Auto da Alma. Gil Vicente. Biblioteca Digital. Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA



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Transcrição:

BD Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA

pág. 2 de 29 Introdução Este Auto presente foi feito à muito devota Rainha D. Leonor e representado ao mui poderoso e nobre Rei Dom Emanuel, seu irmão, por seu mandado, na cidade de Lisboa, nos Paços da Ribeira, em a noite de Endoenças 1. Era do Senhor de 1518. Argumento Assi como foi cousa muito necessária haver nos caminhos estalagens, pera repouso e refeição dos cansados caminhantes, assi foi cousa conveniente que nesta caminhante vida houvesse uma estalajadeira, pera refeição e descanso das almas que vão caminhantes pera a eternal morada de Deus. Esta estalajadeira das almas é a Madre Santa Igreja, a mesa é o altar, os manjares as insígnias da Paixão. E desta perfiguração trata a obra seguinte. Figuras: Alma Anjo Custódio Igreja Santo Agostinho Santo Ambrósio S. Jerónimo S. Tomás Dous Diabos 1 Quinta-Feira Santa

pág. 3 de 29 Está posta uma mesa com uma cadeira. Vem a Madre Santa Igreja com seus quatro doutores: S. Tomás, S. Jerónimo, Santo Ambrósio e Santo Agostinho. E diz Agostinho: Ago. Necessário foi, amigos, que nesta triste carreira desta vida, pera os mui p rigosos p rigos 5 dos imigos, houvesse alguma maneira de guarida 2. Porque a humana transitória natureza vai cansada 10 em várias calmas 3 ; nesta carreira da glória meritória, foi necessário pousada pera as almas. 15 Pousada com mantimentos, mesa posta em clara luz, sempre esperando 2 protecção, refúgio 3 lutas

4 com dobrados mantimentos dos tormentos 20 que o Filho de Deus, na Cruz, comprou, penando. Sua morte foi avença 4, dando, por dar-nos paraíso, a sua vida 25 apreçada 5, sem detença, por sentença, julgada a paga em proviso 6, e recebida. A Sua mortal empresa 30 foi santa estalajadeira Igreja Madre: consolar, à sua despesa, nesta mesa, qualquer alma caminheira, 35 com o Padre e o Anjo Custódio aio. Alma que lhe é encomendada, se enfraquece e lhe vai tomando raio 40 de desmaio, se chegando a esta pousada, se guarece. Vem o Anjo Custódio, com a Alma, e diz: Anjo Alma humana, formada de nenhũa cousa feita, 45 mui preciosa, de corrupção separada, e esmaltada naquela frágoa 7 perfeita, 4 acordada, ajustada 5 avaliada 6 antecipadamente 7 forja

5 gloriosa! 50 Planta neste vale posta pera dar celestes flores olorosas, e pera serdes tresposta em a alta costa, 55 onde se criam primores mais que rosas! Planta sois e caminheira, que ainda que estais, vos is donde viestes. 60 Vossa pátria verdadeira é ser herdeira da glória que conseguis: andai prestes. Alma bem-aventurada, 65 dos anjos tanto querida, não durmais! Um ponto não esteis parada, que a jornada muito em breve é fenecida 8, 70 se atentais. Alma Anjo que sois minha guarda, olhai por minha fraqueza terreal! de toda a parte haja resguarda, 75 que não arda a minha preciosa riqueza principal. Cercai-me sempre ò redor, porque vou mui temerosa 80 de contenda. Ó precioso defensor, meu favor! Vossa espada lumiosa me defenda! 8 terminada

6 85 Tende sempre mão em mim, porque hei medo de empeçar 9, e de cair. Anjo Pera isso sam e a isso vim; mas enfim, 90 cumpre-vos de me ajudar a resistir. Não vos ocupem vaidades, riquezas, nem seus debates. Olhai por vós; 95 que pompas, honras, herdades e vaidades, são embates e combates pera vós. Vosso livre alvedrio 10, 100 isento, forro 11, poderoso, vos é dado polo divinal poderio e senhorio, que possais fazer glorioso 105 vosso estado. Deu-vos livre entendimento, e vontade libertada e a memória, que tenhais em vosso tento 110 fundamento, que sois por Ele criada pera a glória. E vendo Deus que o metal em que vos pôs a estilar, 115 pera merecer, que era muito fraco e mortal, e, por tal, 9 tropeçar 10 arbítrio 11 livre

7 me manda a vos ajudar e defender. 120 Andemos a estrada nossa; olhai: não torneis atrás, que o imigo à vossa vida gloriosa porá grosa 12, 125 Não creiais a Satanás, vosso perigo! Continuai ter o cuidado no fim de vossa jornada, e a memória, 130 que o espírito atalaiado 13 do pecado caminha sem temer nada pera a Glória. E nos laços infernais, 135 e nas redes de tristura tenebrosas da carreira, que passais, não caiais: siga vossa fermosura 140 as gloriosas. Adianta-se o Anjo, e vem o Diabo a ela e diz: Dia. Tão depressa, ó delicada, alva pomba, pera onde is? Quem vos engana, e vos leva tão cansada 145 por estrada, que somente não sentis se sois humana? Não cureis de vos matar, que ainda estais em idade 12 porá dificuldades 13 prevenido, precavido

8 150 de crecer. Tempo há i pera folgar e caminhar. Vivei à vossa vontade e havei prazer. 155 Gozai, gozai dos bens da terra, Procurai por senhorios e haveres. Quem da vida vos desterra à triste serra? 160 Quem vos fala em desvarios por prazeres? Esta vida é descanso, doce e manso, não cureis doutro paraíso. 165 Quem vos põe em vosso siso outro remanso 14? Alma Não me detenhais aqui, leixai-me ir, que em al me fundo. Dia. Oh! Descansai neste mundo 170 que todos fazem assi: Não são em balde os haveres. não são em balde os deleites, e fortunas; não são debalde os prazeres 175 e comeres: tudo são puros afeites das criaturas: Pera os homens se criaram. Dai folga à vossa passagem 180 d hoje a mais: descansai, pois descansaram os que passaram por esta mesma romagem 14 descanso, felicidade

9 que levais. 185 O que a vontade quiser, quanto o corpo desejar, tudo se faça. Zombai de quem vos quiser reprender, 190 querendo-vos marteirar 15 tão de graça. Tornara-me, se a vós fora. Is tão triste, atribulada, que é tormenta. 195 Senhora, vós sois senhora emperadora, não deveis a ninguém nada. Sede isenta. Anjo Oh! andai; quem vos detém? 200 Como vindes pera a Glória devagar! Ó meu Deus! Ó sumo bem! Já ninguém não se preza da vitória 205 em se salvar! Já cansais, alma preciosa? Tão asinha desmaiais? Sede esforçada! Oh! Como viríeis trigosa 16 210 e desejosa, se vísseis quanto ganhais nesta jornada! Caminhemos, caminhemos. Esforçai ora, Alma santa, 215 esclarecida! 15 martirizar 16 desembaraçada

10 Adianta-se o Anjo, e torna Satanás: Dia. Que vaidades e que extremos tão supremos! Pera que é essa pressa tanta? tende vida. 220 Is muito desautorizada, descalça, pobre, perdida, de remate 17 : não levais de vosso nada. Amargurada, 225 assi passais esta vida em disparate. Vesti ora este brial 18 ; metei o braço por aqui. Ora esperai. 230 Oh! Como vem tão real! Isto tal me parece bem a mi: ora andai. Uns chapins haveis mister 235 de Valença: ei-los aqui. Agora estais vós mulher de parecer. Ponde os braços presumptuosos: isso si! 240 Passeai-vos mui pomposa, daqui pera ali, e de lá pera cá, e fantasiai. Agora estais vós fermosa como a rosa; 245 tudo vos mui bem está. Descansai. 17 em suma 18 vestido comprido de seda

11 Torna o Anjo à Alma, dizendo: Anjo Alma Que andais aqui fazendo? Faço o que vejo fazer polo mundo. 250 Anjo Ó Alma, is-vos perdendo! Correndo vos is meter no profundo! Quanto caminhais avante, tanto vos tornais atrás 255 e através. Tomastes, ante com ante 19 por mercante, o cossairo Satanás, porque quereis. 260 Oh! caminhai com cuidado, que a Virgem gloriosa vos espera. Deixais vosso principado deserdado! 265 Enjeitais a glória vossa e pátria vera! Deixai esses chapins ora, e esses rabos tão sobejos, que is carregada; 270 não vos tome a morte agora tão senhora, nem sejais, com tais desejos, sepultada. Andai! dai-me cá essa mão! 275 Alma Andai vós, que eu irei, quanto puder. Adianta-se o Anjo, e torna o Diabo: Dia. Todas as cousas com razão 19 precipitadamente

12 têm sazão 20 Senhora, eu vos direi 280 meu parecer: Há i tempo de folgar, e idade de crecer; e outra idade de mandar e triunfar, 285 e apanhar e adquirir prosperidade a que puder. Ainda é cedo pera a morte; tempo há-de arrepender, 290 e ir ao Céu. Ponde-vos à for da corte 21 ; desta sorte viva vosso parecer, que tal naceu. 295 O ouro pera que é, e as pedras preciosas, e brocados? E as sedas pera quê? Tende por fé, 300 que pera as almas mais ditosas foram dados. Vedes aqui um colar d ouro, mui bem esmaltado, e dez anéis. 305 Agora estais vós pera casar e namorar. Neste espelho vos tereis, e sabereis que não vos hei-de enganar. 310 E poreis estes pendentes 22, 20 ocasião própria 21 à moda da corte 22 brincos

13 em cada orelha seu. Isso si! Que as pessoas diligentes são prudentes. 315 Agora vos digo eu que vou contente daqui. Alma Oh! Como estou preciosa, tão dina pera servir. E santa pera adorar! 320 Anjo Ó Alma despiedosa perfiosa 23! Quem vos devesse fugir, mais que guardar! Pondes terra sobre terra, 325 que esses ouros terra são. Ó Senhor, porque permites tal guerra, que desterra ao reino da confusão 330 o teu lavor? Não íeis mais despejada, e mais livre da primeira pera andar? Agora estais carregada 335 e embaraçada com cousas que, à derradeira 24, hão-de ficar. Tudo isso se descarrega ao porto da sepultura. 340 Alma santa, quem vos cega, vos carrega dessa vã desaventura? Alma Isto não me pesa nada, 23 teimosa 24 à hora da morte

14 mas a fraca natureza 345 me embaraça. Já não posso dar passada de cansada: tanta é minha fraqueza, e tão sem graça! 350 Senhor, ide-vos embora, que remédio em mim não sento, já estou tal... Anjo Sequer dai dous passos ora, até onde mora 355 a que tem o mantimento celestial. Ireis ali repousar, comereis alguns bocados confortosos; 360 porque a hóspeda é sem par em agasalhar os que vêm atribulados e chorosos. Alma É longe? Anjo Aqui mui perto, 365 Esforçai, não desmaieis! E andemos, qu ali há todo concerto mui certo: quantas cousas querereis 370 tudo tendes. A hóspeda tem graça tanta, far-vos-á tantos favores! Alma Quem é ela? Anjo É a Madre Igreja Santa, 375 e os seus santos Doutores. I com ela. Ireis d'i mui despejada 25, 25 pura

15 cheia do Spírito Santo, e mui fermosa. 380 Ó Alma, sede esforçada! Outra passada, que não tendes de andar tanto a ser esposa. Dia. Esperai, onde vos is? 385 Essa pressa tão sobeja é já pequice 26. Como! Vós, que presumis, consentis continuardes a igreja, 390 sem velhice? Dai-vos, dai-vos a prazer, que muitas horas há nos anos que lá vêm. Na hora que a morte vier, 395 como se quer, se perdoam quantos danos a alma tem. Olhai por vossa fazenda 27 tendes umas escrituras 400 de uns casais, de que perdeis grande renda. É contenda, que leixaram às escuras vossos pais; 405 é demanda mui ligeira, litígios que são vencidos em um riso. Citai as partes terça-feira, de maneira 410 como não fiquem perdidos, e havei siso. 26 parvoíce 27 bens

16 Alma Cal'-te por amor de Deus! leixa-me, não me persigas! Bem abasta 415 estorvares os heréus 28 dos altos céus, que a vida em tuas brigas se me gasta. Leixa-me remediar 420 o que tu, cruel, danaste sem vergonha, que não me posso abalar, nem chegar ao lugar onde gaste 425 esta peçonha. Chega a Alma diante da Igreja. Anjo Vedes aqui a pousada verdadeira e mui segura a quem quer vida. Igrej. Oh! Como vindes cansada 430 e carregada! Alma Venho por minha ventura, amortecida 29, Igrej. Quem sois? Pera onde andais? Alma Não sei pera onde vou; 435 sou selvagem, sou uma alma que pecou culpas mortais contra o Deus que me criou à Sua imagem 440 Sou a triste, sem ventura, criada resplandecente e preciosa, angélica em fermosura, 28 herdeiros 29 desfalecida

17 e per natura, 445 como raio reluzente luminosa. E por minha triste sorte e diabólicas maldades violentas, 450 estou mais morta que a morte sem deporte 30, carregada de vaidades peçonhentas. Sou a triste, sem mezinha 31, 455 pecadora obstinada, perfiosa; pola triste culpa minha, mui mesquinha, a todo o mal inclinada 460 e deleitosa. Desterrei da minha mente os meus perfeitos arreios naturais; não me prezei de prudente, 465 mas contente me gozei com os trajos feios mundanais. Cada passo me perdi; em lugar de merecer, 470 eu sou culpada. Havei piedade de mi, que não me vi; perdi meu inocente ser, e sou danada. 475 E, por mais graveza 32, sento não poder-me arrepender 30 sem alegria 31 sem remédio 32 para cúmulo

18 quanto queria; que meu triste pensamento, sendo isento, 480 não me quer obedecer, como soía 33. Socorrei, hóspeda senhora, que a mão de Satanás me tocou, 485 e sou já de mim tão fora, que agora não sei se avante, se atrás, nem como vou. Consolai minha fraqueza 490 com sagrada iguaria, que pereço, por vossa santa nobreza, que é franqueza; porque o que eu merecia 495 bem conheço. Conheço-me por culpada, e digo diante vós minha culpa. Senhora, quero pousada, 500 dai passada, pois que padeceu por nós quem nos desculpa. Mandai-me ora agasalhar, capa dos desamparados, 505 Igreja Madre. Igrej. Vinde-vos aqui assentar mui devagar, que os manjares são guisados por Deus Padre. 510 Santo Agostinho doutor, 33 - costumava

19 Jerónimo, Ambrósio, São Tomás, meus pilares, servi aqui por meu amor, o qual milhor. 515 E tu, Alma, gostarás meus manjares. Ide à santa cozinha, tornemos esta alma em si, por que mereça 520 de chegar onde caminha, e se detinha. Pois que Deus a trouxe aqui, não pereça. Enquanto estas cousas passam, Satanás passeia, fazendo muitas vascas 34, e vem outro (Diabo) e diz: 2. D. Como andas dasassossegado! 525 1. D. Arço 35 em fogo de pesar. 2. D. Que houveste? 1. D. Ando tão desatinado, de enganado, que não posso repousar 530 que me preste. Tinha uma alma enganada, já quase pera infernal, mui acesa. 2. D. E quem t a levou forçada? 535 1. D. O da espada. 2. D. Já m ele fez outra tal burla como essa. Tinha outra alma já vencida, em ponto de se enforcar 540 de desesperada, 34 caretas, sinais de indignação 35 ardo

20 a nós toda oferecida, e eu prestes pera a levar arrastada; e ele fê-la chorar tanto, 545 que as lágrimas corriam pola terra. Blasfemei entonces tanto, que meus gritos retiniam pola serra. 550 Mas faço conta que perdi, outro dia ganharei, e ganharemos 1. D. Não digo eu, irmão, assi: mas a esta tornarei, 555 e veremos. Torná-la-ei a afagar, despois que ela sair fora da Igreja e começar de caminhar; 560 hei-de apalpar se vencerão ainda agora esta peleja. Entra a Alma, com o Anjo. Alma Vós não me desempareis, Senhor meu Anjo Custódio! 565 Ó incréus 36 imigos, que me quereis, que já sou fora do ódio de meu Deus? Leixai-me já, tentadores, 570 neste convite prezado do Senhor, guisado aos pecadores com as dores de Cristo crucificado, 36 incrédulos

21 575 redentor. Estas cousas, estando a Alma assentada à mesa, e o Anjo junto com ela, em pé, vêm os Doutores com quatro bacios de cozinha cobertos, cantando: Vexilla regis prodeunt 37. E, postos na mesa, diz Santo Agostinho: Ago. Vós, senhora convidada, nesta ceia soberana celestial, haveis mister ser apartada 580 e transportada de toda a cousa mundana, terreal. Cerrai os olhos corporais, deitai ferros 38 aos danados 585 apetitos, caminheiros infernais; pois buscais os caminhos bem guiados dos contritos. 590 Igrej. Benzei a mesa vós, senhor, e, pera consolação da convidada, seja a oração de dor sobre o tenor 595 da gloriosa Paixão consagrada. E vós, Alma, rezareis, contemplando as vivas dores da Senhora; 600 Vós outros respondereis, pois que fostes rogadores até agora. 37 As bandeiras do rei avançam (Hino da Paixão e dos Ramos) 38 domina

22 Oração pera Santo Agostinho. Alto Deus Maravilhoso, que o mundo visitaste 605 em carne humana, neste vale temeroso e lacrimoso. Tua glória nos mostraste soberana. 610 E Teu Filho delicado, mimoso da Divindade e Natureza, per todas partes chagado, e mui sangrado, 615 pela nossa infirmidade e vil fraqueza! Ó Emperador celeste, Deus alto, mui poderoso, essencial, 620 que polo homem que fizeste, ofereceste o teu estado glorioso a ser mortal! E Tua Filha, Madre, Esposa, 625 horta nobre, frol dos céus, Virgem Maria, mansa pomba gloriosa; oh quão chorosa quando o seu Deus padecia! 630 Ó lágrimas preciosas, do Virginal Coração estiladas, correntes das dores vossas, com os olhos da perfeição 635 derramadas! Quem uma só pudera ver, vira claramente nela

23 aquela dor, aquela pena e padecer, 640 com que choráveis, donzela, vosso amor. E quando vós, amortecida, se lágrimas vos faltavam, não faltava 645 a vosso filho e vossa vida chorar as que lhe ficaram de quando orava. Porque muito mais sentia polos seus padecimentos 650 ver-vos tal; mais que quanto padecia, lhe doía, e dobrava seus tormentos, vosso mal. 655 Se se pudesse dizer, se se pudesse rezar tanta dor; Se se pudesse fazer podermos ver 660 qual estáveis ao cravar do Redentor! Ó fermosa face bela, ó resplandor divinal, que sentistes, 665 quando a cruz se pôs à vela, e posto nela o filho celestial que paristes? Vendo por cima da gente 670 assomar vosso conforto tão chagado, cravado tão cruelmente, e vós presente,

24 vendo-vos ser mãe do morto, 675 e justiçado! Ó Rainha delicada, santidade escurecida, quem não chora em ver morta e debruçada 680 a avogada, a força da nossa vida? Amb. Isto chorou Hieremias sobre o monte de Sião, há já dias; 685 porque sentiu que o Messias era nossa redenção. E chorava a sem-ventura, triste de Jerusalém homecida, 690 matando, contra natura, seu Deus nascido em Belém nesta vida. Jeró. Quem vira o Santo Cordeiro antre os lobos humildoso, 695 escarnecido, julgado pera o marteiro 39 do madeiro 40, seu rosto alvo e fermoso mui cuspido! (Agostinho benze a mesa.) 700 Ago. A bênção do Padre Eternal, e do Filho, que por nós sofreu tal dor, e do Spírito Santo, igual Deus imortal, 39 martírio 40 cruz

25 705 convidada, benza a vós por seu amor. Igrej. Ora sus! Venha água às mãos. Ago. Vós haveis-vos de lavar em lágrimas da culpa vossa, 710 e bem lavada. E haveis-vos de chegar a alimpar a uma toalha fermosa, bem lavrada 715 co sirgo das veias puras da Virgem sem mágoa, nacido e apurado, torcido com amarguras às escuras, 720 com grande dor guarnecido e acabado. Não que os olhos alimpeis, que o não consentirão os tristes laços; 725 que tais pontos achareis da face e envés, que se rompe o coração em pedaços. Vereis seu triste lavrado 730 natural, com tormentos pespontado, e figurado Deus Criador em figura de mortal. Esta toalha, em que aqui se fala, é a Verónica, a qual Santo Agostinho tira d antre os bacios, e amostra à Alma; e a Madre Igreja, com os Doutores, lhe fazem adoração de joelhos, cantando: Salve, Sancta Facies 41. E, acabando, diz a Madre Igreja: 41 Salve, Santa Face (hino medieval)

26 735 Igrej. Venha a primeira iguaria. Jeró. Esta iguaria primeira foi, Senhora, guisada sem alegria em triste dia, 740 a crueldade cozinheira e matadora. Gostá-la-eis com salsa e sal de choros de muita dor; porque os costados 745 do Messias divinal, santo sem mal, foram, polo vosso amor, açoutados. Esta iguaria em que aqui se fala são os Açoutes; e em este passo os tiram dos bacios, e os presentam à Alma, e todos de joelhos adoram, cantando: Ave, flagellum 42 ; e despois diz: Jeró. Estoutro manjar segundo 750 é iguaria, que haveis de mastigar, em contemplar a dor que o Senhor do mundo padecia, 755 pera vos remediar. Foi um tormento improviso, que aos miolos lhe chegou: e consentiu, por remediar o siso, 760 que a vosso siso faltou; e pera ganhardes paraíso, a sofriu. Esta iguaria segunda, de que aqui se fala, é a Coroa de Espinhos; e em este passo a tiram dos bacios e, de joelhos, os Santos Doutores cantam: Ave, corona spinarum 43. E, acabando, diz a 42 Salve, ó flagelo 43 Salve, coroa de espinhos

27 Madre Igreja: Igrej. Venha outra do teor. Jeró. Est outro manjar terceiro 765 foi guisado em três lugares de dor, a qual maior, com a lenha do madeiro mais prezado. 770 Come-se com gram tristura, porque a Virgem gloriosa o viu guisar: viu cravar com gram crueza a sua riqueza, 775 e sua perla preciosa viu furar. E a este passo tira Santo Agostinho os Cravos, e todos de joelhos os adoram cantando: Dulce lignum, dulcis clavus 44. E acabada a adoração diz o Anjo à Alma: Anjo Leixai ora esses arreios, que est outra não se come assi como cuidais. 780 Pera as almas são mui feios, e são meios com que não andam em si os mortais. Despe a Alma o vestido e jóias que lh o imigo deu, e diz Agostinho: Agos. Ó Alma bem aconselhada, 785 que dais o seu a cujo é: o da terra à terra! Agora ireis despejada pola estrada, 44 Doce madeiro, doce cravo

28 porque vencestes com fé 790 forte guerra. Igrej. Venha ess outra iguaria. Jeró. A quarta iguaria é tal, tão esmerada, de tão infinda valia 795 e contia, que na mente divinal foi guisada, por mistério preparada no sacrário virginal, 800 mui coberta, da divindade cercada e consagrada, despois ao Padre Eternal dada em oferta. Apresenta S. Jerónimo à Alma um Crucifixo, que tira d antre os pratos; e os Doutores o adoram, cantando Domine Jesu Christe 45. E, acabando, diz a 805 Alma Com que forças, com que spírito, te darei, triste, louvores, que sou nada, vendo-te, Deus Infinito, tão aflito, 810 padecendo Tu as dores, e eu culpada? Como estás tão quebrantado, Filho de Deos imortal! Quem Te matou? 815 Senhor, per cujo mandado és justiçado, sendo Deus universal, que nos criou? 45 Senhor Jesus Cristo

29 Agos. A fruita deste jantar, 820 que neste altar vos foi dado com amor iremos todos buscar ao pomar adonde está sepultado 825 o Redentor. E todos com a Alma, cantando Te Deum laudamus, foram adorar o moimento 46. LAUS DEO 46 túmulo