A MATERNIDADE DA IGREJA Elizangela Horosina Camargo 1 Porque falar da Igreja como mãe? Hoje este tema tem alguma relevância? Num contexto em que cresce o individualismo, o consumismo, o relativismo e a secularidade em que a maternidade da Igreja pode ser útil? A perda de sentido da vida, e, por conseguinte o crescimento da violência, do stress, das doenças e até mesmo do suicídio, não será um sinal de uma humanidade que evolui tecnicamente, mas nem tanto humanamente? Por outro lado observamos muitos sinais das dádivas de Deus, como a vivência da fé, do respeito, da inclusão, do diálogo, da busca de intimidade com Deus, da expressão do bem, da honestidade, da solidariedade e caridade. Não terá a Igreja nenhuma contribuição neste jeito bom de viver? Certos de que o amor mais desejado, o amor que mais se sente falta ou que melhor nos gratifica é o amor de mãe, como lembra o profeta Isaías: Mas pode a mãe se esquecer, ou deixar de ter amor pelo filho de suas entranhas? Ainda que ela esqueça, eu não me esqueceria de ti (Is 49,14-15]) 2 É nesta certeza, que a Constituição Dogmática Lumen Gentium ao citar as várias imagens da Igreja na Bíblia, afirma que a Igreja é chamada também Jerusalém celeste e nossa mãe (Gl 4,26; cf. Ap 12,17). 3 Pié-Ninot (1998, p.14) relembra que esta imagem da Igreja surgiu nos primeiros séculos, onde a eclesiologia era mais vivida, experienciada do que sistematizada. No centro dessa eclesiologia ante litteram está a realidade da comunhão entendida como vínculo entre bispos e fiéis, bispos e fiéis entre si, que se realiza e se manifesta de forma preeminente na celebração-comunhão eucarística. A partir daí dá-se a consciência muito viva da maternidade da 1 Aluna do curso de teologia do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória 2 BÍBLIA Sagrada. Edição Pastoral. 24. Imp. São Paulo: Paulus, 1998 3 Constituição Dogmática Lumen Gentium [n. 6]
Igreja, a "Ecclesia Mater", como portadora da salvação e geradora do homem novo graças ao batismo 4. Em Santo Agostinho, nos lembra Ratzinger que há dois conceitos fundamentais da espiritualidade eclesial é o de Igreja Corpus Christi e de Mater Ecclesia. O conceito de Mater Ecclesia explorado com muito ardor por Agostinho, contou inclusive com a influência de sua mãe 5. Sua espiritualidade cristã confirma que só é possível ir até o Pai se unir à mãe, que é a Igreja de Jesus Cristo. Esta tem uma missão bem definida, cuja raiz está sua maternidade, geradora de vida nova aos filhos concebidos do Espírito Santo por meio da imitação a caridade, fidelidade a vontade divina e orientada pela palavra de Deus recebida na fé. Como mãe ela é samaritana, acolhedora, compassiva e pobre. Barreiro numa síntese do pensamento de H. De Lubac, destaca que: A Igreja é a matriz, a placenta vital onde é gerada, nasce, cresce e se torna fecunda nossa fé cristã. Esse é o sentido profundo da expressão patrística Ecclesia Mater. Podemos e devemos amar a Igreja, crer e confiar na Igreja, porque ela é nossa mãe. Como mãe, gera-nos para a vida da comunhão com Deus e entre todos os seus filhos nas águas vivas do batismo, incorporando-nos ao Corpo de Cristo. Como mãe, nos alimenta com o pão da vida eterna: com o pão da Palavra de Deus que ela ouviu e acolheu na obediência da fé, que ela conserva como o maior tesouro que lhe foi confiado, e que transmite aos seus filhos ao longo dos séculos com insubornável fidelidade de mãe. E com o pão da Eucaristia, que nos faz ser mais profundamente aquilo que já somos: Corpo de Cristo, incorporados a Cristo. Como mãe, perdoa os nossos 4 PIÉ-NINOT. Salvador. Introdução à Eclesiologia. Edições Loyola. São Paulo. 1998 [p. 14] 5 RATZINGER. Joseph. O novo povo de Deus. Trad. Clemente Raphael Mahi. São Paulo: Paulinas. 1974. p. 48-49.
pecados no sacramento da penitência, reconciliando-nos com Deus através da reconciliação com os irmãos. 6 Podemos dizer que a maternidade da Igreja gera a unidade, a santidade, a universalidade, e a apostolicidade entre seus filhos, a boa mãe há de sempre cuidar e acompanhar os passos e caminhos deste mundo até chegar à casa do Pai. Ela é fecunda e fecundada, pois como afirma São Paulo, a Igreja transmite aquilo que recebeu (1Cor 15,13). A Igreja pode ser servidora e dispensadora da multiforme graça de Deus porque ela mesma foi previamente agraciada (1Pd 4,10). Seu amor materno multiplica-se e busca alcançar no tempo e espaço, os irmãos de todas as nações, povos, raças e línguas, priorizando dentre estes os mais necessitados: os afastados e os pecadores; os pobres, os doentes, os abandonados, os marginalizados para assim cuidar destes com imenso carinho. Nos seus vinte séculos de história, não se encontra um único santo que não tenha feito, à sua maneira, na docilidade ao Espírito de Jesus, a opção preferencial pelos pobres e pelos marginalizados no seguimento de Jesus 7. De uma maneira poética, De Lubac confessa: A Igreja é minha mãe, sim, a Igreja, toda a Igreja, a Igreja das gerações passadas que transmitiu sua vida, seus ensinamentos, seus exemplos, seus costumes, seu amor e a Igreja de hoje; toda a Igreja, não apenas a Igreja oficial, ou a Igreja docente, ou, como se diz, a Igreja hierárquica, aquela que detém as chaves que o Senhor lhe confiou, mas, mais extensiva e mais simplesmente, a Igreja vivente : aquela que trabalha e reza, que age e que se recolhe, que se recorda e procura. A Igreja que crê, que espera, que ama, a Igreja que, nas inúmeras situações da existência, tece vínculos visíveis e invisíveis entre seus membros; a Igreja dos humildes parentes de Cristo: [...] que se recruta em todos os lugares, subsiste mesmo nas épocas de decadência, que sublima incessantemente a inclinação de nossa pesada natureza, que assim testemunham, no silêncio, que o Evangelho é sempre fecundo e que o reino já esta entre nós. 8 6 BARREIRO. A. Povo Santo E Pecador A Igreja questionada e acreditada. Teologia e Evangelização. Editora Loyola. São Paulo. 1994. [pp. 188] 7 BARREIRO. A. Povo Santo E Pecador A Igreja questionada e acreditada. Teologia e Evangelização. Editora Loyola. São Paulo. 1994. [pp. 189-190] 8 LUBAC. De Henri. Paradoxo e Mistério da Igreja. Tradução de Ângelo Busnardo. Editora Herder. São Paulo. 1969. [pp. 13-14]
Por isso, De Lubac reconhece que esta é a melhor definição da Igreja porque recolhe ao ser humano tudo o que ele é e que há nele, de modo que às vezes nos falte à compreensão do que ela nos diz, tornando nossos ouvidos surdos às suas observações zelosas. Assim conclama: Felizes os que aprenderam da própria mãe, desde a infância, a considerar a Igreja como mãe! Felizes, mais felizes aqueles que a experiência, seja qual for sua natureza, estiver confirmada nesse primeiro olhar! Felizes os que um dia foram tocados, e que continuam a sê-lo cada vez mais, pela inconcebível riqueza da vida comunicada por essa mãe! 9 Santo Irineu exaltava a riqueza da salvação trazida por Jesus Cristo, a qual Ele quis confiar à participação mediadora da Igreja gerando em nós o Cristo, nos auxiliando no discipulado missionário na configuração de nossa vida a vida de Cristo. A verdadeira mãe busca sempre o melhor para os filhos, por isso não podia a Igreja mãe nos oferecer algo melhor que Jesus Cristo. Uma mãe por mais santa que seja, possui também seus limites, com a Igreja mãe não é diferente, sua ação é visível na ação dos filhos que por vezes percorre caminhos contrários à vida, obedientes às vossas vontades e não à de Deus, desassemelhando-se de Cristo e fechando-se para a ação do Espírito Santo desfiguram o rosto da mãe Igreja. Muitos filhos por não compreenderem esta ambiguidade abandonam-na, esquecendo tudo aquilo que dela recebeu e os dons que ela ainda sim conserva, enrijecem a partir de uma visão reduzida ao aspecto negativo, criticando-a de maneira ferrenha, mas sem se dispor a fazer transparecer nela as marcas de Cristo: vida de oração, acolhimento, diálogo, escuta, compaixão, ternura, perdão, correção fraterna, humildade, serviço, gratuidade, despojamento, doação, confiança, caridade..., não resta dúvida que a conversão é um caminho que deve ser abraçado e percorrido cotidianamente por todos os seus filhos, só assim torna possível através do 9 LUBAC. De Henri. Paradoxo e Mistério da Igreja. Tradução de Ângelo Busnardo. Editora Herder. São Paulo. 1969. [p. 15]
amor descobrir suas forças ocultas e suas atividades silenciosas, participando da transfiguração de um rosto envelhecido para uma constante juventude. Segundo o Catecismo da Igreja Católica onde estão os pecados, aí está a multiplicidade, aí o cisma, aí as controvérsias. Onde, porém, a virtude, aí a unidade, aí a comunhão, em força da qual os crentes eram um só coração e uma só alma. 10 A história não é prova dessa realidade? Não foi nos momentos mais sombrios, que surgiram as luzes? Quantos homens e mulheres, crianças, jovens e idosos se deixaram conduzir pela Trindade Santa e revelaram a maternidade da Igreja nos ambientes mais longínquos territorialmente, materialmente, espiritualmente e afetivamente? Como a Igreja mãe testemunhou nos momentos mais trágicos da humanidade o rosto amoroso de Cristo, criando vínculos que suscitaram vidas! Creio ser este o conselho de nossa mãe Igreja, quando vivenciamos uma mudança de época: pedir e confiar na graça divina, buscar a comunhão, criarmos vínculos, sermos misericordiosos e caridosos, sairmos ao encontro dos extraviados, dos perdidos, fortalecer os fracos, cuidar dos enfermos, reunir os que estão dispersos, estar presente e testemunhar nossa fé cristã em todos os espaços: político, econômico, social, cultural e religioso. Aprender com ela mãe e mestra, a amar a Deus e o próximo, a nos relacionarmos fraternalmente, abrindo-se ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso, sermos obedientes à vontade divina, solidários sabendo doar do pouco que temos e não medir esforços para tornar conhecido a pessoa de Jesus Cristo nos confins da terra, conforme seu mandato: Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. Eis que estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos! (Mt 28, 19-20) 11. 10 IGREJA Católica. Catecismo da Igreja Católica. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 1993 11 BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Tradução de Ivo Storniolo et al. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1976
Por meio da Constituição Pastoral Gaudium et Spes ela exorta a superarmos, neste espírito familiar de filhos de Deus, todas as desavenças entre nações e raças e a consolidar do interior todas as legitimas associações humanas [...], a purificação e renovação, para que o sinal de Cristo brilhe mais claramente sobre a face da Igreja. 12 Concluo que somente um cristianismo autêntico é uma força de salvação para o mundo, como menciona De Lubac a partir do recado de Santo Agostinho: Não é a maior ciência, nem a sabedoria mais profunda que tem razão: mas é a maior obediência, a mais profunda humildade. 13 E neste sentido não podemos deixar de reconhecer em Maria mãe de Jesus, mãe e filha da Igreja conforme o Papa Paulo VI nos transmiti: Maria é a mãe da Igreja porque gerou aquele que é a Cabeça da mesma, é filha da Igreja porque ela é um dos seus membros, o mais eminente dos membros. 14, ser ela o protótipo da maternidade da Igreja, segundo São Tertuliano e Metódio a Igreja é a verdadeira mãe dos viventes, saída do lado do Cristo morto na cruz como a primeira Eva tinha saído do lado de Adão adormecido.15 Como mãe a Igreja não preocupa apenas com o futuro dos filhos, não se limita a educar os seus em vista da segunda vinda de Cristo; ela anuncia desde já que sua figura deve imprimir-se sobre toda a criação, que se desenvolve um movimento que deve atingir os novos céus e a nova terra. 16 Daí a urgência em conhecer, apreender e viver a maternidade de nossa Igreja mãe. Que a Virgem Maria modelo de maternidade ajude-nos membros filiais da santa Mãe Igreja a corresponder sempre mais com sua missão samaritana, irradiando sua ternura, compaixão e misericórdia de modo especial àqueles que mais necessitam. 12 CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudim et Spes. Petrópolis: Vozes. 197. 13 DE LUBAC, Henri. Paradoxo e Mistério da Igreja. Trad. Ângelo Busnardo. São Paulo:Herder,. 1969. p 23 14 idem p. 96 15 idem p. 96-92 16 idem p. 172
REFERÊNCIA BARREIRO. A. Povo santo e pecador: a Igreja questionada e acreditada. Teologia e Evangelização. Editora Loyola. São Paulo. 1994 BÍBLIA Sagrada. Edição Pastoral. 24. imp. São Paulo: Paulus, 1998. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Tradução de Ivo Storniolo et al. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1976. CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium. Petrópolis: Vozes. 1971. CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudim et Spes. Petrópolis: Vozes. 1971 DE LUBAC. D. H. Paradoxo e mistério da Igreja. Trad. de Ângelo Busnardo. São Paulo:. Herder, 1969. IGREJA Católica. Catecismo da Igreja Católica. 5. Ed. Petrópolis: Vozes, 1993. PIÉ-NINOT. Salvador. Introdução à eclesiologia. São Paulo: Loyola, 1998. RATZINGER. Joseph. O novo povo de Deus. Trad. de Clemente Raphael Mahi. São Paulo: Paulinas, 1974.