DIREITO E SAÚDE PÚBLICA DURANTE O REGIME MILITAR DE 1964. Heitor Humberto do Nascimento Carvalho (UFU) 1. Introdução



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Transcrição:

DIREITO E SAÚDE PÚBLICA DURANTE O REGIME MILITAR DE 1964 Heitor Humberto do Nascimento Carvalho (UFU) 1 Introdução Em março de 1964, os militares derrubam o governo e assume a presidência da República o general Castelo Branco. O movimento militar de 1964 teve, como um dos principais objetivos, conter o avanço do comunismo no Brasil no auge da chamada guerra fria 2. Para justificar tal medida, extinguiu o Estado populista que estava em crise e conteve a radicalização do movimento de massas exigindo as reformas de base. Ato contínuo, procede-se à retirada do apoio ao governo de Goulart de significativos setores da burguesia nacional com o objetivo de dar fim a uma crise iniciada no final da década anterior. Dentre os elementos desencadeadores da crise no final da década de 50 temos: a resistência à posse de João Goulart, quando da renúncia de Jânio Quadros; o agravamento do quadro econômico com a ascensão da inflação; a polinização crescente de vários movimentos sociais, como as Ligas Camponesas, e os movimentos de indisciplina militar de marinheiros e sargentos. A primeira medida adota pelos autores do golpe foi a criação do Supremo Comando Revolucionário 3 que aprovou o primeiro Ato Institucional (AI-1) 4. Com o golpe político-militar de 1964, ocasionaram alterações na economia do país geradas pelas mudanças nas relações de trabalho, fruto das novas necessidades do desenvolvimento capitalista no país e das transformações na conjuntura internacional. As alterações a que nos referimos foram, basicamente, as seguintes: a abertura do país às empresas multinacionais a partir da eliminação das restrições à remessa de lucros para o exterior, a adoção de uma nova política salarial e a implantação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) substituindo o sistema de estabilidade no emprego, a elevação do volume de impostos e a consequente bancarrota de um grande número de pequenas e médias empresas, e a expansão das indústrias petroquímicas, siderúrgicas e do alumínio, realizadas sob o patrocínio do Estado com a participação de conglomerados nacionais e estrangeiros. No campo da saúde, a pasta ministerial voltada para este fim sofreu reduções das verbas destinadas à saúde pública até o final da ditadura. Em contraste com os aumentos no início da década de 60, a porcentagem da participação do Ministério da Saúde no orçamento da União decaiu de 4,57% em 1961 para 3,65% do orçamento em 1964. Em 1980, o total destinado à saúde foi de apenas 1,38% do orçamento. A menor porcentagem desse período foi no ano de 1974, com um total de 0,94% 5. Com orçamentos pífios, coube ao Ministério da Saúde apenas o planejamento de projetos e programas em saúde. Tal redução orçamentária sobrecarregou as pastas da Educação e Agricultura, entre outras, com execução de muitas tarefas sanitárias, que lhes foram delegadas. 1 Acadêmico de Direito, pela Faculdade Prof. Jacy de Assis, da Universidade Federal de Uberlândia. É Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. Membro do Núcleo Avançado em Direito da Cidadania e do Estado, e do Grupo de Pesquisa em Direito Internacional e Direitos Humanos da UFU. E-mail: heitorhumberto@yahoo.com.br 2 Classificados como agentes do comunismo internacional, foram perseguidos muitos líderes políticos, estudantis, sindicais, e religiosos, que lutavam pela melhoria das condições da saúde do povo. Entre eles estavam Josué de Castro e Francisco Julião, que tiveram seus direitos políticos cassados (BERTOLLI FILHO, 2008, p. 49). 3 Formado pelo general Artur da Costa e Silva, pelo brigadeiro Francisco de Assis Correia de Mello e pelo vice-almirante Augusto Hermann Rademaker Grunewald. 4 Dentre as medidas instituídas pelo AI-1 temos: as eleições indiretas para presidente e vice-presidente da República (Art. 2 ); A suspensão por seis meses das garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade (Art. 7 ); Caber, privativamente, ao presidente a iniciativa de projetos de leis que crie ou aumente a despesa pública (Art. 5 ). 5 Cf. BERTOLLI FILHO, 2008, p. 49. 65

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. O Artigo 8 do AI-1 é explicito ao colocar na competência da União instituir planos nacionais de educação e de saúde 6, e ainda legislar sobre defesa e proteção da saúde 7. Nesse contexto, o artigo 65 que no tange ao o orçamento anual, estipula, no parágrafo sexto, que o orçamento consignará dotações plurianuais para a execução dos planos de valorização das regiões menos desenvolvidas do País, áreas, sem dúvida, mais carentes de recursos para saúde pública. Neste intento, observa-se que a greve nos serviços públicos e nas atividades essenciais, embora definida em lei, não é permitida 8. Então, diante dessa asfixia dos direitos dos trabalhadores, leva-se a crer que ninguém iria ser privado de atendimento médicos quando os serviços médicos fossem procurados. Os Direitos e as Garantias Individuais, mesmo no período ditatorial, receberam certo respaldo legal, o que contrasta com a realidade da época e o desrespeito aos Direitos Humanos, situação essa agravada em 1968 com a instituição do Ato Institucional 5 pela ditadura militar. Claramente, a saúde como parte integrante dos direitos sociais e individuais não foi o norte para a elaboração da Carta, em contrapartida, com relação à seguridade constitucionalmente garantida aos trabalhadores, com vistas à melhoria de suas condições de vida, há a garantia da assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva 9. O esvaziamento do Ministério da Saúde O Ministério da Saúde, além de contar com parcos recursos, também teve sua esfera de atuação alterada: passa a entender a saúde como fenômeno individual e não como elemento coletivo. O resultado disso foi a valoração dos hospitais particulares em detrimento dos hospitais públicos. Assim, os recursos visavam o pagamento das despesas hospitalares dos mais necessitados que frequentavam a iniciativa particular ao passo que os hospitais públicos ficaram à mercê da vontade estatal, portanto, à deriva. Mesmo o Ministério da Saúde tendo se comprometido a realizar programas de saúde e saneamento, a situação da saúde pública não melhorou. Pelo contrário, surtos de epidemias de malária, dengue e meningite surgiram por todo o Brasil durante a década de 70. De fato, as metas estabelecidas pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), de 1975, não passaram de mero apelo político sem expressão real para melhorar as condições de vida da população. Nesse contexto de incertezas, vale ressaltar que os hospitais públicos estavam despreparados, ou melhor, incapazes de atender a população abandonada e em pânico. O Estado, a seu modo, tentou contornar a situação, e negou qualquer analogia entre a epidemia e as condições de vida da população, agravadas com o fim do milagre econômico. A este respeito, por exemplo, em 1971, começaram as ocorrências de casos de meningite, que atingiram as populações mais carentes das principais cidades do país. Mas, qualquer notícia de que a doença estava se alastrando pelo país era negada ou era, na linguagem dos governos desse período, fruto de perturbadores da ordem social. Até que, em 1975, com um repentino acréscimo dos óbitos o governo não pode mais esconder o surto epidêmico de meningite. Os governantes ainda acrescentaram que outros países estavam sofrendo com a doença, contudo, comparando-se a eles, no Brasil, a situação, segundo eles, era 6 Art. 8, XIV. 7 Art. 8, XVII, c. 8 Art. 157, 7. 9 Art. 158, XV. 66

muito melhor. A campanha de vacinação do governo entendida como operação militar fora realizada até 1977, quando a meningite foi declarada sob controle. Todavia, o número de atingidos e de mortos ao certo não se sabe, uma vez que esta informação foi mantida em segredo pela ditadura. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1969 Do ponto de vista formal, a carta de 1969, outorgada pelos três ministros militares, da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, usando das atribuições que lhes conferiam o artigo 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, tomou aspecto de emenda constitucional n 1 (17 de outubro de 1969 10 ) incorporando-se à Constituição de 1967. Tal fato gerou muita polêmica entre os juristas 11 até que o Supremo Tribunal Federal decidiu em plenária unânime, que a Carta de 1967 estava revogada. Assim, o Texto de 1969 deve ser considerado como novo e autônomo documento constitucional. A Carta promoveu uma maior centralização do poder político nas mãos do Executivo Federal. Na realidade as medidas da ditadura descaracterizaram o federalismo, privilegiando a União em detrimento dos estados membros e municípios. Compete a União, segundo o Texto de 1969, estabelecer e executar planos nacionais de educação e de saúde, bem como planos regionais de desenvolvimento, e ainda organizar a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente a seca e as inundações 12. Segundo o texto, competia-lhe legislar sobre normas gerais relativas ao orçamento, despesa e gestão patrimonial e financeira de natureza pública; taxa judiciária, custos e emolumentos remuneratórios dos serviços forenses, de registro públicos e notariais; de direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da saúde; de regime penitenciário. (Redação introduzida pela Emenda Constitucional nº 7, de 1977 13 ). A Emenda Constitucional nº 27, de 1980, passou a obrigar os Municípios a aplicar, em programas de saúde, 6,0% (seis por cento) do valor que lhes fosse creditado por força do disposto no item II da referida Carta 14. Nas disposições gerais e transitórias da Constituição ficava estipulado ao civil e ao excombatente da Segunda Guerra Mundial, que tivessem participado efetivamente de operações bélicas assistência médica, hospitalar e educacional, se fossem carentes de recursos 15 Observa-se que, como nas Cartas anteriores, o direito à assistência à saúde, como direito individual, não recebe a atenção necessária e devida, como se por um lapso, o direito à saúde, como parte integrante do direito maior de qualquer indivíduo, o direito à vida, bem maior de cada cidadão, fosse negligenciado com a abstenção da responsabilidade social (direito social). Eis, portanto, prováveis razões por que os problemas da política de saúde contemporânea são unanimemente complicados. 10 Possivelmente uma das causas que motivaram a criação da emenda foi o sequestro do embaixador americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, por militantes do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) e da Ação Libertadora Nacional (ALN) 4 de Setembro de 1969. Em 30 de Outubro: Toma posse como presidente do Brasil Emílio Garrastazu Médici, sem eleições diretas. Junto com ele, Alfredo Buzaid e João Figueredo assumem o Ministério da Justiça e a Casa Militar respectivamente. 11 De um lado, julgavam que a Carta de 1967 apesar de emendada de modo substancial, no entanto não o suficiente para cessar sua vigência. De outro lado, os que defendiam a idéia de que a Carta de 1967 sofreu tantas alterações que havia sido desfigurada de tal maneira que sua vigência havia cessado. 12 Art. 8, XIII. 13 Texto original da Carta: normas gerais sôbre orçamento, despesa e gestão patrimonial e financeira de natureza pública; de direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da saúde; de regime penitenciário; 14 Art. 25, 4º. 15 Art. 197, d. 67

O Estado ditatorial e a Previdência Social Segundo Claudio Bertolli Filho, para que o regime autoritário tornasse um agente regulador da sociedade, foi necessário uma desmobilização das forças políticas e o enfraquecimento das instituições que atuavam antes de 1964, substituindo-as por organismos e sistemas sob o estrito controle do Estado (BERTOLLI FILHO, 2008, p.54). Para isso, foi criado em 1966 o Instituto Nacional de Previdência Social pelo Decreto-Lei n 72 deste mesmo ano 16, aproveitando-se dos problemas das antigas caixas e instituições de aposentadoria e pensões. O novo instituto integrou todos os órgãos previdenciários que funcionavam desde 1930 por meio do seu artigo primeiro, e ficou subordinado ao Ministério do Trabalho, tendo que assumir o patrimônio e os acordos das instituições que o antecederam. Estabeleceu-se assim, na esfera pública, um sistema dual de saúde: o INPS deveria tratar dos doentes individualmente, enquanto o Ministério da Saúde deveria, pelo menos em teoria, elaborar e executar programas sanitários e assistir a população durante as epidemias. O Estado tornou-se o único coordenador dos serviços de assistência médica, aposentadoria e pensões destinadas às famílias dos trabalhadores, mediante o desconto de 8% do salário mensal. Ao mesmo tempo, aumentou o número de segurados e das atividades médicas subordinadas ao Estado: em 1960 elas correspondiam a cerca de 50% do total de consultas e hospitalizações; 15 anos depois, alcançavam mais de 90%. (BERTOLLI FILHO, 2008, p. 54) O identificador representa a inclusão de quase todas as clínicas e unidades hospitalares na organização previdenciária, e não exclusivamente a ampliação da cobertura médica. Pela Carta de 1967, a ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, primeiramente, por meio da liberdade de iniciativa 17. Com isso, as empresas privadas competiam preferencialmente, com o estímulo e apoio do Estado, com o intuito de organizar e explorar as atividades econômicas ligadas à saúde. Somente, para suplementar a iniciativa privada, o Estado se organizaria e exploraria diretamente atividades econômicas no setor 18. Desta maneira, o INPS firmou convênios com mais de 80% dos hospitais instalados no país por meio do setor privado para atender a massa trabalhadora, conforme garantia a Constitucional. Contudo, esse sistema demonstrou-se extremamente frágil: Enquanto o governo reduzia ou atrasava os recursos para a rede conveniada, hospitais e clínicas aumentavam as fraudes para receber aquilo a que tinha direito, e muito mais. [...] Mais do que prejuízos materiais, importantes em si mesmos, a mais grave consequência tem sido a contínua degradação dos serviços médico-hospitalares prestados à população trabalhadora. Em suma imensa maioria da população não tem outra alternativa que não o sistema previdenciário de atendimento. (BERTOLLI FILHO, 2008, p. 55) Em 1974 foi criado o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) que agregou a competência do INPS, desvinculando-o do Ministério do Trabalho. Além disso, para contornar o problema de desvio de recursos e a corrupção foi criada também a Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social (Dataprev). 16 O Decreto-Lei foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) em 22 de novembro de 1966. Além de Unificar os institutos de aposentadoria e pensões e criar o Instituto Nacional de Previdência Social, o Decreto-Lei constituiu o INPS como órgão de administração Indireta da União; de personalidade jurídica de natureza autárquica e independente inclusive no que se referem a seus bens, serviços e ações, das regalias, privilégios e imunidades que a União goza, conforme trata o artigo segunda da referida lei. 17 Art. 157, I, da CRFB 67. 18 Art. 163 caput, e 1º, da CRFB 67. 68

Para abrandar as inúmeras críticas, outras medidas foram tomadas, entre elas: o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural) em 1971; o Plano de Pronta Ação (PPA); e, 1975, o Sistema Nacional de Saúde. Todas elas não passaram de tentativas do governo de melhorar as deficiências do setor de saúde, que em 1979 estava entre as maiores no ranking dos países mais enfermos da América Latina, sendo ultrapassado apenas por Haiti, Bolívia e Peru, apesar de o Brasil ter obtido um relativo aumento na expectativa de vida da população e diminuição da mortalidade infantil. A saúde como próspero negócio ao capital estrangeiro O grande volume de entrada do capital estrangeiro no Brasil durante a Ditadura Militar significou também um aumento dos investimentos na área da saúde e na indústria farmacêutica, o que de fato mostrou-se bastante rentável, durante o milagre econômico. Assim, calcula-se que, naquela época, apenas 25% das verbas arrecadas eram aplicadas no atendimento aos conveniados, na manutenção da burocracia e nas campanhas publicitárias. O restante representa lucro líquido (BERTOLLI FILHO, 2008, p. 58). Outro fator interessante, é que entre 1965 e 1975, grupos farmacêuticos com sede na Europa ou nos Estados Unidos compraram cerca de 25 companhias brasileiras. Em decorrência dessa compra e beneficiadas por ela, as empresas estrangeiras partiram para a formação de cartéis, quer seja, ajustes entre várias empresas de um mesmo ramo de produção que visam ao estabelecimento de um monopólio, dentre outras formas de concentrações financeiras. Desta forma determinaram a qualidade e o valor dos medicamentos, subjugando até mesmo a figura do Estado, que em 1971, criou a Central de Medicamentos (Ceme) para produzir, contratar e distribuir medicamentos à população carente. Além disso, as indústrias farmacêuticas utilizavam de componentes de origem duvidosa 19 e até mesmo proibida em diversos países, inclusive no país sede das empresas, e os vendiam no Brasil segundo seus interesses, aproveitando-se da inércia do Estado incapaz de defender seus cidadãos. Uma vez advertidas ou pressionadas, as empresas interrompiam o fornecimento dos medicamentos, desrespeitando o povo e o Estado. Nesse período, o Ministério da Saúde, além de contar com parcos recursos teve, também, sua esfera de atuação alterada. A partir de então, passa a entender a saúde como fenômeno individual e não como elemento coletivo. O resultado disso foi a valoração dos hospitais particulares em detrimento dos hospitais públicos. Nos ordenamentos jurídicos da época, ou seja, na Carta de 1967 e na Carta de 1969 20, o direito à saúde, como direito individual, não detém a atenção necessária e devida do poder público, como se por um lapso. Como resultantes o direito à saúde, como parte integrante do direito maior de qualquer indivíduo - o direito à vida - que é o bem maior de cada cidadão, passa a ser negligenciado na medida em que há a abstenção da responsabilidade social (direito social). Assim, os responsáveis públicos não declaram expressamente que o Estado reconhece o direito à saúde, todavia, asseguram aos trabalhadores o direito à assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva 21. É este um dos motivos que levam a crer que os problemas da política de saúde contemporânea são unânimes e indistintamente complicados. 19 Calcula-se que, em 1976, existiam cerca de cinco mil remédios considerados supérfluos à venda nas farmácias do Brasil. 20 De um lado, havia os que julgavam que a Carta de 1967 apesar de emendada de modo substancial, no entanto, não foi suficientemente acolhida para que cessasse a sua vigência. De outro lado, havia os que defendiam a idéia de que a Carta de 1967 sofreu tantas alterações que havia, de fato, sido desfigurada de tal maneira que sua vigência havia cessado. 21 Art. 158, inciso XV, CRFB 1967. 69

No plano econômico, a ditadura estava abalada pelo fracasso do chamado milagre econômico. Conjuntamente, um governo autoritário e empresas estatais executaram obras faraônicas em que ficava demonstrada a ineficiência estatal. O fracasso tornou-se maior ainda quando o Estado buscou compensar o seu fiasco com a emissão de papel moeda, o que levou o país a uma inflação sem precedentes na história brasileira. Esta herança inflacionária perdurou até pouco tempo na história recente do país. Perpassou pelo último presidente do governo militar, João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1985) 22 que, assumiu o poder numa intensa crise econômica, ao mesmo tempo em que as manifestações de massa, começavam a ser retomadas. Considerações finais No plano político, mesmo havendo, em 1984, o movimento conhecido como Diretas Já, o fim da ditadura só aconteceu por meio de eleições indiretas para presidente. O colégio eleitoral elegeu, em 1985, Tancredo Neves (representante do PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro) com ampla margem sobre Paulo Maluf (PDS Partido Democrático Social). Todavia, Tancredo de Almeida Neves faleceu, no dia 21 de abril de 1985, antes de sua posse, assumindo o poder o seu vice José Sarney de Araújo Costa (1985-1990). Em 1985, uma série de medidas democratizantes foi enviada ao Congresso. Com essas medidas, estabeleceram-se as eleições direitas para prefeito das capitais, das áreas consideradas de segurança nacional e das estâncias hidro-minerais. Cabe aqui lembrar, algumas demandas políticas relevantes desse período: a elevação do contingente populacional dos sem-terra, decorrente do empobrecimento generalizado, da concentração da propriedade da terra e da lentidão do Estado na aplicação de projetos de reforma agrária; os problemas enfrentados pelo setor agrícola decorrentes da capitalização de dívidas com instituições bancárias. Provenientes da política de juros altos e da elevação dos preços dos insumos, que ameaçavam comprometer as safras dos anos seguintes. Na tentativa de minimizar a crise econômica advém uma política de privatizações de empresas estatais, que mobilizou setores sociais, políticos e empresariais do país, naquela época, objetivando conter o déficit público, aumentar a produtividade e reduzir os gastos com a máquina governamental; e, claro, nesse caudal de problemas, arrola-se, também, a crise no setor de saúde pública, responsável pelo precário atendimento às camadas populares, contrastando com os avanços verificados nos campos da medicina e da odontologia nacionais. Todo esse estado caótico comprova que a solução depende da adoção de medidas políticas adequadas. Para que o regime autoritário tornasse um agente regulador da sociedade, foi necessário uma desmobilização das forças políticas e o enfraquecimento das instituições que atuavam antes de 1964, substituindo-as por organismos e sistemas sob o estrito controle do Estado (BERTOLLI FILHO, 2008, p. 54). Para isso, foi criado, em 1966, o Instituto Nacional de Previdência Social pelo Decreto-Lei n 72 deste mesmo ano. O Decreto-Lei foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) em 22 de novembro de 1966. Além de unificar os institutos de aposentadoria e pensões e criar o Instituto Nacional de Previdência Social, o Decreto-Lei constituiu o INPS como órgão de administração Indireta da União; de personalidade jurídica de natureza autárquica e independente inclusive no que se referem a seus bens, serviços e ações, das regalias, privilégios e imunidades que a União goza, conforme trata o artigo segundo da referida lei. Essa estratégia governamental tinha o intuito de aproveitar-se dos problemas das antigas caixas e instituições de aposentadoria e pensões. O novo instituto integrou todos os órgãos previdenciários que funcionavam desde 22 O governo revogou o AI-5, e, em 1979, foi aprovada a Lei de Anistia, que permitia o retorno ao país de um enorme número de exilados pelo regime, além de libertar uma série de prisioneiros políticos. Ainda, foi extinto o bipartidarismo, pela lei de reformulação partidária. Em 1980, foram restauradas as eleições diretas para governadores. 70

1930 por meio do seu artigo primeiro, e ficou subordinado ao Ministério do Trabalho, tendo que assumir o patrimônio e os acordos das instituições que o antecederam. Tal medida representou a inclusão de quase todas as clínicas e unidades hospitalares na organização previdenciária, e não exclusivamente na ampliação da cobertura médica. Pela Carta de 1967, o Estado, como já foi ventilado anteriormente, se organizaria e exploraria diretamente atividades econômicas somente para suplementar a iniciativa privada. Enquanto o governo reduzia ou atrasava os recursos para a rede conveniada, hospitais e clínicas aumentavam as fraudes. Desde o fim do chamado milagre econômico, o complexo sistema de saúde existente no país entrou em grave crise como consequência dos problemas históricos de má gestão dos recursos destinados à mesma e do pouco caso das autoridades. Além disso, o Estado apenas oferecia atendimento à saúde para trabalhadores com carteira assinada e suas famílias, decorrências da Lei Eloy Chaves criada pelo Decreto n 4.682 de 24 de janeiro de 1923 (considerada também como marco da Previdência Social no país), e suas constantes ampliações. Ao restante da população, cabia o acesso a estes serviços como um mero favor e não como um direito; a própria iniciativa privada fora incentivada a abrir clínicas e unidades hospitalares para atendimento aos mais aquinhoados em detrimento ao atendimento público de baixa renda. Foi durante essa efervescência política e econômica que, em 17 de março de 1986, iniciou-se a 8ª Conferência Nacional de Saúde uma vez que as políticas públicas do início dessa década, até a Conferência supramencionada, pouco tinham feito para melhorar a situação lamentável a que estava submetida a saúde frise-se, de passagem, relegada a segundo plano. REFERÊNCIAS: BERTOLLI FILHO, Claudio. História da saúde pública no Brasil. São Paulo: Editora Ática, 2008. CANESQUI, Ana Maria (Org.). Ciências sociais e saúde. São Paulo: Editora Hucitec Abrasco, 1997. CECHIN, José at all. A história e os desafios da saúde suplementar: 10 anos de regulação. São Paulo: Saraiva, 2008. PACHECO E SILVA, Antonio Carlos. Direito à saúde. São Paulo: s.c.p., 1934. PAIM, Jairnilson Silva. Direito à saúde, cidadania e Estado. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 8., 1987, Brasília. Anais... Brasília: Centro de Documentação, 1987. PILETTI, Nelson. História do Brasil. São Paulo: Editora Ática, 1990. PINTO, Márcio Alexandre da Silva. Teoria geral do direito da cidadania. 2003. Tese (Doutorado) PUC-SP, São Paulo, 2003. 71