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Transcrição:

Concha Rousia As Sete Fontes romance Edições ArcosOnline.com

Título As Sete Fontes Autora Concha Rousia Editor Victor Domingos editor@arcosonline.com Data de edição 17 de Maio de 2005 Edição Edições ArcosOnline.com www.arcosonline.com Este trabalho encontra-se registado na Inspecção Geral das Actividades Culturais, sendo agora a sua publicação e distribuição gratuita, sob a forma de e-book, efectuada com a autorização da autora. É permitida a sua impressão e redistribuição em papel ou suporte digital, desde que isso seja feito sem propósitos comerciais e todo o seu conteúdo permaneça inalterado. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 2

SOBRE A AUTORA Concha Rousia nasceu em 1962 numa pequena aldeia muito similar a Penacova, no Sul da Galiza, entre Ginzo da Límia e Montalegre, onde passou a sua infância. Deslocou se posteriormente a Vigo, onde cursou estudos secundários na Universidad Laboral, um internato público para raparigas de famílias camponesas e operárias. Lá sofreu por primeira vez o choque de não poder utilizar com normalidade a sua língua galego portuguesa na sua própria terra, e iniciou uma militância cultural e política a favor dos direitos linguísticos e de identidade da Galiza que continua até hoje. Após diversas peripécias vitais, cursou tardiamente estudos de Psicologia na Universidade de Santiago de Compostela, e depois residiu vários anos nos Estados Unidos, completando um mestrado em Terapia Familiar na Universidade de Maryland. Na actualidade partilha a sua actividade literária com a prática da Psicologia Clínica perto da cidade compostelã. As Sete Fontes é o seu primeiro romance; anteriormente, deu a conhecer na rede alguns relatos curtos agrupados baixo o título Lobos. No ano 2004 ganhou o Certame de Narrativa Curta do Concelho de Marim, na Galiza, com o relato Segredo de Confissão. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 3

A Suso, sempre Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 4

PRÓLOGO Isaac Alonso Estraviz Universidade de Vigo Acabo de ler muito atentamente e com verdadeiro prazer o romance de Concha Rousia intitulado As Sete Fontes. Romance que começa na cidade das Burgas, uma das cidades mais tratadas na nossa literatura. Mas este tem o seu desenvolvimento em terras provincianas, que não têm sido ultimamente alheias à literatura galega. Nele a autora enfrenta se frontalmente ao problema do caciquismo político e religioso e à corrupção que grassa por toda a parte. Tira à superfície uma série de problemática que faz que o nosso povo não seja o que deve ser. A luta entre a sobrevivência e a falta de forças ou de interesse para nos enfrentarmos a todo um entramado de condicionamentos que não permitem que o povo galego saia da sua submissão estúpida e lhe falte a força suficiente para ser dono da sua história e do seu futuro, romper os laços que o inutilizam, destripar os que não permitem que seja livre e dono do seu destino e dos seus bens. Pedem me que ao começo deste romance diga umas palavras sobre as peculiaridades da nossa variante linguística. É muito pouco o que tenho a dizer se estamos a pensar nos falares populares. O leitor que pegue no romance olhará isto com toda naturalidade. Mas vou fazer um bocado de história. Na história do nosso relacionamento, tem havido um bocado de tudo. Às vezes produto da ignorância. Na década dos cinquenta houve em Braga um grupo que tentava publicar textos galegos com lhes mudar tão só a ortografia dos mesmos, deixando formas e vocábulos de duvidosa autenticidade. Lá se publicaram obras como Nos Picoutos de Antoim de Carré Alvarelhos, Seitura de Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 5

Bouça Brei e colaborações de personalidades de ambas pátrias na revista Quatro Ventos. Quer nos livros, quer na revista, os textos galegos deixam muito que desejar. Depois e ainda hoje se segue com a mania de falar de traduções de galego para português ou de português para galego como se de duas línguas diferentes se tratasse. É realmente uma estupidez, pois um texto português percebe se muito melhor com a sua ortografia que com o invento ortográfico empregado na Galiza, que tudo desfigura. As palavras galegas, que são as mesmas que as portuguesas não se podem escrever de maneira diferente. É certo que o português da Galiza é um bocado diferente se comparado com o chamado português padrão. Mas não se a comparação se estabelece com os falares populares do Norte de Portugal. Falares tão portugueses e tão galegos como os outros. Nos falares de aquém e além Minho há as mesmas contracções: pra, prò, co, coa... Estas chegam a Lisboa e ultrapassam o seu domínio. As mesmas formas irregulares de certos verbos: dixe, dixeste, dixo, dixemos, dixestes, dixerom; quige, quigeste... Pronúncia do v como b ; formas verbais graves: amavamos, matavamos... Podo, poda... Qualquer pessoa que tenha contacto e um bocadinho de ouvido para escutar os falantes, perceberá que isto e outras cousas mais são assim. O que não tiver tempo para os deslocamentos, que consulte as inúmeras publicações monográficas que de uma ou outra maneira incidem no mesmo. O artigo indefinido ũa, algũa, era assim como se pronunciava ainda em 1850 sendo condenadas polos gramáticos as pronúncias que hoje são oficiais, mas que seguem a ser normais na Galiza, no Norte de Portugal e em grande parte do Brasil. Grande parte do que hoje se considera norma é fruto de uma transgressão. Para que olhar despectivamente para pronúncias ou léxico que não se conhece a sua existência? Muito léxico que os portugueses definem como léxico galego, é também português. O meu Dicionário é considerado polas gentes do Norte de Portugal como o melhor dicionário português com que contam para consultarem nele vocábulos, frases, expressões que não encontram em nenhum dicionário chamado português. Na história da lexicografia portuguesa houve uma Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 6

tendência para suprimirem todo o léxico nortenho e imporem um léxico bastante reduzido do sul. Hoje Os Lusíadas de Camões é muito mais compreensível para galegos do que para portugueses. A maioria das anotações excepto aquelas que se referem à Mitologia são inúteis para galegos. As Novelas do Minho de Camilo Castelo Branco, o mesmo que toda a sua obra resulta muito mais inteligível para nós do que para a maioria dos portugueses. Miguel Torga, Bento da Cruz e muitos outros apesar de que muitas vezes se deixam levar polas modas de Lisboa são para nós o léxico mais normal. A Sibila de Augustina Bessa Luís, tem um léxico tão próprio do Norte de Portugal como da Galiza, como da minha aldeia. Que português é capaz de ler obras de Aquilino Ribeiro sem um dicionário na mão. De Coimbra para o Norte está se a perder ou ocultar muito léxico plenamente português e plenamente galego. Infelizmente ainda se trata de um trabalho por fazer, pois aquilo que está feito resulta muito incompleto e não sei por que razão alguns vocábulos nem sequer se recolhem. De Trás os Montes temos um Dicionário dos Falares de Trás os Montes de Vitor Fernando Barros que estando muito bem feito, são muito poucos os verbetes recolhidos. Só em quarenta aldeias galegas recolhi eu 13.000. O Falar do Barroso de Rui Dias Guimarães, um trabalho também muito bem feito, resulta a todas luzes incompleto. O Vocabulário Minhoto de Manuel Boaventura de grandes pretensões ficou no vocábulo Espocar. Posteriormente, O Falar do Minho, de Gabriel Gonçalves, que abrange do A ao Z, tem menos verbetes do que o de M. Boaventura. Podíamos ir citando um por um todos os materiais recolhidos e que fazem parte de outras obras. Que pretendo dizer com isto? Pois que a maioria do léxico do Norte de Portugal, melhor dito da chamada Galiza Histórica, está ainda sem recolher. Isto faz pensar que muitos portugueses conhecedores de um padrão aprendido nas escolas mais aquilo que ainda lhes fica da sua comarca ou de parte da sua província, ignorantes, portanto, do seu léxico, considerem muito léxico como exclusivo da Galiza, quando todas essas palavras se estão a empregar nos umbrais das suas casas. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 7

Ainda assim, pode haver algumas palavras que não tenham correspondência nalgum lugar. Isto resulta totalmente compreensível, pois quando uma língua se fala num território extenso e com variantes orográficas e climáticas, logicamente sempre tem que haver palavras num lugar que não sejam próprias de outros. Os do interior não podemos ter o mesmo vocabulário que os da costa. Mas estamos a falar a mesma língua e esse vocabulário é tão nosso como deles. Pode, portanto, que algumas palavras se empreguem na Galiza e não em Portugal ou vice versa, mas isso não quer dizer que aquelas que são autenticamente galegas não se considerem como autenticamente portuguesas e que as que são autenticamente portuguesas não se possam considerar como autenticamente galegas. O léxico que emprega Concha Rousia no seu romance é galego e é português, pode ser que algum vocábulo não esteja recolhido ainda, mas que existe estou plenamente convencido. Em trabalhos feitos com portugueses, inclusive teses de mestrado e de doutoramento me encontro com as maiores surpresas. Encontrar em Arcos de Valdevez vocábulos que considerava unicamente próprios da comarca de Santiago de Compostela. Ou com as formas verbais tal e como se empregam popularmente na Galiza!! Esperemos, pois, que esse puritanismo que às vezes apresentam os nossos colegas portugueses dê passo a uma maior liberdade de espírito e de criatividade. Compreende se que para um tipo de literatura oficial haja um modelo mais ou menos estandarizado, mas para a poesia e para a prosa não podemos matar o léxico que nos é comum e que está aí vivo. A obra de arte não pode estar limitada aos estreitos cânones de abafamento. De seguirmos assim seriam inúteis a maioria dos vocábulos que recolhem os dicionários e de aqueles que ainda é necessário recolher. A língua tem de estar em todos os âmbitos do saber e em todo tipo de culturas. Acho perfeitamente válido que C. Rousia incorpore afinal do seu romance um vocabulário com aquelas palavras que considera desconhecidas no mundo português. Assim facilita o melhor entendimento do romance. Mas isto teria que ser frequente em muitas outras obras sejam elas da procedência que sejam. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 8

AS SETE FONTES Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 9

Angustiado, o discípulo acudiu ao seu mestre espiritual e perguntou lhe: Como posso liberar me, mestre? O instrutor contestou: Meu amigo, e quem é que te ata? Pensamento tradicional da Índia Como aranhas fantasmais que tecem o esquecimento da sua própria existência. Castelão Quem dera volvermos nascer, e saber o que sabemos! Pensamento tradicional de Penacova Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 10

LIMIAR A notícia lera se no diário Nuestra Región a quarta à manhã. O jornal quase não podia acreditar no que, porém, era uma realidade inegável. Assim, como sumida por uma bruxa, desaparecera do Museu Arqueológico de Ourense uma pia de baptismo datada do século dezassete e que pesa mais de quinhentos quilos. As autoridades interrogaram os vizinhos, poucos, pois na vizinhança o que mais abonda são as tabernas, na procura de qualquer informação que os ponha na pista da pia. A porta não fora forçada, e a peça fora tirada do museu com todo o cuidado, como para não danar nada ao seu passo, o que permitia descartar qualquer acto de vandalismo. Nas tabernas da Rua do Manco não se falava doutra cousa nos dias que seguiram à notícia e aos feitos. Os clientes das tascas não desperdiçaram a maré para brincar cos taberneiros e até algum gracioso chegou a dizer que se bem se mirava não estava tão mal a cousa Agora tão sequer não poderão baptizar o vinho A polícia local vigia noite e dia, desde o sucedido, as duas entradas da rua. As fechaduras das duas portas exteriores do museu foram mudadas também coa finalidade de tornar aos ladrões de pias. A cidade anda toda alvorotada, e o sentir da gente fica bem reflectido nos versos do não mui conhecido poeta do momento, um tal Budial: Bágoas ardentes pola pia de pedra Bágoas escaldantes chora hoje a terra Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 11

De quando em vez o diário Nuestra Región salientará o que se for sabendo do processo de busca e recuperação da peça roubada, além de dar nos conta do latejar da cidade. Deste jeito esperam que os ourensãos se tranquilizem e não percam a confiança no labor que desempenham as autoridades. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 12

Capítulo I A FONTECOVA Ainda que os seus caminhos já se tinham cruzado muitas vezes, tempo atrás, os três custodiadores da pia de pedra não lembravam tais encontros, nem as faces, bastante mais novas, que os viveram. Estes três homens foram destinados, sem eles saberem muito bem como ou porquê, para cuidar de que a pia chegue ao seu destino. Andarão durante sete luas, que começarão a contar quando chegarem à primeira das sete fontes polas que há de passar a pia antes de arribar ao seu destino definitivo. Terão que esconder a pia durante o dia para que não seja vista por ninguém, e marchar às suas casas, onde não lhes hão de topar a falta. Cada noite voltarão a se reencontrar e seguir coa peregrinação até ao amanhecer, e assim até ao remate do tempo do que dispõem. Sete são os pontos polos que a hão de levar, e cada um corresponde se com uma das sete fontes das que darão de beber à pia antes de a depositar no lugar que foi destinado a ela. A primeira noite, chegaram coa encomenda à Fontecova, o primeiro dos sete mananciais. Ainda havia vagar para o arraiar do dia, polo que antes de esconderem a pia tiveram tempo para falar ali na beira da fonte. Nas noites precedentes àquela, os três homens não tiveram tempo nem fôlegos para se darem a conhecer. Reinava a confusão nas suas cacholas. Eles os três lembravam um sonho em que ficavam de pé direito nas portas do Museu Arqueológico de Ourense; Dom Narciso, o cura, mirando aos outros dous homens dissera então: que faço eu à porta deste museu? Os outros dous, o Perfeuto Racha Pedras e o ex alcaide do concelho de Os Mouros, a quem todos conheciam por Rebenta Ruas polo seu afã de encanar mais fundo que o inferno; estes últimos não tinham percebido que aquelas eram as portas dum museu, eles só passaram polas tabernas da rua sem reparar nunca nele. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 13

Seguido daquele encontro de ensono tudo sucedera tão depressa que os três homens não tiveram tempo nem para falarem. Agora repousavam na beira da fonte; aquela fonte, na que com sucessivas mãos cheias beberam eles e mais deram a sua água à pia, fora destinada, quiçá pola sua localização, a ser a primeira das sete polas que teria de passar aquela procissão nocturna. O Perfeuto Racha Pedras, que andava algo torpe ultimamente, caíra no rego da água e ficara todo enlamadurado; Dom Narciso, para lhe tirar importância ao pequeno incidente, repetia lhe que não se preocupasse, pois antes de que chegasse o dia havia lhe enxugar e trapalatrá ; ao Perfeuto amargava lhe bem ter que aturar esses conselhos, sobretudo sabendo que vinham dum cura. Ainda que Narciso afirmara e negara essa condição na mesma frase ( Fui cura mas agora já não ) ao Perfeuto, como a toda a gente, não lhe abondava com que Narciso não dissesse missa para o deixar de ver cura, e como uma víbora revolvia se cara a ele: que saberás tu, tu nem sequer foste nunca casado e não lhe tens que dar conta do que fazes ou não fazes pola noite à mulher! E isso era certo, o Narciso não lhe tinha que dar contas a mulher alguma, mas o que não sabia ainda o Racha Pedras era que este cura cada noite, logo da ceia, tinha se que escapar do psiquiátrico do Couto, onde residia desde um incidente que tivera numa freguesia que linda co vale onde fica a Fontecova. Tampouco era certo que o Racha Pedras lhe tivesse que dar contas à mulher, ainda que a tinha; e apesar de que muitos lhe aconselharam que o deixasse, ela seguia a o aturar. O ex alcaide, baptizado coa alprecha de Rebenta Ruas polos seus ex votantes, tentou fazer de intermediário entre o cura e o canteiro Calai já, tarabelos, que sois mais maus de aturar do que ainda nos hão de descobrir por vossa causa porquê não tratamos de esclarecer onde é que nos topamos? Lembrais se algum de vós esteve antes por aqui, ou lhe resulta familiar este sítio? O cura engrunhou o focinho e moveu a cabeça em sinal de não ter ideia de que lugar era aquele; a escasseza de luz que manda a lua nova não ajudava muito. O Racha Pedras botou uma olhada mais longa e até subiu ao alto do lameiro no que fica a fonte, depois meteu se no carroucho e disse: sim, eu conheço isto, estamos em terras dum lugar que se chama Penacova, e que fica do outro lado desse outeiro; sei o eu bem porque desde o carroucho vi que acolá para o fundo Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 14

estão os penedos da Rainha Loba. Na base daqueles penedos tive eu há anos uma canteira. Penacova repetiu Narciso, eu disse missa em Penacova alguma vez, já vão lá alguns anos disso o cura de Penacova tinha andado algo desassentado Penacova repetiu o cura, e ficou calado, a olhar para o chão como tentando achar nas ervas, ou quiçá nos seus miolos, alguma ideia que lhe dera luz àquela noite de incertezas. Penacova pertence ao concelho de Os Mouros disse o ex alcaide. Eu fui alcaide nesse município alguns anos, há também já tempo, mas não me portei mal cos de Penacova E disse isto como quem rosna uma queixa, manifestando a sua desconformidade com um destino que intuía lhe vinha acima. Começavam a desaparecer algumas estrelas, polo que esconderam a pia e foram se, cada quem por seu carreiro. Partiram sem despedir se sequer, os três sabiam, e então não era preciso mentá lo, que à noite seguinte teriam que juntar se ali de novo, onde ficava escondida a valiosa peça. Esconder a pia não era tarefa difícil, pois o lugar no que ficava a fonte estava rodeado de poulas com gestas e piornos de mais de dous metros, e tojais nos que se via perfeitamente que ninguém entrara a roçar desde havia muitos anos; portanto escolheram o que ficava mais à mão e encaminhado na direcção que consoante com as estrelas teriam de seguir na próxima jornada, e ali a esconderam junto cos trebelhos que usavam para a deslocar: uma espécie de chedeiro pequeno sobre duas rodas eixadas e um pinho polo que um deles puxava quando havia que mover a carga. Os outros dous, cada um co ombro à roda e a empuxar. As pegadas, que ali perto da fonte se espetaram mais, e as rodeiras, tinham de ser bem dissimuladas antes de partirem para as lavouras do dia; feito isso, aqueles homens eram livres de voltarem ao seu cotio. * * * Pola manhãzinha em Nuestra Región pode se ler que as autoridades andam a investigar a história da pia para ver se dão descoberto quem pôde estar detrás da sua desaparição. Com esta finalidade fizeram uma visita ao Bispado, na rua do Progresso, no meio e meio de Ourense, já que a pia fora, e porventura ainda era, propriedade da Igreja. Há perto de vinte e poucos anos Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 15

que foi sacada da freguesia na que estava, e para a que fora criada, e anda ambulante por aí; mas sobre disto o Bispado não tinha documentação que o pudesse provar, já que nos seus arquivos, actualizados antes dessas datas, não rezava nenhum movimento de pias. A peça fora recentemente adquirida polo Museu Arqueológico de Ourense, numa hasta pública, e nele estava exposta até à noite da sua desaparição. Representantes do Bispado, trás cotejar a descrição que lhe ofereceram os agentes com as suas avelhentadas notas, sugeriram o nome duma freguesia como possível origem da peça; porém, isso deveria ser confirmado, pois nos arquivos não consta pia nenhuma desaparecida em tal lugar. Ora que também se poderia tratar doutra pia e doutra freguesia, pois, ainda que não o pareça, todas são similares. Na secção de sociedade, o diário recolhe a notícia de como os vizinhos da cidade velha iniciaram uma campanha de recolhida de fundos para mandar fazer outra pia exacta, e que não lhe perca ponto, à desaparecida. O jornal também publica um novo verso de Budial, e o anúncio dum adinheirado ourensão que oferece uma soma respeitável a quem proporcionar informação fidedigna que ajude a dar co paradeiro da pia. O nome deste enriquecido cidadão é omitido para lhe evitar a avalancha de possíveis informadores no seu domicílio. Aquelas pessoas que tenham, pois, algum tipo de informação que pensem poder ser de interesse, podem achegar se aos escritórios deste jornal, ou ligar por telefone a um número que é facilitado também polo diário. * * * Cala, Racha Pedras, e agacha o lombo que a cousa não se há de mover só; deixa o tranquilo co pinho, já te chegará a ti a rolda. O Racha Pedras seguia um pouco enfronhado porque ontem caíra no rego e hoje enterrara na lama um sapato que trazia esgalochado e molhara o calcanhar, polo que não pára de lançar ataques a Dom Narciso, quem semelha todo calmo e sempre com conselhos de como se hão de fazer as cousas mas que saberá este, se é um cura qualquer!? Não, aquele não era um cura qualquer, mas o Racha Pedras desconhecia a história de Dom Narciso. Dom Narciso não fora um cura qualquer nunca, nem sequer antes de ser cura; ele, Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 16

para começar, mália as ganas que tinha de se meter cura, contudo os pais os devezos de que estudasse, de o livrar de ter que estar atado à terra como lhes passa a eles, que se não servia para outra cousa, que volta e que dá lhe, e que tal e que sei eu Por conseguinte, o Narciso rematou no seminário e foi se deixando levar. Ele era um moço alegre, mesmo tinha uma graça com ele que facilitava a relação com qualquer, polo que os curas do internato mui pronto ficaram seduzidos por ele e deixavam lhe ir passando as mais das cousas que fazia, muitas não estavam bem de todo para um futuro ministro de El Senhor, não obstante já se formalizaria quando se ordenasse; isto que ele fazia agora eram cousas de rapaz, que com a idade e a ensinança iriam minguando. E assim foi indo este moço levado polas amparadelas dos que se ocupavam da sua formação espiritual, e que o converteram em cura. Cura feito e direito; assim, quase sem se aperceber, Narciso era o titular duma freguesia não mui afastada da cidade de Ourense. De hoje para amanhã convertera se em Dom Narciso, atrás ficavam os muros de pedra do seminário que o agacharam durante uma mada ou duas de anos, e agora livre Quem seria ele ali fora, sem a frialdade das pedras para dar acougo à sua juventude ainda por viver? Não tinha outro remédio que descobri lo por si mesmo, e assim, com um talante quase que de explorador, sem ele nem o querer, começou a sua andaina de pastor. Aqueles dias primeiros na freguesia seriam no futuro lembrados por Dom Narciso como dias livres e felizes, nos que a ilusão era o temão que guiava o seu fazer quotidiano. Toda aquela gente mostrando lhe respeito, e não só na igreja, senão também quando se cruzavam com ele pola rua; mesmo os homens, que só de se achegarem ao sagrado já tiram a gorra da cabeça e lhe saúdam com esse aceno submisso, comunicando lhe a Narciso o reconhecimento da sua superioridade. E o Narciso começou de sentir se grande, mesmo partícipe merecedor da bondade infinda do Criador assim foi como começaram as suas ideações gloriosas Queres tirar duma vez! Sempre estamos na mesma parece que este sempre anda nos viosbardos. Aquele Racha Pedras sempre a tanger no Narciso; soltava lhas sem sequer dirigir se ou fitar para ele a metade das vezes; mas o abade hoje parecia Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 17

não importar se demasiado, andava o homem a olhar para dentro e não percebia muito as aguilhoadas que coa língua lhe lançava o canteiro; felizmente a roda lhe mantém o poder ocupado ao Racha Pedras, senão este hoje saltava lhe no pelejo ao cura; e tudo bem seguro que por causa de se lhe atoar o sapato na lama e ter que andar ao couchopé quando saíram do lameiro À medida que o arraiar se achegava, Fontecova ia ficando atrás. A Fontecova, um manancial que fervia da terra, dava nome àquele frondoso vale. O lameiro em que rebentavam aquelas boas águas reverdecia, e já desde longe se diferenciava bem dos outros; mesmo se sentia latejar a água naquelas tornas sachadas de ano em ano. Fontecova é o primeiro manancial da freguesia de Penacova subindo polo caminho de Ameixeiras e não há viageiro da comarca que não entrara alguma vez a saciar a sua sede com estas ricas águas. Sim, a Fontecova é muito apreciada. E vá se agradecem os de abaixo o que lhes decorre. Tal é, que há uns anos quase entraram em litígio uns vizinhos porque os herdeiros do lameiro onde abrolha a fonte não se ocuparam de desentupir as tornas, e assim a água era toda sumida e consumida, sem que decorresse nem gota para os campos lindeiros dos vizinhos, que quase se atreveram a meter os seus sachos nas tornas da fontela. Tudo se arranjou polas boas, quiçá porque não lhe ligou de passar por ali a nenhum advogado, ou quiçá porque todos gostam de não ter que pleitear, ou quiçá por outras razões. Aprenderam todos daquela que a água da Fontecova não só pertence ao lameiro no que nasce rompendo os seus torrões, senão que os donos, logo de se servirem dela, devem na deixar marchar para que livremente banhe outros lameiros próximos; e certo é que são muitos e bem deles os que se servem destas águas Como delas se serviram os três homens, que logo de se saciarem, e dar de beber à pia que há de estar sempre molhada, partiram e caminharam. Caminharam bem, e apesar da fraqueza mostrada polo encarregado do pinho, como frequentemente lhe lembra o Racha Pedras: se faria mais um mosquito que este palerma!, essa noite atravessaram as terras lindeiras a Fontecova, e internaram se nas carvalheiras da Lagoa. Aquela jornada avançaram avondo, ainda que não todos ou quiçá nenhum o pudesse reconhecer tal era o seu fado. Esconderam a pia e os aparelhos e foram se, cada quem por onde viera. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 18

* * * Na edição de hoje, Nuestra Región pede aos cidadãos o favor de não fazerem mais ligações à direcção do jornal para dar informação sobre a pia, de não ser que a viram passar polas próprias ventas. O jornal dá queixas da enorme quantidade de ligações recebidas, muitas delas de bandarras e gandaias que nunca hão de faltar, e que mantiveram todas as linhas do jornal ocupadas noite e dia Diz se que houve chamadas bem pândegas, se bem que disso só conhecem os vizinhos de Seixalvo onde os comentários foram espalhados por uma recepcionista de Nuestra Región. Segundo a tal rapaza telefonista seica houve uma mulher que se encheu de porfiar e porfiar, até ligou mais de duas ou três vezes, dizendo que aquilo só podia ser obra de El Demónio e que o único que se podia era rezar e confiar em El Senhor. Outro comunicante diz se que insistiu em que ele vira a pia recentemente, embora não lhe diria a ninguém, excepto ao senhor milionário, onde é que ele a guichara. Outros afirmavam que viram a pia em sonhos e lhes falara dando lhes a entender a onde é que se encaminhava, e cousas assim polo estilo. * * * As noites seguintes transcorreram sem maiores intriquidências; o canteiro parecia menos enraivado co abade, se calhar porque a Lagoa era chã e o Perfeuto não se tinha que esforçar tanto e tampouco se lhe ençoufavam os sapatos, que por certo agora levava bem amalhoados; ou também quiçá porque Dom Narciso seguia ensimesmado com as suas cavilações e não lhe andava a dar conselhos a ninguém; ou se calhar fosse por ambas as razões ou talvez por nenhuma delas. O caso é que o ex alcaide, que como de costume não tinha muito que dizer, gozava daquela calma que reinaria nas noites que lhes levou atravessar a Lagoa de Penacova. A Lagoa de Penacova, como o seu nome indica, é um terreno parcialmente asolagado, se bem que eles o atravessavam por uma parte enxoita. A planície vem lhe bem a Dom Narciso para seguir cos Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 19

seus pensamentos, que por certo traziam no algo confundido Como pôde ele, tão bem como começara a sua andaina, rematar onde rematou? Narciso seguia a relembrar os dias dourados da sua primeira freguesia, onde nasceram tantos sonhos Aquele tanto respeito que sentia ele que lhe tinham todos e a adoração que lhe mostravam as mulheres! Esse era o seu deleitar sublime ver se assim admirado por esses seres que ele considerava doces e suaves, ainda que, para dizer a verdade, nunca os provara. Ele entrara tão novinho no seminário, muito antes de descobrir os sentires do corpo, e foi ali nessa pequena freguesia onde o corpo acordou, correu o trecho que lhe faltava, e alcançou a sua realização, igualando se corpo e espírito. E sem decatar se sequer de como, o Narciso passava o dia numa névoa de imagens quase proibidas que pouco a pouco se foram encarnando e até acabou debuxando lhes cara àqueles corpos imaginados. Agora já sempre a mesma cara, e a seguir também já sempre o mesmo corpo. Inevitavelmente, namorou. Ela converteu se no ser mais maravilhoso do mundo de Narciso, o seu sol, o seu temão e dado quem ele era daquela, a sua perdição. Novamente se ergueram os muros do seminário e Narciso e os seus superiores conferenciaram, e o Bispado sentenciou: Vais te ir a esta nova freguesia e não volverás ver essa mulher Ora ele amava a e até pensara mas cedeu, deixou se resgatar, deixou se arrapazar novamente polos seus mestres que tão benevolamente lhe aconselhavam e lhe perdoavam as suas fraquezas de homem novo. O bispo que havia daquela, ao que todos os de dentro se referiam como O rechonchudo Severino, conhecia das debilidades do corpo; e ainda que ele nunca sentira essa classe de urgências ardorosas baixo as suas apertadas vestiduras, apertadas não por justas senão por enchidas, mesmo semelhava que se lhe ia sair o unto polas aberturas de entre botão e botão e mais de um diz se que recebeu uma botoada, ao sair um, comprimido pola gordura amoreada, propulsado Pois este bispo, seica, entendia da fraqueza humana. Este bispo mole de corpo e espírito devezia polo chocolate e mais as roscas era superior a ele, a sua cadeia escravizadora. Polas noites, antes de dormir, dom Severino rezava e rezava para evitar aquelas imagens obsessivas de cunquinhas coloradas com corninhos e um rabo afiado. Assim, a contar Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 20