O HOMEM-CONCHA. a casa do penhasco. Johnny Virgil

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O HOMEM-CONCHA a casa do penhasco Johnny Virgil

I Ele nasceu no mar. Quando a tempestade se acalmou e o oceano refreou a sua fúria, ele veio rastejando em direção à praia, com sua concha colada às costas. Ainda era noite, e ninguém percebeu a sua aproximação, o seu caminhar vagaroso, a forma que se projetou subitamente para fora da água. Dava passos lentos, que, pouco a pouco, expunham o seu corpo ao contato do vento. Ao chegar à praia, parou. O céu estava negro, e a brisa era fria. Olhou à sua volta com nenhuma mostra de interesse. Ou com um interesse cheio de dúvidas e medo, frente a um mundo desconhecido e repleto de sombras. Os minutos passaram, e a sua pesada concha o forçou a sentar-se. Procurou um lugar onde pudesse descansar a salvo das ondas, que insistiam para que voltasse para o fundo do mar, lançando-se com fúria sobre a areia. Mas o homem-concha havia tomado uma decisão. O mar continuaria a ser a sua mãe, mas deixava para sempre de ser a sua prisão. Resoluto, ele rompeu um pequeno pedaço da sua concha com as mãos trêmulas e o entregou ao mar como prova do seu amor. A sua concha ficaria, assim, marcada eternamente pela cicatriz dessa separação. 11

Mas o homem-concha não estava triste. Deitou-se, por fim, sobre a areia, cansado. Recolheu-se em sua concha, em seu refúgio, e aguardou o raiar do dia, adormecendo. 12

II Acordou sobressaltado. Alguém havia posto as mãos na sua concha e fazia força para movê-la. Por um instante, o homem-concha não soube o que fazer; o mundo era algo novo, desconhecia a terra seca. Sentiu medo. Guardou-se dentro da concha, procurou não emitir quaisquer ruídos ou se movimentar. A concha o protegeria contra o assédio de estranhos, de cuja existência tinha conhecimento por meio do instinto. Eram apenas crianças, intrigadas pelo objeto imenso e insólito, arredondado, que aparecera após uma noite de tempestade sobre as areias da praia. Mas ele não sabia o que eram crianças. No seu entender, eram inimigos porque o amedrontavam, porque o tocavam. Talvez apenas tivesse a secreta noção de que crianças podem também ser capazes de crueldade. O toque era uma forma de contato íntima demais, com a qual nunca se acostumou por completo e para a qual abriu muito poucas exceções ao longo da sua vida. No mar, ele se sentia envolvido; na terra, ele se sentia solitário e vulnerável. As crianças, então, partiram, insatisfeitas na sua curiosidade. O homem-concha tinha o peso de um adulto somado ao da sua concha, e o brinquedo havia perdido a graça. 13

O homem-concha permaneceu escondido ainda por um longo tempo após a partida das crianças, receoso de que voltassem. No entanto, a praia estava deserta. Ainda temeroso, pôs as pernas para fora da concha apenas ao meio-dia. Ficou de pé, mas mantinha a sua cabeça dentro da concha. Andou até a arrebentação. Sentindo-se mais seguro, pôs a cabeça lentamente para fora. Os raios de sol cegaram-no momentaneamente era a primeira vez que os olhos encontravam a irradiação dessa estrela, de forma tão direta e inescapável, e o seu calor que entorpecia. Logo se adaptou, contudo, e contemplou o mar de frente. Turvaram-lhe os olhos sentimentos confusos e dor, que ele não pôde explicar a si mesmo. A necessidade de partir e a vontade de retornar. Virou-se para trás e viu que a praia era estreita, cercada por altas paredes de pedra escura. Havia altos rochedos espalhados ao longo da sua extensão. A areia era grossa, quase um cascalho, tons de cinza pontilhados de negro. Algumas plantas sobreviviam nas frinchas das pedras e balouçavam em consonância com o vento. O homem-concha observou tudo com a paciência de um estudioso, ou de um aluno no primeiro dia de aula. Mas buscava algo. Ainda não estava preparado para um meio tão opressor. Nascera há muito pouco tempo, o seu fardo era pesado demais. Não suportaria um outro encontro com estranhos, seres viventes de uma realidade que ainda o assustava. De certa maneira, estava acuado e precisava buscar a proteção de um refúgio maior que o que a sua concha lhe propiciava. Deparou-se com o esconderijo por acaso, enquanto deslizava sobre a areia, esquadrinhando todos os espaços à sua procura. Entre duas pedras enormes, um vão se havia formado, deixando que o homem-concha ali se aninhasse, 14

duplamente protegido contra o perigoso encontro com estranhos. 15