MANIFESTAÇÕES DISCURSIVAS DA TRANSITIVIDADE

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Transcrição:

MANIFESTAÇÕES DISCURSIVAS DA TRANSITIVIDADE Maria Angélica Furtado da Cunha Universidade Federal do Rio Grande do Norte Resumo: Este trabalho apresenta uma alternativa de análise para a questão da transitividade com base no quadro teórico da lingüística funcional americana. A transitividade é entendida como uma propriedade escalar da cláusula como um todo, um complexo de traços sintático-semânticos que, prototipicamente, refletem diferentes aspectos da transferência de atividade de um agente para um paciente. Palavras-chave: transitividade, prototipicalidade, lingüística funcional. Abstract: This paper presents an alternative analysis for the issue of transitivity based on the theoretical framework of American functional linguistics. Transitivity is understood as a gradient property of the clause as a whole, a complex of syntactic-semantic features which prototypically reflect different aspects of the transfer of activity from an agent to a patient. Key-words: transitivity, prototypicity, functional linguistics. O termo 'transitividade' (do latim transitivus = que vai além, que se transmite), em seu sentido original, denota a transferência de uma atividade de um agente para um paciente. Para a Gramática Tradicional, a transitividade é uma propriedade do verbo, e não da cláusula: são transitivos aqueles verbos cujo processo se transmite a outros elementos, que lhes completam o sentido. Por oposição, nos verbos intransitivos "a ação não vai além do verbo" (Cunha & Cintra, 1985:132). Ou seja, a classificação de um verbo como transitivo ou intransitivo se apóia na presença/ausência de um Sintagma Nominal objeto (critério sintático) exigido pelo significado do verbo (critério semântico). Na visão tradicional, portanto, os três elementos da transitividade (sujeito, ação, objeto) co-ocorrem. Apesar da distinção formal rígida entre verbos transitivos e intransitivos, as gramáticas são unânimes em salientar o fato de que "a linha de demarcação entre verbos transitivos e intransitivos nem sempre pode ser rigorosa. Alguns verbos transitivos podem ser empregados intransitivamente", como comer e beber em: comer carne, beber vinho, o doente não come nem bebe (Said Ali, 1971:165). Cunha & Cintra (1985:134) fazem referência ao papel do contexto lingüístico na interpretação/aferição da transitividade do verbo: "a análise da transitividade verbal é feita de acordo com o texto e não isoladamente. O mesmo verbo pode estar empregado ora intransitivamente, ora transitivamente". Concluise, então, que a transitividade não é uma propriedade intrínseca do verbo enquanto item lexical, mas está sujeita a fatores que ultrapassam o âmbito do Sintagma Verbal. Ainda outro aspecto, de natureza semântica, contribui para tornar a classificação da transitividade do verbo menos categórica: o fato de que o objeto direto pode desempenhar diferentes papéis semânticos. Assim, esse objeto pode designar a pessoa/coisa que recebe a ação, o resultado/produto da ação ou o ponto para onde a ação se dirige. Said Ali (1971:95) ressalta que "alguns verbos como matar, ferir, quebrar, caracterizam-se por exprimirem atos

que dimanam de um ser agente e são recebidos por outro ser paciente: verbos transitivos. Não é possível contudo definir com tal critério todos os verbos transitivos". Alguns "não denotam os pacientes ou recipientes dos atos". Cita, como exemplos: ouvir um ruído, pedir dinheiro, escrever uma carta. Com base no fato de que alguns verbos classificados pela gramática como transitivo podem ocorrer sem objeto direto explícito, Perini (1995) critica o tratamento tradicional e avança uma proposta de análise em que cada verbo seja especificado (supostamente no léxico, embora Perini não esclareça) com relação à possibilidade de ocorrência de objeto direto. Assim, os verbos seriam marcados como: exige objeto direto (ex. fazer), recusa objeto direto (ex. nascer) e aceita livremente objeto direto (ex. comer). A posição de Perini está de acordo com a idéia, corrente na lingüística contemporânea, de que os verbos (ou melhor, os predicados) são listados no léxico com frames que especificam quais argumentos são obrigatórios e quais são opcionais (cf. Fillmore 1988, Langacker 1987 e Payne 1997, entre outros). Os falantes dominam essa informação à medida que adquirem sua língua materna. Perini (1995:168) argumenta a favor de uma concepção de transitividade puramente formal, que utiliza a função sintática "objeto direto" para marcar cada verbo, "sem referir-se a traços do seu significado", embora admita que "evidentemente, existe uma relação entre transitividade e traços do significado dos verbos", como a exigência de agente, paciente, etc. (p. 170). Pelo que foi visto até agora, três pontos se destacam: (i) A transitividade não é uma propriedade inerente de um dado verbo. Dependendo do contexto de uso, um mesmo verbo pode oscilar/variar entre uma classificação transitiva ou intransitiva. (ii) O SN que é sintaticamente analisado como objeto direto nem sempre funciona semanticamente como paciente da ação verbal, afastando-se do caso característico, ou prototípico. (iii) Na avaliação da transitividade interagem elementos tanto de natureza sintática (presença/ausência de SN complemento), quanto semântica (papel semântico do objeto) e pragmática (uso textual do verbo). Diante desses fatos, a pergunta que se faz é: que critério(s) utilizar para descrever a noção de transitividade tal qual ela se manifesta em dados reais de fala? No que se segue será apresentada uma alternativa de análise para a questão da transitividade, com base no quadro teórico da Lingüística Funcional Americana, de inspiração em Givón, Hopper, Thompson, entre outros. De acordo com esse tratamento, a transitividade é entendida não como uma propriedade categórica do verbo, mas como uma propriedade escalar (ou gradiente) da cláusula como um todo. O fenômeno da transitividade apresenta um componente sintático e um componente semântico. Uma cláusula transitiva descreve um evento que potencialmente envolve pelo menos dois participantes, um que é responsável pela ação, codificado sintaticamente como sujeito, e outro que é afetado por essa ação, codificado sintaticamente como objeto direto. Do ponto de vista semântico, o evento transitivo prototípico é definido pelas propriedades do agente, do paciente e do verbo envolvidos na cláusula que codifica esse evento. Em princípio, a delimitação das propriedades desses três elementos é uma questão de grau. Do ponto de vista sintático, todas as cláusulas - e verbos - que têm um objeto direto são transitivas; as que não o têm são intransitivas. Segundo Givón (2001), embora as

caracterizações semânticas e sintáticas da transitividade pareçam independentes, elas se sobrepõem: a maioria das cláusulas que são semanticamente transitivas, também são sintaticamente transitivas. Desse modo, se uma cláusula codifica um evento semanticamente transitivo, o agente do evento é o sujeito da cláusula e o paciente do evento é o objeto direto da cláusula. Contudo, a manifestação discursiva de um verbo potencialmente transitivo depende de fatores pragmáticos, como a perspectiva a partir da qual o falante interpreta o evento narrado. Um levantamento preliminar de verbos que, pelo seu próprio significado lexical, se referem à transferência da atividade de um agente para um paciente, ou seja, os verbos que, em princípio, seriam prototipicamente transitivos, demonstrou que esses verbos podem ocorrer com dois ou com apenas um argumento (cf. Furtado da Cunha, 1996). Com os verbos que apresentam dois argumentos, o sujeito pode ou não desempenhar o papel semântico de agente, e o objeto direto pode ou não ser o paciente semântico. Aquelas cláusulas que codificam sujeito-agente e objeto-paciente afetado pela ação verbal representam a transitividade prototípica O trecho a seguir exemplifica duas possibilidades de codificação: (1)... aí quando meu pai viu que o carro ia virar... aí... virar não... que ia bater... aí... segurou a barriga da minha mãe... e empurrou o banco da frente que minha tia estava... o empurrão foi tão grande que ela entrou pra dentro das ferragens do carro... aí eu sei que... e ela ficou dentro do... das ferragens do carro... fratu/fraturou a perna... sabe? Foi uma luta pra tirar ela de dentro do carro... o motorista... primo da minha mãe quebrou... o... a cara toda... o rosto... sabe? ficou só os pedaços... (Corpus D&G, p. 222) Enquanto as duas primeiras cláusulas em negrito apresentam sujeito-agente (meu pai) e objeto-paciente afetado (a barriga da minha mãe e o banco da frente), nas duas últimas o sujeito é não-agentivo; na verdade, tanto a tia do falante quanto o primo da sua mãe sofrem os efeitos da ação verbal em uma parte do seu corpo. Apesar de não ter procedido à uma análise quantitativa, esse levantamento preliminar dos dados indica que verbos semanticamente transitivos com dois participantes são raros no discurso espontâneo. A tendência, na conversação, é eliminar o paciente-objeto da ação verbal, ou por que ele é recuperável do contexto precedente, ou porque sua exata identidade é irrelevante para o que se quer comunicar. Isso nos leva ao segundo tipo de configuração argumental. Pertencem a este grupo dois tipos de cláusulas sintaticamente intransitivas: aquelas em que o objeto-paciente é irrelevante/predizível e aquelas em que o objeto-paciente é recuperável do contexto anterior. Alguns verbos que semanticamente "pedem" dois argumentos podem ocorrer sem o argumento objeto, por razões pragmáticas. Para Givón (1984:109), o objeto desses verbos é suprimido por ser altamente predizível e, portanto, sua identificação não é importante no discurso. O trecho a seguir registra a seguinte ocorrência: (2)... um dia desse eu tava me lembrando... ontem mesmo... eu tinha vergonha de comer na frente de Alexandre... às vezes a gente ia lanchar... e eu ficava entalada... era... e com ele não... o Tarcísio... sabe? nem sinto vergonha... pelo contrário... como... aí como mais ainda... (Corpus D&G, p. 227)

Em (2) a supressão do objeto se dá pelo fato de sua identidade ser irrelevante para os propósitos da comunicação. O paciente do verbo comer é genérico, não-referencial. Não importa, nesses casos, o tipo de comida ingerida: a saliência comunicativa recai sobre a própria ação verbal (comer qualquer comida). O exemplo abaixo ilustra o segundo tipo de cláusula com verbo transitivo sem objeto explícito: (3)... as pessoas geralmente passam assim por experiências né na vida pessoal e essas experiências ficam assim guardadas é... na nossa vida e a gente gosta de contar...né? (Corpus D&G, p. 175) Nesse caso, o objeto direto do verbo contar, semanticamente um predicado de três argumentos, é diretamente recuperável no contexto anterior: essas experiências. Por razões de economia discursiva, ele não é explicitado. Trata-se de um objeto anafórico nãoreferencial. É interessante observar alguns casos residuais da transitividade. Tomemos os verbos ter e dar, classificados pela Gramática Tradicional como transitivos. Vejam-se os exemplos: (4)... você viver assim... dando satisfação a... a tudo... é bom a pessoa ter confiança em você... tanto a mãe... como o namorado... qualquer pessoa que confie em você... (Corpus D&G, p. 226) (5)... eu pensei que [o congressista modelo] era Júnior... mas no fundo... no fundo eu ainda dei uma pensadinha que era eu... (Corpus D&G, p. 180) O verbo ter, assim como dar, ocorre em arranjos sintáticos nitidamente transitivos, em que esses verbos são vazios de significado. A pergunta que se coloca é: ter confiança e dar uma pensadinha são predicados intransitivos ou confiança e pensadinha são os objetos dos verbos transitivos ter e dar, respectivamente? Note-se que ter confiança equivale a confiar, usado depois pela própria falante, e dar uma pensadinha corresponde a pensar. Esse é um excelente caso para o argumento de que a fronteira entre predicados de um ou de dois participantes é muito tênue no discurso interacional. Os exemplos discutidos aqui refletem algumas possibilidades de manifestação diversificada do fenômeno da transitividade, atendendo aos propósitos comunicativos e cognitivos dos usuários da língua. Postulamos que essas possibilidades de codificação dos verbos transitivos são motivadas por fatores de ordem pragmático-discursiva. O estudo de dados conversacionais, como o de Thompson & Hopper (2001), sugere que a noção de frames verbais pode não ser relevante para a compreensão de como os humanos produzem e processam a linguagem. Nesse sentido, não existiriam estruturas verbais "fixas", mas modelos ou generalizações que emergem das muitas repetições nas interações comunicativas diárias. Haveria, portanto, um vasto leque de associações semânticas e pragmáticas relacionadas aos tipos de atividades, estados e participantes que podem evocar o significado de um dado verbo. A categorização de um verbo como transitivo ou intransitivo, por exemplo, resultaria de um

processo cognitivo de estocagem do conhecimento a partir do que as pessoas ouvem e repetem ao longo da vida. Essa postura ressalta a natureza processual da atividade de interpretação e tem conseqüências imediatas para a concepção de gramática, que aqui é tomada como um conjunto frouxamente organizado de regularidades recorrentes que surgem nas interações comunicativas. Sobressai, nessa abordagem, o caráter fluido e maleável da gramática, que está num contínuo fazer-se (Hopper, 1987). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CUNHA, C. & CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. FILLMORE, C. J. The mechanisms of 'construction grammar'. BLS, 14: 35-55, 1988. FURTADO DA CUNHA, M. A. (org.). Corpus Discurso & Gramática - a língua falada e escrita na cidade do Natal. Natal: EDUFRN, 1998.. Transitividade e passiva. Revista de Estudos da Linguagem, 1: 43-66, 1996. GIVÓN, T. Syntax. v. 1. Amsterdam: John Benjamins, 2001.. Syntax - a functional typological introduction. v. 1. Amsterdam: John Benjamins, 1984. LANGACKER, R. Foundations of cognitive grammar. Stanford: Stanford University Press, 1987. PAYNE, T. Describing morphosyntax.cambridge: Cambridge University Press, 1997. PERINI, M. A. Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática, 1995. SAID ALI, M. Gramática histórica da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Edições Melhoramentos, 1971. THOMPSON, S. A. & HOPPER, P. Transitivity, clause structure, and argument structure: evidence from conversation. In: BYBEE, J & HOPPER, P. (eds.). Frequency and the emergence of linguistic structure. Amsterdam: John Benjamins, 2001. pp. 27-60.