DA VERDADE RECALCADA À VERDADE MENTIROSA:

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Transcrição:

DA VERDADE RECALCADA À VERDADE MENTIROSA: Um relato da histoeria do Instituto da Psicanálise Lacaniana IPLA, em 2009 Claudia Riolfi Não há verdade que, ao passar pela atenção, não minta. (LACAN, 1976: 571) Da escolha do tema Longe de remeter ao debate filosófico a respeito do conceito de verdade, o interesse pelo tema desse trabalho está diretamente ligado às possibilidades de transmissão da psicanálise em um instituto que visa a colaborar com a formação do analista cidadão no coração de São Paulo. Como, todos os anos, somos procurados por um número considerável de iniciantes, em 2009 decidimos que partiríamos de um retorno aos fundamentos da chamada teoria lacaniana. Tomando Lacan (1964) como nossa referência bibliográfica fundamental, propomo-nos a estudar a atualidade clínica dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise no Corpo de Formação em Psicanálise. Entretanto, como temíamos que nossa escolha pudesse gerar uma expectativa de que, no IPLA, nos atemos à apresentação de um Lacan de almanaque psicanalista francês que estudou lingüística e antropologia para poder dar uma leitura mais rigorosa às elaborações de Freud, já no edital de abertura de vagas, ressaltávamos que, para poder responder claramente aos novos sintomas da paisagem da globalização, era necessário ressignificar os termos que Freud inventou e Lacan formalizou. Neste contexto, a passagem pressuposta no sintagma que compõe o título de nosso trabalho nomeia a construção que, sob a orientação de Jorge Forbes, vimos fazendo na direção de construir uma psicanálise para um mundo no qual o Complexo de Édipo não mais oferece 1

uma matriz de sentido. Se, hoje, as pessoas ainda buscam uma análise para poder ser feliz, Forbes tem nos mostrado que esse projeto só tem chance de ser bem sucedido ao se referir a outro tipo de felicidade do que aquela por merecimento: a uma verdade mentirosa, a uma felicidade que a pessoa não pode explicar, que não é uma verdade provada. Esta inversão exigiu de nós um aprofundamento da reflexão a respeito dos modos por meio dos quais deveríamos cumprir nossa missão de colaborar com a formação do analista de orientação lacaniana. Como transmitir aos jovens os conceitos fundamentais da psicanálise de modo operacional? Na direção de responder a esta questão, tornou-se necessário, em primeiro lugar, redimensionar estes conceitos a ponto de permitir que eles continuassem funcionando em um cenário muitíssimo diferente daquele em que foram inventados. Ao retomar um clássico do pensamento lacaniano, no mínimo, nos vimos forçados a parar de ler seus textos como quem procura uma verdade recalcada, a ser depreendida por exegese ou por acréscimo de sentido. Por estarmos advertidos do fato de que conceitos são interpretados de acordo com o cenário em que foram criados, mesmo que uma pretensa verdade lacaniana fosse passível de ser localizada por meio da leitura cuidadosa, ela se tornaria inútil assim que fosse encontrada. Assim, ao longo deste ano, pode-se dizer que, no IPLA, estivemos coletivamente implicados na construção da psicanálise brasileira do século XXI como uma verdade mentirosa. Os principais elementos desta construção estão expostos no que segue. Do valor histórico e clínico do conceito de verdade recalcada O inconsciente é o discurso do Outro... Esse outro é o Outro invocado até mesmo por minha mentira como aval da verdade em que ela subsiste. Nisso se observa que é com o aparecimento da linguagem que emerge a dimensão da verdade. (LACAN, 1957: 529) Em especial, mas não exclusivamente, trabalhamos com a noção de verdade recalcada nos Sábados no IPLA, cursos breves a respeito dos aspectos fundamentais da psicanálise de orientação lacaniana, ministrados por um time que tem se mantido nos últimos oferecimentos: Ariel Bogochvol, Claudia Riolfi, Jorge Forbes e Leny Mrech. Em 30 de maio, oferecemos o curso Fundamentos da Psicanálise Lacaniana e, em 19 de setembro, As duas clínicas de Jacques Lacan: primeira clínica. Nestes dois momentos, nos quais foram mobilizados os textos escritos por Lacan de 1953 a 1970, destacamos os pontos 2

que, marcando o momento de entrada de Lacan na psicanálise, foram utilizados por ele para construir uma clínica pertinente ao século XX. Assim, uma das importantes passagens pontuada por nós foi a utilização feita por Lacan do conceito de verdade para poder fazer face àquilo que ele considerava como uma degradação da psicanálise feita pelos pós-freudianos. Demos a ver que a utilização deste conceito teve seu valor histórico e clínico ao se configurar como o antídoto da maternagem que o analista pós-freudiano fazia, ou ao preencher o silêncio do analisando, ou ao devolver, de uma forma mais palatável, o que ele havia dito. Pareceu-nos importante mostrar aos interessados na psicanálise que o conceito de verdade foi, muito cedo, utilizado por Lacan para devolver a virulência da psicanálise à época de Freud. Por este motivo, frisamos que, já no texto de 1953, Lacan era claro ao remeter o progresso da análise não ao que ele chamou de anamnese psicanalítica da realidade, mas, sim, à verdade (LACAN, 1953: 257). Embora a passagem seja um pouco longa, vale lembrar como, neste momento, a dimensão da verdade remetia ao trabalho a ser realizado pelo analista para fazer face à mentira por meio da qual o analisando se defendia de seu inconsciente: O inconsciente é esse capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a verdade pode ser reencontrada; o mais das vezes ela já está escrita em algum lugar. A saber: - nos monumentos: e isso é meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose onde o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode sem perda grave, ser destruída; - nos documentos de arquivos também: e são as recordações de minha infância, impenetráveis como eles, quando eu não conheço a proveniência; - na evolução semântica: e isso responde ao estoque e às acepções do vocabulário que me é particular, como ao estilo de minha vida e a meu caráter; - nas tradições também, e mesmo nas lendas que sob uma forma heroicizada veiculam minha história; - nos rastros, enfim, que conservam inevitavelmente as distorções, necessitadas pela emenda do capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram, e das quais minha exegese restabelecerá o sentido. (LACAN, op.cit.: 260-261) Pareceu-nos importante mostrar que, opondo-se a uma concepção de inconsciente como o primordial, o instintivo ou o elementar, neste momento de sua elaboração Lacan privilegiou os elementos do significante para dar uma direção clínica ao trabalho do analista, cuja natureza da tarefa exige a sustentação de uma escuta que, naquele momento, poderia ser pautada pela seguinte máxima: A verdade, nós a recalcamos (LACAN, 1957:525). Para dar concretude a esta afirmação, Forbes retomou dois casos clínicos que haviam sido longamente comentados por ele em um seminário ministrado em 1993: o de Mafalda e o de Serafim, respectivamente de histeria e de obsessão. Ater-me-ei aqui à exposição feita por 3

ele do caso de Mafalda, posto que ele pareceu-me mais diretamente ligado à possibilidade de depreensão de uma verdade recalcada daquilo que é narrado pelo paciente. Mafalda, que sofria por não conseguir casar-se, iniciou sua análise por conta de uma queixa quanto à realização do amor. Aparentemente longe do campo de sua demanda inicial, a certa altura do trabalho analítico, começou a tematizar o pé do analista. Inicialmente, referiuse ao fato de que esta era a única parte do seu corpo que, do divã, ela conseguia enxergar. Evoluiu para as interpretações mais variadas, salientando o fato de que ela própria havia voltado a usar sandálias após o início da análise, e, finalmente, narrou ter sonhado com esta parte do corpo do analista, que, à ocasião, nada lhe respondeu. Um tempo mais tarde, tendo aparentemente desistido de falar do pé, a jovem apresentou uma lembrança de infância que muito havia lhe impactado: a primeira vez que havia vindo a São Paulo. Esclareceu tratar-se de uma visita a uma tia materna a quem, nas palavras de sua mãe, ela era igualzinha. Mafalda havia experimentado grande estranhamento nesta viagem, posto que, ao vislumbrar a tia atrás de uma grade, havia julgado tratar-se de uma presidiária. Aflita, perguntou a sua mãe se sua suposição estava correta, sendo que esta lhe esclareceu: Não, sua tia é uma freira das Carmelitas Descalças. Vê-se, portanto, que por meio do trabalho com aquilo que Lacan chamou de monumento, no caso, a retomada do uso das sandálias; com os documentos de arquivo, no caso, a lembrança do encontro com a tia; e com a evolução semântica, no caso, as elucubrações em torno do pé do analista, Mafalda tomou posse do que teria sido a verdade recalcada que estaria dando sustentação a sua dificuldade de realização amorosa: a sua identificação com uma freira carmelita. Insatisfeito com o ponto onde havia sido possível levar esta análise por meio do recurso do desvelamento da verdade recalcada, no curso de 19 de setembro Forbes frisou que, se compreendemos esse caso, isso se deve ao nosso trânsito em sua chave interpretativa: o Complexo de Édipo. Mostrou à platéia que, como o homem proibido que pertencia à mãe, o pai estava em questão no caso de Mafalda. Sem o saber, ela sofria na medida em que havia seguido a recomendação de sua mãe, que lhe havia dito: Minha filha, você não pode se casar, você é igualzinha à sua tia. Assim, pudemos dar a ver que a noção de verdade recalcada só é operacional na clínica quando referida ao cenário edípico. As conseqüências clínicas desta montagem apontam para uma das entradas em análise possíveis: possibilitar a saída da cena imediata em favor de outra cena, onde aquilo que é dito ganha um sentido novo. Frisamos que, na primeira 4

clínica, não é o analista, nem é o analisando, mas sim o Complexo de Édipo que vai dar sentido ao mundo. Nas palavras de Forbes, o Édipo consiste em um software inventado por Freud para nomear o modo mais conhecido de orientar a experiência e a satisfação humana, uma ponte entre o homem e o mundo, o hardware de sua metáfora. Em suas palavras: Freud, no século passado, inventou o mais potente software que conhecemos para orientar a experiência e a satisfação humana. Deu o nome a este software de O Complexo de Édipo. Aprendemos a ver o mundo sob a ótica deste software: vivemos no mundo edípico. (...) Este software funcionou muito bem por ser compatível com um sistema social baseado na organização vertical da ordem do pai e dos ideais. O Complexo de Édipo se estrutura na figura orientadora do pai. O mundo para o qual esse software foi feito - a era chamada industrial - se organizava de uma forma piramidal. A noção do poder decisivo do pai, na família, reaparecia no chefe da empresa, no Presidente da República, no sentimento de pátria. (FORBES, 2003) Posto isso, cumpre esclarecer que a construção que, no IPLA, vimos fazendo em torno da verdade mentirosa construída por Lacan se relaciona a nossa constatação da necessidade de frente à passagem da industrialização, estruturada verticalmente, para a era da globalização, horizontalmente organizada inventar um novo software, além do pai, baseado no real lacaniano. Temos estado atentos à orientação de Forbes (op.cit.), para quem a globalização, retirando a orientação paterna, desbussolou as pessoas, que chegam hoje a uma análise, cheias de possibilidades e sem nenhum futuro. Por este motivo, em nossas clínicas a aposta se funda na possibilidade de, ao tomar um sujeito em análise, levá-lo a inventar um futuro e a sustentar esta invenção. Da aposta na possibilidade de sustentação de uma verdade mentirosa É que somos zomens. (LACAN, 1975: 560) A noção de verdade mentirosa permeia todo o trabalho que vimos desenvolvendo no IPLA, dos cursos breves ao Corpo de Formação Permanente, onde, por entender que a segunda clínica é a que responde ao homem de hoje, temos feito passar os conceitos fundamentais da psicanálise pelo filtro da globalização por meio de incursões sistemáticas aos trabalhos de Lacan compreendidos entre 1970 a 1981. A verdade mentirosa ajuda-nos a 5

repensar a teoria e direciona o trabalho analítico nas três clínicas mantidas pelo IPLA: A Clínica Escola, a Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano e Clínica mantida no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. Na falência das soluções imaginárias e simbólicas, suportaremos uma transferência com o real? Eis a questão que tem norteado nossa busca da construção de uma verdade mentirosa que possa responder pela própria sustentação da psicanálise em um mundo que não é mais ordenado por meio do recalcamento. Que impactos essa busca tem trazido ao nosso estudo do Seminário 11? A partir dela, os quatro conceitos fundamentais ficam completamente redimensionados, a saber: Inconsciente: passa a ser compreendido como sendo algo do que não se cura, como uma realidade sexual opaca, análoga ao traumatismo, impossível de ser recoberta por meio da associação livre e da interpretação voltada ao restabelecimento de uma verdade recalcada; Transferência: as manifestações imaginárias e simbólicas da transferência, assim como as demais histórias que uma pessoa conta ao longo de uma análise, passam a ser compreendidos como o tamponamento de uma verdade insustentável: o próprio inconsciente, cuja realidade é uma verdade que não se consegue sustentar a não ser pela verdade mentirosa; Repetição: no rastro que Lacan deu para além de Freud (1914), quando privilegiou o retorno de um mesmo impossível na repetição, aquilo que se repete passa a ser visto como a presentificação de um mesmo modo de gozar, que, por ser sempre idêntico a si próprio, não se deixa apreender pelo sistema diferencial dos significantes; e Pulsão: posto que, na clínica do real, trata-se mais de implicar do que explicar, e, conseqüentemente, é dado privilégio ao pinçamento do gozo, o conceito de pulsão ganha ainda mais destaque na clínica psicanalítica. No IPLA, seu estudo está previsto para ser realizado no último bimestre deste ano. Da verdade mentirosa que se sustenta mesmo em condições extremas Nada é mais temível do que dizer algo que possa ser verdadeiro. Pois logo se transformaria nisso, se o fosse, e Deus sabe o que acontece quando alguma coisa, por ser verdadeira, já não pode recair na dúvida. (LACAN, 1958: 622) 6

Nem o inconsciente nem as doenças degenerativas têm cura. A experiência de mais de três anos de pesquisa na Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano mostrou ser relativamente comum a ocorrência de omissão da sua condição de portador de uma doença ou, mesmo, da adoção de versões para lá de inverídicas para explicar suas limitações físicas. Macário, 45 anos, portador de uma distrofia muscular do tipo fácio-escápulo-umeral não fugiu a esta tendência. Por longo tempo, tinha atribuído suas dificuldades motoras a um tombo de skate, ocorrido em 1991, durante o tempo em que ele curtia a juventude como qualquer outro jovem normal. Era um homem vaidoso. Camisa de mangas compridas, calça social, cinto discreto, sapato fechado, um par de meias sem-graça, tudo combinando. O cabelo era cabelo cortado curto, sem estilo definido. A julgar pela barba bem-feita, devia cheirar à loção de barba. Ao relatar as conseqüências de seu acidente, deu menos ênfase à dor do que ao desconforto causado pela aparência pouco típica de suas omoplatas. Frisou o grande alívio que sentiu ao corrigir este problema por meio de várias cirurgias. Para mim, foi gigante corrigir a parte estética do corpo, ele disse. Eu fiquei tão preocupado com minha aparência, que perdi o problema em si, completou. Era verdade: o nome de sua doença lhe tinha sido dito em 1991, por ocasião da primeira cirurgia, mas Macário não atinou no significado da coisa. Só compreendeu que era portador de uma doença degenerativa em outubro de 2000, já no Centro do Genoma Humano - USP. Quando procurou ajuda da psicanálise, dizia-se deprimido, ansioso e culpado, pois permanecia preso a um pacto de silêncio com seu filho caçula, também portador da doença. Incapaz de contar de sua condição para ninguém, afirmava não ter tido um pingo de felicidade nos últimos seis anos. As duas entrevistas iniciais deste tratamento, desenrolado entre dezembro de 2006 e abril de 2007, foram fundamentais para a alteração deste quadro. Longe de buscar se inteirar a respeito dos motivos que lhe levaram a optar pelo silêncio, Forbes retirou-o da trincheira de segredo onde havia se metido, marcando uma segunda entrevista para que Macário pudesse vir lhe contar o que havia se passado após a conversa com a esposa. Posteriormente, orientou esta analista que assumiu o caso para levar em conta a necessidade de levar Macário a alterar uma posição desde a qual fez uma bela tragédia, tendo esquecido de que era o seu personagem principal. Após as quinze semanas de tratamento psicanalítico que lhe foi oferecido, Macário esclareceu toda a família com relação à sua condição física e alterou drasticamente o padrão de relação com seus colegas de trabalho: 7

começou a tornar públicas as suas opiniões e passou a se responsabilizar pelo que ele acreditava ser a sua parte. Se assim podemos nos expressar, entretanto, as revelações feitas por ele aos seus familiares, amigos e colegas referem-se a uma dimensão da verdade que é quase sinônima de realidade empírica, no caso, ser portador de uma doença degenerativa. Onde se vislumbrava a construção de uma verdade mentirosa? Na sua possibilidade de reinserção do sexual em sua vida. O sexual só pode ser gozado, não capturado pelas palavras. Após quinze semanas de análise, Macário descreveu do seguinte modo uma das mudanças que pôde experimentar: Ir à praia mudou muito. Eu achava que gostava de caminhar, mas não de entrar na água. O problema era que, antes, eu não tinha coragem de tirar a camiseta, o que me atrapalhava. Eu não gostava que olhassem para os meus braços de Popeye e para a minha caixa do peito, que não é legal. Hoje, que consigo tirar a camisa, percebi o quanto me dá prazer entrar na água. É disso o que eu gosto mais. Teríamos conseguido este efeito de satisfação em um tempo tão curto se, ao invés de nos inscrever na segunda clínica tivéssemos trabalhado sob a orientação da primeira? Acreditamos que não. Só cortando o caminho pelo real poderíamos alcançar este estilhaço de felicidade mentirosa. Concluímos, portanto, reafirmando nossa consonância com a seguinte orientação de Jacques Lacan: Digamos que o que posso solicitar como resposta é da ordem de um apelo ao real não como ligado ao corpo, mas como diferente. Longe do corpo, existe a possibilidade do que chamei, da última vez, de ressonância ou consonância. É no nível do real que esta consonância pode ser achada. Em relação a esses pólos que o corpo e a linguagem constituem, o real é o que faz acordo. (LACAN, 1975-6: 40) Referências Bibliográficas FORBES, Jorge. (1993a). A Psicanálise além do Édipo. Estabelecimento de parte do seguinte seminário: Discurso Analítico: Suas Incidências na Clínica e na Cultura. Disponível em: http://www.jorgeforbes.com.br/arq/psicanalise%20alem%20do%20edipo%20i.pdf (1993b). Tempo de Análise e de Re-Análise. Texto apresentado nas Jornadas de Outono da Escola da Causa Freudiana e Escola Européia de Psicanálise e posteriormente publicado em: Revista Opção Lacaniana, nº 9, 1994. Disponível em: http://www.jorgeforbes.com.br/br/contents.asp?s=23&i=29 8

(2003). Bases para uma conversa sobre Uma psicanálise para o século XXI. Disponível em: http://www.jorgeforbes.com.br/br/contents.asp?s=23&i=51 FREUD, Sigmund (1914). Recordar, repetir e elaborar (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II), ESBOPC, Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1969. Pp. 191-203. LACAN, Jacques. (1953). Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. Pp. 238-324. (1957). A Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão desde Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. Pp. 496-533. (1958). A Direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958) in Escritos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1998. Pp. 591-652. (1964). O Seminário - Livro 11 - Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. Pp. 567-569. 9