Prosa. Editora Literária Prosa,.º 5. Força do Exemplo (PARTE II)

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Transcrição:

Prosa Editora Literária Prosa,.º 5 Força do Exemplo (PARTE II) Maria Galito 2001

III Fecha-se a porta do autocarro que arranca a caminho de Atenas. Estou um tanto ansiosa. Mas que posso esperar? A capital grega aninha-se numa pequena península triangular, chamada Ática. Hoje em dia é o coração de um país que faz parte da União Europeia e enxerga longe, pois muito embora algumas dificuldades, procura ultrapassá-las com renovada energia. Para além do que a sua Atenas será sempre Atenas, o berço da civilização europeia; o seu carácter simbólico persiste, porque somos instruídos desde tenra idade em muitos dos seus princípios milenares; e nem sempre nos apercebemos. Um pouco de História, portanto, é indispensável. Para recordar. Vejamos. Atenas atingiu o seu expoente máximo no período clássico que talvez possamos compreender entre os séculos V e IV a. C no qual era a mais importante das Cidades-Estado gregas. Uma Cidade-Estado considerava-se fruto de um percurso histórico humanocivilizacional como quem evolui da ignorância para a sabedoria, depois de ponderadas as vantagens de uma vida em comunidade. De facto, uma polis não era um país mas também não se limitava ao conceito estrito de cidade. Uma Cidade-Estado envolvia uma zona mais ou menos ampla que incluía as vilas e aldeias em redor; onde vivia uma população que, em caso de guerra, podia abrigar-se dentro da polis; um sistema de defesa considerável, que dispunha de uma fortaleza e de um renque de muralhas, para além de guerreiros experientes na arte da guerra. Atenas também tinha um sistema de defesa mas a sua grandiosidade e poder militar, no Egeu, só parecia rivalizar com Esparta. E os seus sucessos são quase lendários. Quem não ouviu falar de Péricles, o mais famoso dos chefes de Estado de Atenas, reeleito estratega catorze anos seguidos, do ano de 443-429 a. C? Ou das batalhas de Maratona (em 490 a. C) ou Salamina, dez anos depois? Célebre é a vitória de Samotrácia, uma estátua alada já sem cabeça, que o Museu do Louvre costuma pôr em evidência. Mas Atenas era muito mais do que um poder militar; florescia através de uma intensa actividade comercial, e sabia investir no âmbito da Política, das Ciências Naturais, da História, da Filosofia, da Literatura e das Artes. Atenas também viveu uma evolução política. Depois de acabar com as suas monarquias, abraçou oligarquias, com políticos como Drácon e Sólon; tiranias, como a de Pisístrato; ou projectos democráticos, com homens de Estado como Clístenes e depois Péricles. Aliás, aos atenienses devemos a descoberta da Democracia. Durante o período democrático, Atenas atribuía todos os poderes aos seus cidadãos. Mas a definição excluía os estrangeiros (os metecos) e os escravos; e também as mulheres, o que não me deixa nada contente! A Assembleia Popular e o Senado constituíam o corpo legislativo do Estado e, se nos primeiros tempos, havia principalmente um Areópago, um tribunal composto por todos os antigos arcontes, as suas funções judiciárias passaram depois para os chamados tribunais do Povo. Tanto os arcontes (em número de nove, que podiam rever leis ou assumir obrigações religiosas, consoante a sua função), como os estrategos (que eram dez e eram comandantes supremos das forças que combatiam em terra ou no mar), eram eleitos anualmente. Maria Galito 39

Ou seja, Atenas respirava uma organização e uma hierarquia definidas, capazes de assombrar as sociedades suas contemporâneas. A política cultural de Péricles estendeu-se a todas as manifestações do pensamento e do engenho humanos. Mesmo nas artes, os nomes perduram. Fídias e Praxíteles (na escultura), Ésquilo, Sófocles e Eurípedes (na Tragédia) ou Aristófanes (na Comédia). Ou Sócrates, Platão e Aristóteles, na Política e na Filosofia. Eles acreditavam que, para alcançar a Sabedoria, teria de existir uma participação activa dos cidadãos na Cidade, em prol da virtude e da educação da alma quer esta fosse imortal como apregoava Platão, ou mortal como pensava Aristóteles. Servindo a cidade conquistava-se a felicidade. O objectivo era manter a cidade e o indivíduo intimamente ligados, contribuindo para o bem comum e, portanto, para a vida boa de todos os cidadãos. Para o que também contribuía conhecerem-se a si próprios, distanciando-se da Opinião, visando a Verdade Absoluta universal, harmoniosa e justa. - Pelo que o dinheiro corrompia o espírito? Comenta o meu pai, antes de gozar Pois, pois. A cidade era dirigida pelos ricos proprietários que, como tinham escravos para executar as suas tarefas, se podiam dedicar ao ócio de não fazer nenhum. E de criticar a riqueza (que não lhes faltava). - Oh, pai! Contesto Dedicavam-se à filosofia. Retribui-me uma esclarecedora expressão facial. Insisto, contando com os dedos E à história, à matemática, à arquitectura, à escultura. Resolve prosseguir o seu raciocínio: - Diga-se o que se disser, e há que chamar as coisas pelos nomes!, a cidade era bélica, esclavagista e misógina. Elogiava-se a virtude humana mas vivia-se a inveja, a discriminação e a intolerância, que nada têm a ver com as apregoadas Felicidade, Temperança e Justiça. E quanto à Coragem, podia talvez resumir-se a rivalidades crónicas, pelo que as guerras eram mais que muitas. Cruzo os braços, engolindo em seco. E volto-me para a janela. Atenas surge a pouco e pouco dum cerrado nevoeiro de escapes de carros e motas. Vêse rasgada por publicidade agressiva, colada ou mal arrancada das paredes. A manhã parece ter perdido o sol e as suas ruas fazem-me recordar o Pireu. A guia mandou-nos sair do autocarro, quase no meio de uma rua a fervilhar de carros. Levo as minhas pernas para local mais seguro, antes de seguir a pastora do nosso rebanho. Nas bilheteiras, os meus pais são obrigados a pagar para poder entrar com máquina de filmar e de fotografar, como se a Acrópole não fosse ao ar livre. Porque na Grécia paga-se por tudo e por nada. E lá vai a guia! Subo por um caminho de pedra, atropelada por centenas de turistas que sobem e descem pelo mesmo caminho. Mal dá para ver que, à direita, se aninha o Ódeão de Herodes Atticus onde cantou Maria Callas. Não há tempo, pelos vistos. Não se espera pelos turistas que realmente têm curiosidade pela paisagem. Todos correm qual os perseguisse uma manada de elefantes esbaforidos! Tanto que chego à Acrópole cansada, revoltada e absolutamente irritada! Nesse estado de espírito, sento-me. Portanto, subi a Acrópole mas não encontrei a felicidade. Aliás, estou mais infeliz do que nunca. Maria Galito 40

Enterrada nas pedras seculares da Acrópole, num dos degraus do canto oeste, onde se ergue a monumental entrada do recinto sagrado, coloco a cabeça sobre as mãos de um braço que se aninha no joelho. E respiro fundo. A nossa guia masca descaradamente a mesma pastilha elástica com que começou a viagem. A que lhe rebola na boca ou se aloja lateralmente, entre os dentes. Atrás de mim, um conjunto de colunas às quais se chegam a partir de uma subida em ziguezague, e um rio de japoneses que escutam uma guia turística aparentemente mais conscienciosa. Rodo o olhar para uma entrada em pedra, enorme, colossal, gigantesca. Não percebo. Nas aulas de História ouvia-se que, ao contrário da tradição egípcia, os gregos construíam templos em função das pessoas e não dos deuses. Mas se assim é, porque me parece esta estrutura tão grande? A colina da frente até tem uns arbustos que lhe negam a total aridez, mas no morro da Acrópole quase não se avista verde. Não sei que dizer. Sinto-me como uma gota de água numa pedreira. Acho que estou em estado de choque. O nosso pai foi o primeiro a sentar-se e parece não!, está entediado de morte. Desde que chegou que não pára de bocejar. Joana também se senta, cansada das pernas: - Está tanto calor... suspira, passando a mão suavemente pela testa Devíamos ter vindo na Primavera. Já a nossa mãe está absolutamente fascinada com as linhas da Acrópole: - Já repararam bem para a graciosidade das paredes, para a delicadeza das colunas, para cada pormenor? Pergunta a arquitecta, de olhinhos brilhantes. Estudar no papel ou no computador é muito diferente de estar aqui, a observar a realidade. Verdadeiramente impressionante... Joana apressa-se a concordar: - De facto, nunca pensei, mas isto é muito bonito. Leonor foi a única que ouviu a guia até ao fim: - Sabiam que ouviremos um espectáculo de luzes e som, a partir daquela colina? Informa, espetando o braço, qual imperador romano, na direcção pretendida. - És sempre tão discreta... ironizo. Nem comenta, insistindo em explicar de olhos esbugalhados: - Há lá um anfiteatro. O jogo de luzes será feito a partir daqui, da acrópole. ão é extraordinário? Passo a mão pela cara, alongando a pele em todos os sentidos. - Posso saber porque estás tão contente? - E o teu desânimo deve-se a quê, posso saber? É a minha vez de não lhe fazer caso. Levanto-me para reunir a comitiva: - A guia já subiu. Vamos ver o Pártenon. Desta vez acompanho o nosso pai, que se levantou e sobe as escadas até ao Propilon. Passamos a fazer parte de uma serpente policolor e multicultural, que vai desde sabe-se lá onde até sabe-se lá... meu Deus!, vai até lá a baixo. Será que todos os turistas se concentraram à mesma hora no mesmo sítio? O pai aconselha-me a parar. Saímos da fila, para estacionar à sombra e assim escapar ao tórrido sol de Agosto. A vista é privilegiada, sobre um dos templos mais carismáticos de sempre. Maria Galito 41

- Com que então aquele é que é o Pártenon de Atenas... murmura o nosso pai. Deve ser a primeira vez que demonstra algum tipo de entusiasmo em toda a viagem. São corredores e corredores de colunas que parecem correr para frente, ultrapassando as barreiras da velocidade para, de repente, estancarem como um leão que, com a juba eriçada, perscruta de pé, assente nas patas. Entre os segundos que desfilam, uma sucessão de imagens desfilam à minha frente, de cores muito fortes e vivas, qual adornadas por tochas acesas na escuridão da noite. Tão reais que um homem parece cair ao chão depois de uma corrida extenuante; para dizer uma palavra, uma só palavra pela qual justificou perder a vida. E ali, uma multidão de fiéis que se reúnem em torno de um velho filósofo que caminha descalço; e além, entre as colunas esguias, a colossal estátua de Atena, a patrona da cidade. Abro e fecho os olhos. Agora, o mesmo Pártenon, mas nele vibra a energia dos pedreiros e artesãos cujas mãos o erguem do pó, encavalitados nas pedras para talhar a mármore, ou com pincéis regados de tinta vermelha e azul. A azáfama é imensa, mal havendo tempo para descansos, e as formas na pedra renascem a luta de Peleu contra os Centauros, a Guerra de Tróia, as batalhas de Atenienses contra as Amazonas, e dos Deuses Olímpicos contra os Gigantes. Não me lembro, mas hoje, ao acordar, devo ter batido com a cabeça nalgum sítio. A mãe preocupa-se em ler o panfleto que lhe rebola nas mãos. Trouxe-o das bilheteiras, eu e a Leonor temos um igual. Segundo consta da prosa, o Parténon terá sido primeiro construído no século VI a.c., mas só se tornou no sol de Atenas a partir de 448 a.c., aquando da sua inauguração no Festival Panatinaico, que se deu próximo da 85ª Olimpíada da era antiga. Conta a tradição que os seus arquitectos foram Iktinos e Kallikrates, embora a supervisão tenha ficado a cargo de Fídias também ele responsável pela estátua da deusa Atena, trabalhada a ouro e pedras preciosas, que figurava no interior do edifício. - Ao todo, terá setenta metros de comprimento por trinta e um metros de largura, ao longo do qual se mantêm séries e séries de colunas dóricas, mas o conjunto resulta numa agradável afirmação de simplicidade e harmonia. Respira, deslumbrada com o que vê. E pensar que o fizeram há tantos séculos, quando não havia praticamente nada para os auxiliar no trabalho. Leonor parece concordar, decidindo contribuir, com a sua larga experiência na matéria: - Sabia que vinha ver ruínas. Mas o Pártenon, mesmo destruído, tem algo de imaterial que nos prende; que nos obriga a encará-lo, a observá-lo com redobrada atenção. Ao que aponta um outro templo, fervilhante de entusiasmo. Reviro os olhos, perdendo a paciência: - Tem colunas irónicas? Atiro-lhe, ao desafio. - Iónicas. Foi o que eu disse. Insiste, colocando-me o panfleto à frente do nariz. Como se eu não soubesse. Viro-me para ela, decidida a pôr uns pontos nos is: - És demasiado materialista para te pores com invenções, Leonor. Resumo. Mas ela reclama contra o que considera uma afronta ignominiosa. Abano a cabeça, retirando da bolsa a garrafa da água Tu tens é sede. Acompanhamos o grupo pelo circuito previamente estipulado pela guia. Leonor ainda não desistiu: Maria Galito 42

- Em Creta tínhamos a Mãe Terra, a senhora da fertilidade, dos segredos femininos, a deusa suprema da religião antiga. Agora temos Atena, a deusa da inteligência, da determinação, da força e da virtude. Ouviste o que a guia disse? Alguém ouviu? Em Creta elaboravam-se pequeninas estátuas em terracota mas em Atenas a deusa era imensa, com doze metros de altura repletos de ouro e marfim. E sorrindo Tal era o respeito! A senhora de Coimbra, que segue ao lado da filha e da nossa mãe, caminho junto a nós. A que nos surpreende ao comentar: - As mulheres eram muito discriminadas na Grécia Clássica. Nenhuma de nós teria sido feliz acaso tivesse nascido na época de Péricles ou de Aristóteles. Fazemos uma cara incrédula. A filha, cujo nome não recordo, vem em sua defesa: - A minha mãe é professora de História e de Geografia. E acreditem-me, já ouvi o suficiente sobre os gregos para concordar com ela. A professora desprende as duas mãos que conservava juntas, tencionando prosseguir com o seu raciocínio: - Os atenienses dos séculos V, IV, III a. C. confinavam as mulheres em Gineceus, locais reservados dentro das próprias casas. Eles argumentavam que as suas mães, mulheres e filhas, eram seres inferiores; que, ou não sabiam pensar e decidir, ou deveriam limitar-se a ter filhos. A mulher não seguia para a guerra e não participava na vida activa da cidade, logo, não tinha direito ao estatuto de cidadã. A mãe de família tinha quase tão poucos direitos como uma escrava. Toda a mulher devia casar e quanto mais cedo melhor, embora o casamento, mais que um compromisso político, pudesse chegar a ser uma farsa. Isto acontecia na maior parte dos casos, não em todos obviamente. - Mas isso é horrível! Exclamamos quase em uníssono, à primeira oportunidade, numa pausa menos curta do seu discurso. A filha da professora dá mostras de irritação, soprando os cabelos. A mãe humedece os lábios, talvez tentado encontrar algo de diferente para o seu discurso. Prossegue dizendo: - Sócrates e Platão, embora mais favoráveis ao papel das mulheres em sociedade, teorizaram a propósito de uma cidade ideal, em que homens e mulheres da classe superior deveriam eliminar o casamento, como qualquer outro tipo de vínculo ou propriedade, para que os filhos passassem a ser de todos e não de um par específico. Quando a criança fosse excedentária ou portasse algum tipo de deficiência, seria morta; quando saudável, entregue ao Estado, o responsável máximo pela sua educação. As mulheres, tendo perdido o papel de mãe e esposa, já teriam tempo para instruir-se e desempenhar iguais funções à dos homens na cidade. Ao que a filha decide acrescentar, cruzando os braços: - A teoria de Platão terá sido inspirada na real cidade de Esparta. A mãe lá se obriga a concordar: - Pois, quer dizer... mas... até que, depois de tantas hesitações, explica É preciso ver que as mulheres espartanas eram conhecidas pela sua valentia. Desde pequenas que tinham uma preparação física semelhante à dos homens, para poderem dar à pátria filhos fortes e saudáveis. Mas quem ia para a guerra eram os homens. Sendo a guerra constante, eram elas quem, a maior parte do tempo, dirigiam os terrenos e a cidade. O casamento existia mas era um conceito diferente do nosso. Homens e Maria Galito 43

mulheres mal se viam, partilhando o leito em sítios mal iluminados e durante pouco tempo. Chegava a haver partilha. Às vezes acontecia que um grupo de irmãos, ao invés de ter cada qual uma mulher, tinham todos a mesma. As mulheres espartanas eram igualmente famosas pela sua ferocidade. Tirteu, um ateniense ao serviço de Esparta, escreveu a dada altura: «Ao ver o filho, que fugia do combate a toda a pressa e entrava em casa sem escudo, uma espartana correu ao seu encontro, enterrou-lhe a lança no coração e pronunciou, ante o seu cadáver, estas palavras viris: «raça estranha a Esparta, vai para o Inferno, já que renegaste a tua pátria e a tua mãe», pois na própria véspera do combate lhe declarara «Volta com o teu escudo ou sobre o teu escudo». - Para a sociedade espartana, a cobardia, de quem quer que fosse, era a maior das humilhações. Remata a filha, que agora já me lembro chamar-se Cláudia. - Nem sei o que é pior, se Esparta se Atenas! Exclamo, atordoada. A professora de História prossegue: - Os lacedemónios ou espartanos eram, de facto, muito difíceis; duros, austeros, fechados sobre si próprios; julgavam-se a elite das elites e obedeciam cegamente a um conjunto de leis ou regras atribuídas a Licurgo, o homem que havia reformado Esparta por alturas do IX a.c. e puxando pelo nariz, como se assim recordasse melhor as palavras Por exemplo, lembro-me de uma vez ter lido qualquer coisa como: «(...) são necessárias poucas leis àqueles que falam pouco». E, ao que parece, não gostavam de estar sempre a criar leis se as de Licurgo eram consideradas suficientes. E falavam dramaticamente pouco. Entramos na fila para o museu. O nosso pai, conversa numa das poucas sombras do recinto com pessoas que fizeram connosco o cruzeiro, mas não vieram no nosso autocarro. Não parece interessar-se por ver mais estátuas. Viro-me para a professora, tentando indagar a sua opinião sobre: - A Guerra de Tróia de que falava Homero. Era uma sociedade mais minóica, mais ateniense ou mais espartana? Mas temo a resposta axiomática. A nossa mãe resolve atalhar, em minha defesa: - Tenha paciência. A minha filha encantou-se com as lendas de Tróia. Depois do que a Eduarda acabou de explicar, a pergunta para ela faz todo o sentido. A professora que agora sei chamar-se Maria Eduarda sorri, evitando ser tão peremptória quanto antes. Não que eu lho tenha pedido. Eu só quero saber a verdade. - Entre o apogeu minóico e o governo de Péricles em Atenas, houve dois grandes períodos: o micénico e o arcaico. A Guerra de Tróia pertence ao primeiro, Homero ao segundo. Vários séculos os separam. Ao que, qual estivesse perante um júri capaz de sentenciar a sua resposta, evita pronunciar-se com certezas Posso apenas especular. Enfim, os micénicos foram grandes imitadores dos minóicos, pelo menos do ponto de vista cultural. Mas daí a concluir a propósito da sociedade da época, é menos linear. Até porque ninguém sabe ao certo quando se deu a referida guerra ou se o poeta, no seu produto final, não misturou lendas de várias guerras ou catástrofes naturais das várias Tróias. Muito do que se conta é ambivalente e contém elementos de diferentes épocas, por isso... a hesitação soa a falso, ao acrescentar sem contemplações Eu não aprecio especialmente a Ilíada ou a Odisseia. Homero passa o tempo a glorificar os heróis que combatem junto às muralhas de Príamo e um conjunto de peripécias pelas quais Odisseu passou antes de regressar a casa (na Maria Galito 44

ilha de Ítaca). Mas deve ter visto a minha cara, pelo que se devotou a um sorriso mais diplomata Também é possível que não seja isenta nesta matéria. E virandose para mim, pisca o olho Gostarias de ter vivido nos tempos de Tróia? Respondo-lhe com sinceridade: - Agradeço todos os dias ter vindo ao mundo quando e onde nasci. Meia hora depois de aguentar em pé na fila para entrar no museu entramos finalmente. A nossa mãe fixa-se na estátua de Procne, embora a Leonor se mostre incapaz de entender porquê, pois os séculos mutilaram-lhe metade da cabeça, além das sérias deformações nos braços e pernas. - Que olhar desolado... diz a nossa mãe, observando a peça cuidadosamente. A maioria concorda. Até o casal de advogados parece petrificado, por mais que a fila de pessoas nos empurre para a frente. - O autor é Alcamedes, discípulo do próprio Fídias. Leio, ocultando a história da personagem retractada no mármore. Caminho no sentido da outra sala do museu. Leonor segue-me, pegando no panfleto para melhor acompanhar as obras que vai observando. O museu recolhe um conjunto exemplar de obras de grandes artistas gregos da antiguidade. Nele respira a História, numa das mais elegantes demonstrações do realismo humano. A Grécia adorava o corpo, insistindo em aperfeiçoar a forma de o moldar na pedra. E um dos mais brilhantes exemplos é o relevo na mármore que representa Nike, a deusa da vitória, a calçar uma sandália. Uma verdadeira preciosidade. - Quem foi o autor desta maravilha? Interroga a nossa mãe, fascinada. - Aqui não diz. Queixa-se a Leonor, revirando o panfleto. - Era certamente um grande escultor. Reforça a advogada, sorrindo. - É a peça mais bonita. Opina Joana. Solenemente. Também gosto. Mas talvez me desperte mais a curiosidade este simpático trabalho de 570 a.c., chamado Moschophoros, representando um homem a carregar um bezerro em cima dos ombros. O destino do doce animal é o sacrifício mas o duo tem uma cara tão harmoniosa, e os olhos do jovem parecem tão puros, que mais parecem ir os dois dar um inocente passeio pelos campos. Ou este meio corpo da Kore de Chios, do final do século VI a.c. Tal como a estátua de Moschophoros espelha leveza; é uma cara alegre, descomplexada. E o penteado é um rendilhado extraordinário, que lhe cai em múltiplas tranças. Num dos bustos masculinos de 500 a.c., as várias tonalidades de castanho da barba transmitem grande realismo através de uma imagem serena. E reconheço valor à pensativa Atena, com a sua cabeça apoiada no cabo da lança, uma mão na anca e um pé completamente no chão. Que problemas a preocuparão? Ao descer à cidade, a guia leva-nos numa visita aos locais mais significativos da Atenas moderna. Ali está o Estádio Panatinaicos na Avenida do imperador Constantino, onde em 1896 se realizaram os primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna. Depois, sempre dentro do autocarro, passamos pela mansão do actual Primeiro-ministro; onde não é o governante nem a casa que despertam a atenção, mas os guardas; ou melhor, aqueles dois homens que empunham uma arma enquanto vestem colete preto bordado à mão, uma saia muito curta, branca e de folhos, acompanhada de sapatos pretos com pompons. Maria Galito 45

- Vão dançar ballet hoje à noite? É a pergunta maldosa da Leonor. Bato-lhe com a mão no braço: - Não digas isso. É o fato tradicional deles. Seguem-se as praças Syntagmatou (Praça da Constituição, centro político da cidade) e a Omónia (Praça da Concórdia) onde foram edificados três belos edifícios do século XIX à luz do estilo clássico ateniense da era de Péricles. Sei que um deles é a Universidade e o outro a Biblioteca Nacional. Mas é no coração da Praça da Constituição que brilha um verdadeiro tratado! A estátua do corredor. Uma junção de peças horizontais, que parecem esvoaçantes; como se uma pessoa, ao correr desalmadamente depressa, se desintegrasse de peito aberto, ultrapassando as barreiras do corpo, da força de vontade, da luz, do pensamento. Encanta pelo arrojo; por ser totalmente diferente. Encantada, peço aos meus pais para lá passarmos esta tarde, depois de almoço. O pedido é aceite. Ao que tem início a ronda pelos hotéis da cidade. A guia consulta a lista e chama os nossos nomes, à medida que vamos chegando ao destino; relembrando que logo, à hora de jantar, voltaremos a sair todos juntos Somos deixados no hotel e o almoço é tomado num pequeno restaurante ali perto. A visita particular à cidade tem início por volta das duas da tarde. Ao contrário do que seria de esperar o calor é perfeitamente suportável. As ruas transversais estão desertas mas não é Domingo. Há muito lixo pelos cantos. As paredes decompõem os cartazes publicitários e a maior parte das lojas estão fechadas. Não sei porquê. Leonor recebe uma mensagem escrita no telemóvel, vindo logo ter comigo: - É o Rámon. Está com as irmãs e o pai numa esplanada na Praça Syntagmatou. Não era onde tu querias ir? Vamos lá ter. Vamos? Insiste, agarrando-se a mim. Resultado, sem contar aos nossos pais que quer voltar a ver Rámon, convence-os a seguir em frente, rumo à dita praça da Constituição, por eu ter manifestado interesse em observar melhor a estátua que me entusiasmara esta manhã. Enfim, nada que me surpreenda. Encontramos Rámon pouco depois, muito bem sentado com a família na esplanada de uma pequena mas bonita pastelaria. Saudamo-los. Eles fazem uma grande festa por nos ver. Enquanto os meus pais e as minhas irmãs arranjam cadeiras, afasto-me um pouco para apreciar a estátua que ilumina toda a praça. Enorme! Altíssima. Apesar de mais uma estátua do que uma pessoa, agora que estou perto ao contrário da ilusão que dava, enquanto caminhávamos pela avenida permaneço fascinada. Pelo movimento que incute. Qual lufada de ar fresco. O empregado de mesa já serve as bebidas entretanto foram pedidas. Sento-me, perguntando pela carta de gelados. As duas catalãs estão de dieta, tal como a Leonor, mas a Joana mandou vir um gelado que propõe dividir comigo. Aceito. Hoje em dia, não pode comer nada para não engordar. Meio mundo anda com a mania das dietas! E meio mundo a comer em excesso. Mas é quando Rámon diz à Leonor que não precisa preocupar-se com dietas, por já ser a mais bela entre as mulheres, que resolvo gracejar: - Vives para cá dos Pirenéus, mas tens parla pie de francês. E virando-me para a mana Não te deixes levar, Leonor, que ele diz isso a todas. E antes que Rámon tenha tempo de falar, acrescento, minando-lhe a resposta. Claro que a beleza Maria Galito 46

depende dos olhos que a vêem. E ele parece estar a ser muito sincero. Pisco o olho à Leonor. Rámon deixa-se rir. Vozes conhecidas irrompem à retaguarda. Volto a cabeça. É aquele senhor inglês com quem o nosso pai se deu tão bem durante a viagem a Rodes. Se a memória não me falha, estava com a mulher na Acrópole esta manhã. Chamava-se... como é que era mesmo? Bom, Dr. Finley e é médico acaba de se apresentar aos nossos amigos catalães. Senta-se a meu lado, com a mulher. São os dois muito ruivos. Vou a levar um pedaço de gelado à boca, quando o nosso pai se lembra de me aconselhar a praticar o meu inglês. Empalideço. O problema até nem é falar inglês, mas o que deverei dizer ao senhor, santo Deus? E ele parece ter tanta vontade de falar comigo, como nada. Engulo em seco. E deixo-me estar, sossegada, expectante. Perante a minha hesitação, Dr. Finley acaba por ser ele próprio a fazer as perguntas da praxe: como me chamo, o que quero ser quando for grande, se tenho gostado da viagem à Grécia. Pondero antes de responder. - I m Sancha 1. Começo por dizer. Mas o olhar foge-me para a mesa; para os copos, para as taças de gelado, para os guardanapos. Enrolo as mãos. Até que me decido. Erguendo a cabeça pergunto, moderada mas incisivamente, a sua opinião sobre o que de mais importante me lembrava ter lido no jornal, antes de visitarmos Santorini. Ao fazê-lo, embasbaco o Dr. Finley. O meu pai pisca-me o olho. - Sancha, my darling, you surprise me 2. Confessa, pronunciando Saxa, que é mais russo. I didn t know these subjects interested young girls like you 3. Finjo-me desentendida, mantendo o sorriso nos lábios: - Young girls? What do you mean? 4 e pedindo a boa pronúncia do meu nome And please, I m not Saxa but Sancha. Means holly in Latin and it s the name of both a Portuguese saint and a Portuguese heroine 5. Desperto um sorriso maroto ao meu pai pois eu soube dizer tudo com elegância mas firmeza de carácter. O próprio Dr. Finley não se aborrece: - Has character, your daughter 6. Comenta, ainda mais surpreendido. - Yes, I m very pride of her 7. Sorri o pai, em resposta. As palavras que me disse em Santorini, fazem agora todo o sentido. Dr. Finley não se dispõe a cortar a harmonia familiar. Pelo contrário, resolve colaborar: - Well, than let s talk some more 8. - Thank you. I must practice my English 9. Agradeço, também com um sorriso Maybe I can teach Dr. Finley some words in Portuguese, in return? 10 1 «Chamo-me Sancha.» 2 «Sancha, minha querida, surpreendes-me.» 3 «Não sabia que estes assuntos interessavam a jovenzinhas como tu». 4 «A jovenzinhas? Como assim? 5 «E por favor, não sou Saxa mas Sancha. Significa sagrada em Latim e é o nome de uma santa portuguesa e de uma heroína portuguesa.» 6 «Tem carácter, a sua filha.» 7 «Sim, tenho muito orgulho nela.» 8 «Bom, então vamos falar um pouco mais.» 9 «Obrigada, preciso praticar o meu inglês.» Maria Galito 47

Solta uma gargalhada o que não é de todo comum ver ingleses fazer. E colocando a mão no braço do meu pai: - You know, old chap, you have a little devil here 11. Regressamos os cinco ao hotel. Num largo, com uma estátua no meio, um mar de pombos debica bagos do chão. A nossa mãe adora pássaros. Aproxima-se para que pousem nos seus ombros. Um pombo menos atrapalhado aproveita inclusivamente para aterrar na sua cabeça. Aproveito para fotografar o momento. Joana quase os espanta todos, quando vai ter com a mãe. Desolada, começa a andar atrás deles com um rebuçado, a única coisa doce que encontrou no bolso. - Eles não comem isso. Diz-lhe a Leonor, sem que a outra faça caso. Num momento de relaxamento, a nossa mãe resolve fazer-se à fotografia, andando um pouco mais depressa entre os pombos que levantam voo, esboçando o seu belo sorriso, quando o nosso pai a recebe nos braços com um beijo na testa. Não teve nada de piegas, foi simplesmente bonito. E poderei recordá-lo, de hoje em diante, sempre que quiser. Depois de umas tantas ruas, um ruído preenche-nos os ouvidos. Atrás de nós formam-se magotes de gente; pessoal irado e revoltado, com punhos cerrados no ar, ostentando cartazes vermelhos e brancos com gordas letras gregas, numa manifestação de discórdia contra o governo. Desfilam, curiosamente, pela Omónia acima. A nossa mãe preocupa-se: - Vamos embora, meninas, não queremos problemas. Os trabalhadores ocupam rapidamente a praça, levantando bem alto palavras de ordem. Gritam as suas razões, demonstram textualmente o seu desagravo contra o governo. Muitos são os braços esticados no ar e magotes de gente parecem não parar de chegar, de marchar, abraçados uns aos outros. O corpo policial surge de um canto e carros da polícia começam a aparecer de tudo quanto é lado, enquanto os nossos pais nos levam rapidamente para o hotel. Subimos pelo elevador, combinando encontrar-nos daqui a hora e meia, pois o autocarro virá buscar-nos. E ainda temos de tomar banho. Enquanto elas combinam com a mãe, atravesso o nosso quarto, abro a porta e avanço para a varanda, espreitando os movimentos na rua lá em baixo. Leonor veio atrás de mim: - Achas que vai haver violência? Pergunta, de olhos em riste. Lá em baixo, cada qual clama para seu lado. O coro de vozes é poderoso, a revolta angustiada. Do outro lado, os polícias constroem um muro para travar o avanço dos enfurecidos. Chegam reforços de ambos os lados. Lá vêm carros apinhados de defesas. Os que atacam surgem a pé. - Eles não estão organizados. Declaro, apercebendo-me da debilidade do ataque que conquista em barulho mas peca em estratégia. Não sei quem tem razão, mas os trabalhadores não demorarão a voltar para casa. E não haverá feridos. Vais ver. Bem dito bem feito. Em dez minutos a praça fica deserta. 10 «Talvez eu possa, em troca, ensinar-lhe umas palavras em português.» 11 «Sabe, velho amigo, tem aqui um pequeno diabo.» Maria Galito 48