encontra Platão, Kant e Sartre

tony bellotto No buraco

STJ JOSÉ REINALDO DE LIMA LOPES. o DIREITO NA HISTÓRIA LIÇÕES INTRODUTÓRIAS 5ªEDIÇÃO

HORÁRIO 2019 (B) CURSO DE LETRAS

LETRAS HORÁRIO ANO / 1º SEMESTRE - PERÍODO DIURNO E NOTURNO ANO HORÁRIO SEGUNDA-FEIRA TERÇA-FEIRA QUARTA-FEIRA QUINTA-FEIRA SEXTA-FEIRA

Nina. Copyright 2009 Oficina de Textos

biblioteca borges coordenação editorial davi arrigucci jr. heloisa jahn jorge schwartz maria emília bender

sacha sperling Ilusões pesadas Romance Tradução Reinaldo Moraes

Coleção Lógica. Introdução à lógica, Harry J. Gensler

ROMANTISMO SÉC. XIX PROF. FERNANDO PUCHARELLI

O livro que não queria saber de

Marcus Aurelius IMENTA. José Roberto TORERO. Ilustrações LAURENT CARDON

DENTRO DA NOITE VELOZ

o Q ue e Que Jeanne Willis e Tony Ross Ana Maria Machado

Richard J. D. Tilley. tradução Fábio R. D. de Andrade. cristais e estruturas cristalinas

Ilustrações de s a l mo da n s a. Apresentação e adaptação de k at i a c a n ton

Índia. Pelas cores da. Laurence Quentin - Catherine Reisser. Os intocáveis Os jainistas Os marajás. Edição de Fani Marceau

A Pedagogia Waldorf Caminho para um ensino mais humano

NASCIMENTO DA LEI MODERNA

Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

rosto :24 Page i PEQUENAS HISTÓRIAS DA CRIAÇÃO A alminha e o perdão

Copyright 2006 Oficina de Textos 1ª reimpressão ª reimpressão ª reimpressão ª edição 2013

Muito. Barulho. por nada. Histórias de Shakespeare. Recontada por ANDREW MATTHEWS Ilustrada por TONY ROSS. Tradução de ÉRICO ASSIS

POEMAS E ATIVIDADES FABRIQUETA ABECEDÁRIO KATIA CANTON

o menino grapiúna Posfácio de Moacyr Scliar

Editora Seguinte editoraseguinte editoraseguinteoficial

François Jost 1. Do que as séries americanas são sintoma?

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

de Cláudia Maria de Vasconcellos

Catálogo. Série de Livros de Sumários da Licenciatura de Filologia Germânica

Tradução marcelo barbão

TRADUÇÃO DE GALIANA LINDOSO O TERCEIRO ROMANCE ÉPICO DE DAV PILKEY. cap cueca vol3_miolo_4p 1C.indd 1

CONSTANCE ZAHN. O guia essencial de casamento

TEORIA DA CONTABILIDADE

ANAIS ELETRÔNICOS DO X COLÓQUIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: DIÁLOGOS E PERSPECTIVAS SILVA, JACICARLA S.; BRANDINI, LAURA T. (ORGS.)

O fruto do. Espírito

Reinaldo Domingos José Santos O MENINO DO DINHEIRO CORDEL EM. Ilustrações de Luyse costa

Contos e lendas dos. Ilustrações de Nicolas Thers Tradução de André Viana

Preparação de texto: Luciana Soares da Silva Revisão: Jonas Bach Diagramação: Raul Gonzalez Capa: Raul Gonzalez

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE SENTIMENTO DO MUNDO

O selo Seguinte pertence à Editora Schwarcz S.A.

CORRELAÇÃO CLÍNICA E TÉCNICAS DE UROANÁLISE Teoria e Prática

Edgar Allan Poe A CARTA ROUBADA. Ilustrações Roger Olmos. Adaptação Rosa Moya. Tradução de Luciano Vieira Machado e Elisa Zanetti

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Como cuidar do seu papagaio

o sacramento do matrimônio e as causas de nulidade

STJ Janssen Murayama. o conceito de insumo. no PIS/COFINS. Editora Lumen Juris Rio de Janeiro

TURMA DA MÔNICA em O futuro do HORÁCIO

pa u l o h e n r i q u e s b r i t t o Formas do nada

Não é responsabilidade da editora nem do autor a ocorrência de eventuais perdas ou danos a pessoas ou bens que tenham origem no uso desta publicação.

Alya Ferreira Leal. Introdução ao Mundo Literário. Escola Básica Municipal Prefeito Henrique Schwarz. Cabelo Preto & Bigode Branco.

Curso Prático de Direito Penal para o Exame da OAB 2ª Fase

O livro é a porta que se abre para a realização do homem. Jair Lot Vieira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Matriz Curricular Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários

IMIGRANTES E MASCATES

RICHARD DAWKINS. A magia da realidade. Como sabemos o que é verdade ILUSTRAÇÕES. DAVE McKEAN TRADUÇÃO. laura teixeira motta

Daniela Macambira Katy Silva Fortaleza 2016

O sentido da existência humana

Márcia Valéria Nogueira da Rocha. CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Carlos Drummond de Andrade. Historia. de Dois Amores. ilustrações de. Ziraldo

Transcrição:

IAN WATT A ASCENSÃO DO ROMANCE Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding Tradução Hildegard Feist

Copyright 1957 by Ian Watt Proibida a venda em Portugal Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Título original The rise of the novel: Studies in Defoe, Richardson and Fielding Indicação editorial Roberto Schwarz Capa Jeff Fisher Preparação Nair Almeida Salles Revisão Renato Potenza Rodrigues Juliane Kaori Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Watt, Ian A ascensão do romance : estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding / Ian Watt ; tradução Hildegard Feist. São Paulo : Companhia das Letras, 2010. Título original: The rise of the novel: Studies in Defoe, Richardson and Fielding. isbn 978-85-359-1750-5 1. Defoe, Daniel, 1661?-1731 Crítica e interpretação 2. Ficção inglesa Século 18 História e crítica 3. Fielding, Henry, 1707-1754 Obras de ficção 4. Richardson, Samuel, 1689-1761 Crítica e interpretação i. Título. 10-09377 cdd-823.09 Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção : Século 18 : Literatura inglesa : História e crítica 823.09 2010 Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz ltda. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 São Paulo sp Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br

sumário Prefácio 7 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. O realismo e a forma romance 9 O público leitor e o surgimento do romance 37 Robinson Crusoé, o individualismo e o romance 63 Defoe romancista: Moll Flanders 100 O amor e o romance: Pamela 145 A experiência privada e o romance 184 Richardson romancista: Clarissa 220 Fielding e a teoria épica do romance 254 Fielding romancista: Tom Jones 277 O realismo e a tradição posterior: um comentário 310 Notas 323 Sobre o autor 347

1. O REALISMO E A FORMA ROMANCE Ainda não há respostas inteiramente satisfatórias para muitas das perguntas genéricas que qualquer pessoa interessada nos romancistas de inícios do século XVIII poderia formular. O romance é uma forma literária nova? Supondo que sim, como em geral se supõe, e que se iniciou com Defoe, Richardson e Fielding, em que o romance difere da prosa de ficção do passado, da Grécia, por exemplo, ou da Idade Média, ou da França do século XVII? E há algum motivo para essas diferenças terem aparecido em determinada época e em determinado local? Nunca é fácil abordar questões tão amplas, muito menos respondê-las, e neste caso elas são particularmente difíceis, pois a rigor Defoe, Richardson e Fielding não constituem uma escola literária. Na verdade suas obras apresentam tão poucos indícios de influência recíproca e são de natureza tão diversa que à primeira vista parecia que nossa curiosidade sobre o surgimento do romance dificilmente encontraria alguma satisfação além daquela oferecida pelos termos gênio e acidente, a dupla face desse Jano do beco sem saída da história literária. Certamente não podemos descartá-los; por outro lado não nos são de grande valia. Assim, o presente estudo toma outra direção: considerando que o surgimento dos três primeiros romancistas ingleses na mesma geração provavelmente não foi mero acidente e que seu gênio só poderia ter criado a nova forma se as condições da época fossem favoráveis, este trabalho procura identificar tais condições do ponto de vista literário e social e descobrir como beneficiaram Defoe, Richardson e Fielding. Para tal exame precisamos inicialmente de uma boa definição das características do romance uma definição bastante estrita para excluir tipos de narrativa anteriores e contudo bas- 9

tante ampla para abranger tudo que em geral se classifica como romance. Quanto a isso os romancistas não nos ajudam muito. É verdade que Richardson e Fielding se consideravam criadores de uma nova forma literária e viam em sua obra uma ruptura com a ficção antiga; porém nem eles nem seus contemporâneos nos forneceram o tipo de caracterização do novo gênero do qual precisamos; na verdade sequer assinalaram a diversidade de sua ficção mudando-lhe o nome o termo romance só se consagrou no final do século XVIII. Graças a sua perspectiva mais ampla os historiadores do romance conseguiram contribuir muito mais para determinar as peculiaridades da nova forma. Em resumo consideraram o realismo a diferença essencial entre a obra dos romancistas do início do século XVIII e a ficção anterior. Diante desse quadro escritores distintos que têm em comum o realismo o estudioso sente a necessidade de maiores explicações sobre o próprio termo, quando menos porque usá-lo aleatoriamente como uma característica essencial do romance poderia sugerir que todos os escritores e as formas literárias anteriores perseguiam o irreal. As principais associações críticas do termo realismo são com a escola dos realistas franceses. Como definição estética a palavra réalisme foi usada pela primeira vez em 1835 para denotar a vérité humaine de Rembrandt em oposição à idéalité poétique da pintura neoclássica; mais tarde consagrou-o como termo especificamente literário a fundação, em 1856, do Réalisme, jornal editado por Duranty. 1 Infelizmente a utilidade do termo em grande parte se perdeu nas azedas controvérsias sobre os temas vulgares e as tendências imorais de Flaubert e seus sucessores. Em consequência a palavra realismo passou a ser usada basicamente como antônimo de idealismo e nesse sentido que na verdade reflete a posição dos inimigos dos realistas franceses permeou boa parte dos estudos críticos e históricos do romance. Comumente se considera a pré-história do gênero apenas uma questão de traçar a continuidade entre toda a ficção anterior que 10

retratava a vida vulgar: a história da matrona de Éfeso é realista porque mostra que o apetite sexual supera a tristeza de esposa; e o fabliau ou a picaresca são realistas porque, ao apresentar o comportamento humano, privilegiam motivos eco nômicos ou carnais. De acordo com a mesma premissa, considera-se que o auge dessa tradição está nos romancistas ingleses do século XVIII e nos franceses Furetière, Scarron e Lesage: o realismo dos romances de Defoe, Richardson e Fielding é intimamente associado ao fato de Moll Flanders ser ladra, Pamela ser hipócrita e Tom Jones ser fornicador. Entretanto esse emprego do termo realismo tem o grave defeito de esconder o que é provavelmente a característica mais original do gênero romance. Se este fosse realista só por ver a vida pelo lado mais feio não passaria de uma espécie de romantismo às avessas; na verdade, porém, certamente procura retratar todo tipo de experiência humana e não só as que se prestam a determinada perspectiva literária: seu realismo não está na espécie de vida apresentada, e sim na maneira como a apresenta. Evidentemente tal posição se assemelha muito à dos realistas franceses, os quais diziam que, se seus romances tendiam a diferenciar-se dos quadros lisonjeiros da humanidade mostrados por muitos códigos éticos, sociais e literários estabelecidos, era apenas porque constituíam o produto de uma análise da vida mais desapaixonada e científica do que se tentara antes. Não há evidência de que esse ideal de objetividade científica seja desejável e com certeza não se pode concretizá-lo: no entanto é muito significativo que, no primeiro esforço sistemático para definir os objetivos e métodos do novo gênero, os realistas franceses tivessem atentado para uma questão que o romance coloca de modo mais agudo que qualquer outra forma literária o problema da correspondência entre a obra literária e a realidade que ela imita. Trata-se de um problema essencialmente epistemológico e, assim, parece provável que a natureza do realismo do romance no século XVIII ou mais tarde pode se elucidar melhor com a ajuda de profissionais voltados para a análise dos conceitos, ou seja, os filósofos. 11