760 UM CRUZEIRO NA FALA DE SALVADOR: A RETOMADA ANAFÓRICA DO OBJETO DIRETO DE TERCEIRA PESSOA Cláudia Norete Novais Luz UNEB 0 Introdução Nos últimos tempos, os resultados de diversos trabalhos centrados na teoria variacionista tais como o de Duarte (1986), Malvar (1992) vêm assinalando que a distância entre a norma padrão prescrita pela Gramática Tradicional e o português falado no Brasil tem se tornado cada vez mais significativa. Um exemplo que esclarece essa discrepância entre o que se dita, se prescreve, se normatiza e o que efetivamente acontece no português falado do Brasil é o processo de mudança que vem sofrendo o clítico acusativo de terceira pessoa em terras de aquém mar. A tradição gramatical sustenta que em uma pergunta como Você vai devolver a caneta? há uma única forma linguística de expressão da resposta Eu vou devolvê-la. Porém o que tem sido observado é que os falantes do português do Brasil estão se valendo de estratégias alternativas de uso para o emprego do objeto direto de terceira pessoa como: o apagamento do objeto, sua substituição pelo pronome lexical e a repetição do sintagma nominal anafórico ao invés de empregar a construção orientada pelos compêndios gramaticais. Para o desenvolvimento do presente estudo, o corpus utilizado abarcou dados reais de fala de sessenta e seis informantes soteropolitanos extraídos do banco de dados do PEPP Programa de Estudos sobre Português Falado em Salvador e do NURC Projeto Norma Urbana Culta. Após levantamento exaustivo de todas as ocorrências, realizou-se a codificação de todas as sentenças levantadas de acordo com a variável independente linguística (fator semântico) e a variável independente social (gênero/sexo do informante). Os dados foram analisados, para saber qual seria o uso das variantes em estudo em cada grupo, para tanto, utilizou-se o programa de regras variáveis, o Varbrul. O artigo ora detalhado fará um cruzeiro na fala de Salvador e para tanto está constituído de 5 seções, sendo que a primeira seção apresenta um breve comentário acerca da Sociolinguística Variacionista. Na seção, Eu consolo ele, ele me consola: estudos linguísticos, faz-se uma revisão bibliográfica dos estudos linguísticos que buscam explicar as mudanças ocorridas nas estratégias de retomada do objeto direto anafórico. Na terceira seção apresenta-se a variável independente extralinguística e linguística, devidamente exemplificadas. Nas seções Rastreamento das variáveis analisadas e Rodada binária revelam-se as respectivas hipóteses e os resultados da análise estatística dos fatores levantados pelo pacote de programas VARBRUL. As variáveis estão dispostas em tabelas e gráficos para melhor visualização e entendimento do fenômeno linguístico estudado. Na sequência as considerações finais e as referências. 1 A âncora: Sociolinguística Variacionista William Labov publica seu célebre trabalho referente à comunidade da ilha de Martha s Vineyard, no litoral de Massachusetts, em 1963, em que assinala o papel categórico dos fatores sociais na explicação da variação linguística. O referido autor, nesse texto associa fatores como idade, sexo, ocupação, origem étnica e atitude ao comportamento linguístico dos falantes da ilha. Ao concluir sua pesquisa sobre a estratificação social do inglês em New York, em 1964, Labov estabelece um modelo de descrição e interpretação do fenômeno linguístico no contexto social de comunidades urbanas, denominado Sociolinguística Variacionista ou Teoria da Variação, de relevante importância para a Linguística contemporânea. O modelo variacionista toma para si, como pontua Tarallo (2002, p.06), o caos linguístico como objeto de estudo, ou seja, o caos aparente, visto que é completamente sistematizável. O modelo de análise proposto por Labov apresenta a língua como um instrumento utilizado pelo homem para comunicar suas necessidades em um determinado contexto social. Dessa forma, percebe-se que
761 os estudos do idealizador da sociolinguística variacionista vão além dos tópicos linguísticos considerados pela linguística geral: fonologia, morfologia, sintaxe e semântica. Pode-se asseverar que o grande progresso apresentado pela Sociolinguística Laboviana, além de associar língua e sociedade como princípio básico para seus estudos, é considerar as variações e as mudanças, analisando, sistematizando as variantes linguísticas usadas por uma mesma comunidade de fala, de acordo com a visão de Weinreich, Labov e Herzog ([1968] 2006). O exame da variação é o centro da atenção dos sociolinguistas, justamente por perceberem que a variação consiste numa espécie de caos organizado, cujos princípios necessitam ser conferidos. Com o despontar da Sociolinguística, a variação passou a ser o objeto de estudo, representando, assim, uma inovação na teoria da linguagem, visto que todas as unidades linguísticas, até então, eram vistas como unidades de natureza invariante e discreta. A unidade de análise estudada pela Sociolinguística tem natureza variável, contínua e quantitativa (LABOV, [1964] 1974). Tem natureza variável já que existem dois ou mais diferentes modos de expressão, mediante a diversidade dos momentos de uso; tem natureza contínua já que certas alternativas assumem valores sociais negativos, distanciando-se da forma padrão; tem natureza quantitativa porque a importância metodológica das variantes que constituem uma variável é definida pela frequência percentual de cada uma em relação aos diversos fatores que as condicionam. Para os sociolinguistas, nas comunidades de fala, normalmente, existirão formas linguísticas em variação, isto é, formas que estão em coocorrência 1 e em concorrência 2. O que a Sociolinguística faz é estabelecer correlação entre as variações existentes na língua falada e as diferenças de natureza social, compreendendo cada domínio, o linguístico e o social, como fenômenos estruturados e regulares. Pode-se afirmar, com respaldo nos postulados da Sociolinguística, que a variação não é o resultado aleatório de um uso arbitrário e inconsequente dos falantes, porém um uso sistemático e regular de uma propriedade inerente aos sistemas linguísticos, que é a possibilidade de variação. Um estudo sociolinguístico visa à descrição estatisticamente fundamentada de um fenômeno variável, tendo como objetivo apreender, analisar e sistematizar variantes linguísticas usadas por uma mesma comunidade de fala. Para tanto, calcula-se qual a influência que tem cada grupo de fator, interno ou externo ao sistema linguístico, na realização de uma ou de outra variante. Chagas (2003, p. 153) aponta que Os fatores linguísticos [internos] se relacionam à forma como a língua está organizada, como funciona o seu sistema, quais são seus elementos, suas regras, etc. Os fatores extralinguísticos [externos] relacionam-se à forma como a língua está inserida na sociedade. Ao formalizar esse cenário, a análise sociolinguística pode estabelecer a relação entre o processo de variação que se observa na língua em um determinado momento (isto é, sincronicamente) com os processos de mudança que estão acontecendo na estrutura da língua ao longo do tempo (isto é, diacronicamente). 2 Eu consolo ele, ele me consola: estudos linguísticos As possibilidades de uso para o objeto direto anafórico de terceira pessoa têm sido amplamente investigadas no português brasileiro, segundo Bagno (2004, p. 101). A retomada por meio de um pronome é apenas um dos recursos que o português do Brasil pode empregar na hora de retomar um objeto direto de 3ª pessoa, a saber 3 : ( 1 ) Você viu o Pedro hoje? 1 Quando duas formas são usadas ao mesmo tempo. 2 Quando duas formas concorrem ao mesmo tempo com a mesma função, podendo ocorrer a implementação de uma forma e, conseqüentemente, o desaparecimento da outra. 3 Os exemplos citados são de Bagno (2004, p 101).
762 (1a) Hoje não, eu o vi ontem. (1b) Hoje não, eu vi ele ontem. (1c) Hoje não, eu vi Ø ontem. (1d) Hoje não vi Pedro, eu vi Pedro ontem. Para Bagno (2000, p.199), no que diz respeito aos três primeiros enunciados acima, pode-se concluir que a estratégia empregada em (1a) é a orientada pela norma padrão chamada de uso de clítico. Em (1b) usa-se o pronome lexical, enquanto em (1c) ocorre o objeto nulo. Já o enunciado (1d) não é estudado por Bagno, porém outros estudiosos o denominam de sintagma nominal repetido, como Duarte (1989). Para esta autora, o uso de SN repetidos não se constitui exatamente como uma variante linguística, mas, sim, pode ser visto como um processo de esquiva diante da avaliação social da variação. Bagno (2004, p. 102) afirma que a opção-padrão com pronomes oblíquos foi fixada pela norma clássica da língua. O referido autor acrescenta que, apesar de todo este histórico a favor do uso pronominal, os clíticos estão cada vez mais restritos a determinados gêneros de texto escrito ou à manifestação de língua falada extremamente monitorada. Ou seja, se existe alguma coisa que se pode afirmar a respeito do português do Brasil é que nessa língua os pronomes acusativos estão quase sepultados, restando apenas poucos sobreviventes normativos, que conhecem esses pronomes e sofrem pressão da norma-padrão conservadora. Duarte (1989) postula que, na realização do objeto direto correferente com um SN mencionado no discurso, o português falado no Brasil tem tendência a utilizar, cada vez mais, os pronomes lexicais, ou seja, as formas retas (ele, ela, eles, elas); os SN anafóricos, isto é, as formas plenas do SN correferente com outro SN mencionado anteriormente; ou a categoria vazia, ou seja, o apagamento do objeto direto anafórico em detrimento do clítico acusativo de terceira pessoa recomendado pela tradição gramatical. Duarte identifica em sua pesquisa um processo de mudança linguística em curso com relação à realização do objeto direto anafórico, com a substituição do clítico acusativo de 3ª pessoa (o/a/os/as) pela categoria vazia [cv] e, em menor escala, pelo pronome lexical na forma nominativa (ele[s],ela[s]) e pelo SN anafórico. De um total de 1.974 ocorrências, o clítico só representa 4,9% dos dados paulistanos. Um dos fatores linguísticos examinado por Duarte (1989) é de natureza semântica, o traço [+ animado] ou [- animado] do antecedente. Os referidos traços mostraram-se de suma importância na escolha de uma das estratégias alternativas do objeto direto anafórico, conforme ilustrado na tabela 01: Traço Clítico Pronome lexical SN [SNe] [+ animado] 76/97 78,4% 281/304 92,4 99/338 29,3 293/1235 23,7 [- animado] 21/97 21,6% 23/304 7,6 239/338 70,7 942/1235 76,3 Tabela 01: Distribuição das variantes usadas segundo traço semântico do objeto A tabela indica de forma muito clara que as opções de retorno anafórico do objeto direto de terceira pessoa são extremamente condicionadas pela animacidade do referente. Observa-se através da tabela que o uso do clítico e do pronome lexical é fortemente favorecido pelo traço [+ animado] do objeto, enquanto a categoria vazia e os SN anafóricos são condicionados pelo traço [- animado], ou seja, o clítico e o pronome lexical se opõem à categoria vazia e aos SN anafóricos, com relação ao traço animacidade do antecedente. 3 Sinalizando a variável independente extralinguística e linguística
763 Os estudos variacionistas fundamentam-se, principalmente, no fato de ser a língua um fenômeno social. Desta forma, todos os fatores sociais distintivos interferem na linguagem. Alguns estudos apontam que as mulheres tendem a ser mais conservadoras. Uma vez que, na maioria das sociedades, vêm exercendo papéis inferiores aos dos homens, são sensíveis às formas de prestígio, sendo mais afetadas pelos padrões que regulam o comportamento social. Pode-se ainda acrescentar o fato de as mulheres não terem o papel de mantenedoras do lar, cabendo tal função ao homem, o que coloca as mulheres em situações comunicativas mais restritas, das quais variantes inovadoras parecem não fazer parte. No entanto não se deve definir um padrão linguístico no que se refere ao gênero dos informantes, visto que não há padrão definido nem para os homens, nem para as mulheres. O que determina o comportamento linguístico dos falantes, na verdade, é o papel que exercem na sociedade onde estão inseridos. O traço semântico [+ animado] 4 e o [- animado] 5 são fatores observados na realização estratégica do objeto direto anafórico de terceira pessoa. Na visão de Duarte (1989), o uso do clítico e do pronome lexical é fortemente favorecido pelo traço [+ animado] do objeto, conforme exemplos 01 e 02, enquanto a categoria vazia e os SNs anafóricos são condicionados pelo traço [-animado], ver exemplos 03 e 04: Traço semântico [+ animado] (01) Ela tocava violão. Meu pai diz que meu avô... queria expulsar ELA de casa. (NURC; Inq. 003/R; ls. 252, 253; H3s). (02)...o filho quer ir para uma festa, deixe ir... Deveria ser assim, não deixá-los soltos. (PEPP; Inq. 07; ls. 147, 148; M2m). Traço semântico [- animado] (03)...esse cara já apareceu na tevê... aí comprei o livro dele e achei Ø formidável... (NURC; Inq. 014/R ls. 417, 418; H3s). (04) Mil novecentos tinha aqueles bondes, a gente pegava O BONDE e ia. (PEPP; Inq. 11; ls. 632, 633; H3m). 4 Rastreamento das variáveis analisadas A hipótese que sustenta esta investigação dos usos das estratégias de retorno anafórico do objeto direto de 3ª pessoa por homens e mulheres é a de que os homens são menos conservadores e as mulheres mais conservadoras em se tratando de fatos linguísticos. Portanto, a ideia inicial é que as mulheres devem usar mais o clítico acusativo do que o pronome lexical que é desprestigiado socialmente. No entanto, percebe-se, através da leitura da tabela 02 e do gráfico 01, que os homens estão, nos dados observados, mais atentos ao emprego do clítico que as mulheres, pois, o utilizam 11 vezes e as mulheres 10 vezes. No tocante ao clítico acusativo de terceira pessoa, os resultados do grupo gênero não estão em conformidade com o que aqui foi postulado nem com o que tem sido apontado em alguns trabalhos de sociolinguística, que mostram que as mulheres, nas sociedades ocidentais complexas, tendem a estar mais receptivas às formas de prestígio do que os homens. Por outro lado, no que diz respeito ao uso do pronome lexical, variante desprestigiada socialmente, constata-se que as mulheres o empregam menos que os homens, visto que as soteropolitanas utilizam essa variante em 15% das ocorrências e os homens em 18% dos dados. Gênero/ sexo Total de casos Objeto nulo Pronome lexical SN anafórico Clítico 4 Referente a seres animados, homens e outros animais. 5 Referente a seres inanimados, ou seja, não se refere aos seres humanos nem a outros animais.
764 Masculino 968/2002 48% 546/968 56% 173/968 18% 238/968 25% 11/968 1% Feminino 1034/2002 52% 672/1034 65% Total 2002 1218 61% 157/1034 15% 330 16% 195/1034 19% 433 22% 10/1034 1% 21 1% Tabela 02: Gênero/sexo do informante na realização estratégica do objeto direto anafórico na fala dos soteropolitanos Gráfico 02: Gênero/sexo do informante na realização estratégica do objeto direto anafórico na fala dos soteropolitanos 100% 80% 60% 40% 20% MASCULINO FEMININO 0% OBN PL SN.a CL Verificando-se a leitura dos resultados sobre gênero/sexo, nota-se que tanto os homens quanto as mulheres utilizam bem mais o objeto nulo e o sintagma nominal anafórico que somam 81% de empregos no gênero masculino e 84.0% no gênero feminino. Segundo os dados levantados, os dois gêneros estão correlacionados com as variantes inovadoras: a desprestigiada socialmente, o pronome lexical e de forma bem mais considerável as não marcadas socialmente: o objeto nulo e o sintagma nominal anafórico. Porém, analisando de forma mais geral, a tabela 02 e o gráfico 01, observa-se que as mulheres, apesar de terem empregado o clítico, ou seja, a forma conservadora, mas não necessariamente a mais prestigiada na LF, um pouco menos que os homens, fazem mais uso da estratégia inovadora, o objeto nulo (65%), que os homens (56%), que além de não ser marcada socialmente, não é prescrita nos padrões gramaticais. Sendo assim, deve-se enfatizar que as mulheres podem ser inovadoras, quando a mudança é no sentido de uma forma prestigiada, uma vez que a mulher, infelizmente, ainda possui menor número de oportunidades sociais e está sujeita a menores exigências de convivência em grupo. Diferentemente, o homem possui oportunidades sociais mais intensas, levando-o a um maior contato com seus iguais, contato esse que cria compromissos de partilhar ideias e atitudes com o grupo. Este compromisso pode abranger também o uso de uma linguagem comum que, ainda que desprestigiada, é assinaladora da identidade do grupo e considerada favorável por este grupo. Ou seja, os homens estariam sujeitos à influência do que Labov (1972) denominou prestígio encoberto (covert prestige) das formas linguísticas; o falante necessita usá-las, pois elas firmam a sua identidade com o grupo. Todavia, qualquer justificativa sobre as diferenças linguísticas entre homens e mulheres deve ser relativizada em função do grupo social analisado. O traço semântico [+ animado] e o [- animado] são fatores observados na realização estratégica do objeto direto anafórico de terceira pessoa. Esse condicionamento semântico foi escolhido mediante a hipótese de que, quando o traço semântico é [+ animado] licencia a ocorrência do pronome lexical e do clítico acusativo, porém quando o traço semântico é [- animado] licencia a
765 ocorrência do objeto nulo e do SN anafórico, portanto, aqui analisa-se se os falantes de Salvador fazem uso deste condicionamento semântico tão quanto os falantes do corpus paulista analisado por Duarte (1986), e, por conseguinte, o trabalho ora detalhado utilizou-se da metodologia de quantificação das variantes conforme a referida autora. TRAÇO ANIMACIDA- DE OBJETO NULO PRONOME LEXICAL SN. ANAFÓRICO CLÍTICO TOTAL DE CASOS [+ANIMADO] 348/1218 29% 310/330 94% 82/433 19% 13/21 62% 753/2002 38% [-ANIMADO] 870/1218 71% 20/330 6% 351/433 81% 08/21 38% 1249/2002 62% Tabela 03: Traço semântico do antecedente na realização estratégica do objeto direto anafórico Fazendo-se uma leitura da tabela 03, nota-se que o clítico é mais presente com o traço semântico [+ animado], 62% (13 casos), enquanto com o traço semântico [- animado] ocorre no percentual de 38% (08 casos), como nos exemplos, (05), (06), (07) e (08), respectivamente: Traço semântico [+ animado] (05)...ELA tirou dez, por isso que eu estou dizendo, e quem veio, vem, veio argüi-la foi um arquiteto da USP de São Paulo. ( NURC, Inq. 13/R, ls. 393, 394; M3s). (06)...você tem que conversar com EXIBIDOR, pra mostrar lista de filmes, pra argumentar, coisa e tal, pra convencê-lo. (PEPP, Inq. 06, ls. 20, 21; H3f). Traço semântico [- animado] (07)...pegar UM ASSUNTO e dissecá-lo do todo para a parte, não é? (NURC, Inq. 10, l. 419; H1s). (08)...já trazer AS POTENCIALIDADES, e só desenvolvê-las... (NURC, Inq. 10, l. 487; H1s). Analisando criteriosamente a tabela 03, percebe-se que o pronome lexical é a variante que está relacionada de modo direto ao fator semântico [+ animado], com um total de 94% (310 ocorrências), ficando no fator semântico [- animado] com apenas 6% (20 ocorrências),como nos exemplos, (09), (10), (11) e (12): Traço semântico [+ animado] (09) Como você perdoou SEU PAI, como você falou? Exatamente. Eu perdoei ELE. (PEPP, Inq. 40, ls. 445, 446; H1f). (10)...MEUS FILHO quando já começaram a crescer quando pouca idade eu deixava ELES... (PEPP, Inq. 11, l. 41; H3m). Traço semântico [- animado] (11) ESSA VELOCIDADE de hoje que agente produz ELA. (NURC, Inq. 10, l. 100; H1s). (12) QUALQUER COISA que você escreve ELA tem que começar com era uma vez, ter desenvolvimento, tem que terminar com eram felizes para sempre... (NURC, Inq. 10, ls. 575, 576; H1s).
766 Fazendo uma leitura da tabela 03, observa-se que o traço semântico [+ animado] é um fator de restrição para o objeto nulo (29% das ocorrências) e para o sintagma nominal anafórico (19% das ocorrências), enquanto o traço semântico [- animado] é um fator que os favorece, eis que o objeto nulo surge em (71% dos dados) e o sintagma nominal anafórico aparece em (81% dos dados), a saber: Traço semântico [+ animado] Objeto nulo (13) Olha O PASSARINHO onde está, eles ficam aqui o tempo todo e os gatos embaixo querendo pegar Ø (NURC, Inq. 13/R, ls. 171, 172; M3s). (14)...a gente se afeiçoava À PROFESSORA, apesar da gente até achar Ø um pouco radical, né? (PEPP, Inq. 10, ls. 177, 178; M1m). Sintagma nominal anafórico (15) José reconheceu SEUS IRMÃOS, e o que José fez, perdoou SEUS IRMÃOS, (PEPP, Inq. 40, l. 439; H1f). (16)...ensina O FILHO a ser rebelde com os pais, é o caminho que prepara O FILHO para ser maldoso com seus pais.. (PEPP, Inq. 40, ls. 187, 188; H1f). Traço semântico [- animado] Objeto nulo (17) Comprei ESSE TERRENO aqui já com indicações de engenheiros, de arquitetos, que valia a pena, comprei Ø por uma bagatela,... (NURC, Inq. 13, ls. 73, 74; M3s). (18)...eu vi que UMA FRASE não está soando bem eu não escrevo Ø. (PEPP, Inq. 06, ls. 67, 68; H3f). Sintagma nominal anafórico (19)...vi AS MANGAS tão bonitas, aí levantei, peguei AS MANGAS, aí,... éi, mordi uma, mordi A MANGA (PEPP, Inq. 01, ls. 211, 212; M3f). (20)...ele vai pagar O IMPOSTO, não precisa a prefeitura ir atrás dele, é ele que vai pagar pra depois alegar que pagava O IMPOSTO de propriedade territorial urbana IPTU.(NURC, Inq. 12, ls. 69, 70; H3s). Verifica-se através da tabela 03 que, na fala de Salvador, o traço semântico [+ animado] favorece a realização fonética de um pronome, seja clítico ou lexical, embora seja bem mais significativo para o emprego do pronome lexical e o traço semântico [- animado] parece contribuir para as estratégias de esquiva, ou seja, o objeto nulo e o sintagma nominal anafórica, corroborando com os resultados encontrados por Duarte (1986), conforme tabela 01. Tudo leva a crer que as opções de retorno do objeto direto anafórico são condicionadas pela animacidade do antecedente, ocorrendo uma bifurcação entre as estratégias de retorno anafórico com o pronome lexical e o clítico acusativo que são fortemente favorecidos pela presença de um antecedente [+ animado] e as estratégias de retorno anafórico com o objeto nulo e o SN anafórico, que são fortemente favorecidas pelo antecedente [- animado], ou seja, o pronome lexical e o clítico se opõem ao objeto nulo e o sintagma nominal anafórico com relação ao traço animacidade. 5 Rodada binária O grupo de fatores Gênero/sexo do informante foi considerado significativo somente na rodada binária objeto nulo x pronome lexical. Normalmente, a análise dessa variável social possibilita apontar qual o papel do homem e da mulher nos fatos lingüísticos, no sentido de assinalar se um
767 gênero é mais conservador que outro. Essas generalizações são feitas, fundamentando-se, especialmente, nos papéis exercidos pelos homens e mulheres na comunidade, que se refletem nos aspectos linguísticos. Pode-se perceber que tanto as mulheres quanto os homens mantêm uma postura inovadora, visto que utilizam o objeto nulo, uma variante não estigmatizada socialmente, mas inovadora; o peso relativo desse fator é de.55 entre as mulheres e de.44 entre os homens. Cabe salientar que o fator objeto nulo se manteve próximo do neutro nos dois gêneros/sexo e que a pequena diferença a favor do gênero feminino evidencia que o gênero masculino usa mais a variante pronome lexical que as mulheres, conforme tabela 04 e gráfico 02. Gênero/sexo Dados/Frequência P.R. Feminino 672/829.55 81% Masculino 546/719 76%.44 Tabela 04: Objeto nulo e o gênero/sexo dos informantes análise de regras variáveis Gráfico 02: Objeto nulo e o gênero/sexo dos informantes análise de regras variáveis 1 0,9 0,8 0,7 0,6 0,5 0,4 0,3 0,2 0,1 0 Feminino Masculino O grupo de fatores Animacidade do antecedente foi considerado significativo somente na rodada binária objeto nulo x SN anafórico. No grupo de fatores Animacidade do antecedente o traço semântico [+ animado] desfavoreceu o SN anafórico (.16) e o traço semântico [- animado] privilegiou o SN anafórico (.77). O traço [- animado] do antecedente condiciona o uso do objeto nulo, enquanto o traço [+animado] desfavorece essa variante e privilegia o pronome lexical. Observe a tabela 05 e o gráfico 03. Fator animacidade Dados/Frequência P.R. [+ animado] 348/655.16 53% [- animado] 870/890 98%.77 Tabela 05: Objeto nulo e a animacidade do antecedente análise de regras variáveis Gráfico 03: Objeto nulo e a animacidade do antecedente análise de regras variáveis
768 1 0,9 0,8 0,7 0,6 0,5 0,4 0,3 0,2 0,1 0 [+animado] [-animado] Considerações finais Após análise dos dados referentes à variável em estudo, o objeto direto de terceira pessoa na fala dos soteropolitanos, confirmou-se o uso das quatro estratégias de retorno anafórico do objeto: o clítico, o pronome lexical, o sintagma nominal anafórico e o objeto nulo. No tocante à variável gênero/sexo, tanto os homens quanto as mulheres fazem uso bem mais acentuado do objeto nulo e do sintagma nominal anafórico, isto é, das variantes inovadoras. No que diz respeito ao pronome lexical, as mulheres, neste estudo, o empregam pouco menos que os homens, visto que, no gênero/sexo feminino, essa variante foi utilizada em 15% das ocorrências e no gênero/sexo masculino em 18% dos dados. Por outro lado, os homens empregaram o clítico acusativo (11) vezes e as mulheres (10) vezes, um uso relativamente igual. Observando-se a variável dependente à luz do fator linguístico, o traço semântico do antecedente, pode-se registrar através dos resultados obtidos nesta pesquisa que o objeto nulo é mais favorecido quando o fator semântico do referente é [- animado]. Com o fator semântico [+ animado], o uso maior se dá com pronome lexical. Referências ALKMIM, Tânia. Sociolingüística. In. MUSSALIN, Fernanda; BENTES, Ana Christina. (orgs). Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras, v. 1. São Paulo: Cortez, 2001, p. 21-47. BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. 6. ed. São Paulo: Loyola, 1999. BAGNO, Marcos. Dramática da língua portuguesa: tradição gramatical, mídia & exclusão, social. São Paulo: Loyola, 2000, p.198-209. BAGNO, Marcos. Português ou brasileiro? um convite à pesquisa. 4. ed. São Paulo: Parábola, 2004. cap 4, p. 99-108. CHAGAS, Paulo. In Fiorin, José Luiz (org). Introdução à lingüística: I objetos teóricos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2003, p.141-163. DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. Variação e sintaxe: clítico acusativo, pronome lexical e categoria vazia no português do Brasil. Dissertação de Mestrado. São Paulo 1986. DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. Clítico acusativo, pronome lexical e categoria vazia no português do Brasil. In TARALLO, Fernando (org.). Fotografias sociolingüísticas. Campinas: Pontes / UNICAMP,1989. LABOV, William. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972.
LABOV, William. Estágio na aquisição do inglês standard. In.: FONSECA, Maria Stella V.; NEVES, Moema F. (orgs). Sociolingüística. Tradução da Livraria Eldorado Tijuca Ltda. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974 [1964]. MALVAR, Elisabete da Silva. A realização do objeto direto de terceira pessoa em cadeia anafórica no português do Brasil. Dissertação de Mestrado. Brasília: UNB, 1992. TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. 7. ed. São Paulo: Ática, 2002. WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança lingüística. Tradução de Marcos Bagno; revisão técnica de Carlos Alberto Faraco. São Paulo: Parábola. 2006[1968]. 769