ARRENDAMENTO URBANO HENRIQUE GALADO, Nº 2455 Aula de 22 de Outubro de 2014 Na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, a 22 de Outubro de 2014, no âmbito da disciplina de Arrendamento Urbano, teve lugar uma aula sobre A licença de utilização enquanto elemento do contrato de arrendamento e As obrigações contratuais do locador e do locatário, leccionada pelo Professor Doutor José Carlos Soares Machado. I A LICENÇA DE UTILIZAÇÃO ENQUANTO ELEMENTO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO A exigência da licença de utilização é um requisito de forma do contrato de arrendamento, previsto no Decreto-lei n.º 160/2006, de 8 de Agosto, nos seus artigos 2º, alínea d), e 5º. É, contudo, um elemento envolto em polémica desde a sua criação pelo legislador, em 1990, no RAU. O legislador enganou-se no conceito de licença de utilização, o que lançou a confusão no mercado do arrendamento e na administração pública municipal. Actualmente, esta matéria pode ainda ser relevante, ainda que a norma que previa esta licença já esteja revogada artigo 9.º do RAU. A licença de utilização foi criada pelo Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-lei n.º 38-382, de 7 de Agosto de 1951 (que veio modificar o Regime Urbanístico Municipal) e reporta ao momento em que o edifício é terminado, havendo uma impossibilidade do prédio ser vendido ou arrendado antes de emitida a respectiva licença. O legislador quis que esta exigência de licença de utilização fosse requisito de forma do contrato de arrendamento queria, na verdade, controlar a finalidade do arrendamento e o uso que lhe é dado (grande parte dos proprietários urbanos tendiam a arrendar para fins não-habitacionais, especialmente tendo em vista a instalação de escritórios, prédios destinados à habitação). Com o bloqueamento das rendas, após o 25 de Abril de 1974, a tendência dos proprietários foi desviarem-se do mercado do arrendamento para habituação para o mercado do arrendamento para comércio, onde eram praticadas rendas mais altas, e o que, até então, constituía uma excepção passou a ser cada vez mais frequente. Lisboa é um bom exemplo desta prática, na medida em que se tornou numa cidade com artérias repletas de escritórios em edifícios destinados à habitação, especialmente no que 1
respeita ao exercício de profissões liberais. Como consequência, assistiu-se à descaracterização de inúmeras casas e ao despovoamento de várias zonas da cidade. O legislador sentiu, então, necessidade de pôr um ponto final nesta prática, impondo uma licença de utilização enquanto requisito de forma do contrato de arrendamento. Porém, ainda que a sua intenção fosse a melhor, confundiu realidades, criando a figura da licença de utilização com o mesmo nome de algo que já existia anteriormente, mas que dizia respeito a uma realidade distinta. Esta licença de utilização, tal como foi idealizada pelo legislador, destinava-se a atestar a finalidade do prédio. Surge, então, um problema prático não se podia celebrar um contrato de arrendamento sem ter um documento a quem o legislador chamou de licença de utilização. Porém, qualquer prédio com mais de 8 anos não tinha esta licença. Assistiu-se, no caso lisboeta, a uma corrida à Câmara Municipal de Lisboa, que, por desconhecer do que se tratava, não emitia quaisquer licenças. As câmaras municipais não foram consultadas nem preparadas e, por este motivo, não emitiam o referido documento. Ainda que fosse uma imposição legal desadaptada da realidade, rapidamente a realidade se readaptou e foram encontradas soluções. Artigo 9.º, n.º2, Regime do Arrendamento Urbano (RAU): 2 - Quando as partes aleguem urgência na celebração do contrato, a licença referida no número anterior pode ser substituída por documento comprovativo de a mesma ter sido requerida, em conformidade com o direito à utilização do prédio nos termos legais e com a antecedência mínima requerida por lei. Esta disposição foi criada, provavelmente, dada a eventualidade de, feito o pedido de licença, a sua emissão demorar. Tornou-se, contudo, a regra para evitar as sanções previstas nos números seguintes. Na maior parte dos casos, a celebração do contrato passou a ser urgente, sendo esta urgência motivada pela impossibilidade das câmaras municipais emitirem licenças. A situação prolongou-se durante anos. Note-se que as consequências previstas nos n.º 5, 6 e 7 eram bastante graves: a sujeição do senhorio a uma coima não inferior a um ano de renda, a possibilidade do arrendatário resolver o contrato com direito a indemnização, a possibilidade do arrendatário requerer a notificação do senhorio para a realização das obras necessárias para que a licença fosse emitida e ainda a nulidade do contrato com direito a indeminização. 2
A maior parte dos contratos celebrados no período de vigências destas normas eram contratos que continham uma cláusula que lhes atribuía o carácter de urgência, permitindo-lhes contornar a falta da licença de utilização com a apresentação comprovativo da sua requisição. O Decreto-lei n.º 160/2006, de 8 de Agosto, com o seu artigo 5º, tenta corrigir a situação anterior, mantendo o essencial. A licença agora exigida ganhou sentido face à anterior e os artigos passaram a ter alguma lógica. A licença de utilização não só certifica a conformidade da construção, como atesta a finalidade para que o edifício é construído. Assim sendo, um prédio destinado à habitação passou a ter que reunir uma série de exigências legais para que possa ser usado para fins comerciais. O artigo 5º exige uma aptidão para uma finalidade o objectivo da lei é definir a finalidade de habituação ou de não habitação. Aptidão para o fim pretendido habitacional ou não habitacional. Por este motivo, a questão de se tratar de casa de porteira (questão colocada no decorrer da aula) é irrelevante, não devendo ser feita uma interpretação formalista da norma. O artigo 5º do Decreto-lei n.º 160/2006, de 8 de Agosto, no seu nº3, reproduziu a questão da urgência. II - OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS DO LOCADOR E DO LOCATÁRIO Base legal: Código Civil Locador: artigos 1031.º a 1037.ºCC. Locatário: 1038.º CC. Nota: As obrigações do locatário, ainda que estejam previstas expressamente apenas num único artigo do Código Civil, têm um desenvolvimento que está regulamentado nos artigos seguintes, como é o caso do artigo 1039º. A - OBRIGAÇÕES DO LOCADOR: O legislador cria uma divisão, em traços gerais, em dois grupos de obrigações para o locador: a entrega da coisa locada e a manutenção do gozo da coisa locada depois de entregue (i. e., não fazer nada que impeça o gozo da coisa, permitindo, em simultâneo, que este gozo seja assegurado). 3
O acto de entrega da coisa é um acto que se esgota em si próprio, não levantando grandes problemas. A manutenção do gozo, por seu lado, gera situações, por vezes, complicadas, como é o caso da necessidade de obras. Assegurar que o gozo se mantém implica assegurar que a coisa permaneça no estado em que estava quando foi entregue, sendo, por isso, uma obrigação continuada (o senhorio encontra-se obrigado à pratica dos actos necessários de tal modo que o gozo da coisa locada seja devidamente assegurado). As questões relativas às obras encontram-se reguladas nos artigos 1074.º e 1111.º do Código Civil e no Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto, que aprova o Regime Jurídico das Obras em Prédios Arrendados (na sua versão mais recente dada pela Lei n.º 30/2012, de 14 de Agosto). O artigo 1031.º, alínea b), reforçado pelo artigo 1037.º, proíbe, com carácter imperativo, que o locador pratique actos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa pelo locatário. Vícios da coisa locada e vícios decorrentes da pessoa do locador: Vícios decorrentes da pessoa do locador artigo 1034.º. 1 Ilegitimidade do locador: diz respeito à incapacidade de dar em locação. O contrato de arrendamento considera-se incumprido pelo locador se este arrendar algo que não tem a faculdade de arrendar. Deste modo, é possível vislumbrar algumas situações em que tal possa suceder: arrendamento de coisa alheia; comodatário que arrenda coisa sem autorização do proprietário; locatário na qualidade de sublocador; locatário que cede coisa a terceiro sem autorização do locador; aquele que tem apenas direito de uso e dá em locação; usufrutuário que dá em locação; e comproprietário que não pode locar sem o consentimento dos restantes comproprietários. Estas situações, tal como outras que possam eventualmente surgir, tornam o locador parte ilegítima na relação contratual (não tem os poderes necessários para dar em locação). 2 Deficiência do direito: quando o direito do locador não possui os atributos que este anunciou ao locatário ou quando estes atributos cessarem posteriormente por sua culpa. O objectivo da lei é não deixar de fora nenhuma situação. Como consequência destes vícios pode ocorrer o pagamento de indeminização, a resolução do contrato ou a responsabilidade penal, no caso de se tratar de crime. 4
Vícios da coisa locada: O legislador entendeu que devia distinguir a gravidade das consequências do vício em função de um conjunto de factores que se prendem com a data do defeito, o conhecimento do defeito, a culpa na existência do defeito, a menor ou maior facilidade de conhecimento do defeito, a responsabilidade pelo defeito e o aviso da existência do defeito feito ao locador (dever de informação do locatário aquando da verificação da existência de um determinado vício). Os vícios da coisa locada geram responsabilidade para o locador em função do não-cumprimento da obrigação prevista no artigo 1031.º, alínea b), do Código Civil. O artigo 1033.º abre um conjunto de especificidades, prevendo situações em que o locador não é responsável pelos vícios da coisa locada. Em pormenor, verificamos que são soluções compatíveis com aquilo que o bom senso aconselharia como solução. Vício pré-existente: vício que já existia no momento da entrega da coisa. A responsabilidade pelo vício cabe ao locador enquanto detentor do direito de propriedade que, consequentemente, tem obrigação de conhecer o estado em que a coisa se encontra. Permite-se, no entanto, que o locador possa demonstrar que desconhecia o vício (artigo 1032.º, alínea a), in fine ). Tal situação apenas é possível no caso do vício não ser visível e as suas consequências não permitirem igualmente a sua percepção. Neste caso, não há responsabilidade contratual e o contrato não se considera incumprido pelo locador, dado que não lhe era exigível que conhecesse o vício, por este e os seus efeitos não serem visíveis. No entanto, existe um dever de diligência do locador no sentido de mandar verificar o estado da coisa antes de arrendar. Vício surge posteriormente à entrega: nestes casos, a lei é mais exigente. Só há responsabilidade do locador se ele tiver culpa no surgimento do defeito, não relevando o conhecimento do vício. Nestas situações, geralmente, o vício surge por o senhorio não ter praticado actos de conservação que devia ter praticado, sendo, por isso, responsável pelo vício. Responsabilidade por incumprimento do locador: As consequências do incumprimento do locador são a anulação do contrato por erro ou dolo, nos termos do artigo 1035.º. No entanto, existe um conjunto de situações em que não se aplica a regra-geral. Estas situações encaixam bem naquilo que o senso comum nos indicaria como melhor solução. Ei-las: 5
1 No caso de o defeito ser pré-existente à celebração do contrato, conhecendo-o o locador, há incumprimento contratual por parte deste. Se, ao invés disso, o locatário conhecia o defeito, cessa a responsabilidade do locador. É necessário ter em atenção que o momento da entrega da coisa e o momento da celebração do contrato podem não coincidir. Se o locatário conhece o defeito, aceitando-o quando recebe a coisa locada, e ainda assim celebra o contrato, o locador não é responsável. Basta haver conhecimento do locatário, em qualquer um dos dois momentos, para que a responsabilidade do locador seja afastada. 2 O locatário não sabia (não lhe foi dito), mas o defeito era visível e não foi escondido excepção à excepção. Neste caso, é irrelevante o facto de o locador saber. Exige-se diligência do locatário no sentido de verificar em que se estado se encontra a coisa que pretender arrendar. Não há, pois, incumprimento contratual do locador. A existência do defeito e o facto de este ser visível justificam a ausência de responsabilidade do locador, excepto se este, mais do que omitir a sua existência, assegurar que o defeito não existia (ocultar com dolo). Nestas situações, afasta-se o artigo 1033.º e aplicam-se os artigos 1032.º e 1035.º. 3 Defeito é da responsabilidade do locatário (artigo 1033.º, alínea c) estas situações são frequentes no dia-a-dia. Acontecem, geralmente, quando o locatário detectou o defeito e não avisou locador. Nesta situação, não pode ser exigida pelo locatário anulação do contrato, indemnização ou reparação. Caso o dano se agrave com a falha do aviso ao locador, o locatário pode ser responsável. Reparações e outras despesas urgentes O artigo 1036.º diz respeito às reparações e outras despesas urgentes (que caibam na esfera de obrigações do locador), as quais podem ser subclassificadas como urgentes e urgentíssimas. Este artigo entra, aparentemente, em contradição com o artigo 1074.º, n.º3, havendo dois regimes diferentes sem que haja uma classificação diferente. Locador em mora O locador está em mora a partir do momento em que é informado da existência do defeito e até que proceda à sua reparação. A urgência da reparação é avaliada pela possibilidade ou não de recurso a instâncias judiciais, sendo imprescindível que o locatário avise o locador da existência do defeito, sob pena de o locador não estar em mora. Caso o locatário 6
faça a obra sem avisar previamente o locador, poderá não ser ressarcido, no sentido de que é o locatário quem tem a obrigação de proceder a tais obras. O n.º2 prevê situações em que a urgência é tão grande que não se compadece sequer com o tempo de fazer o aviso e com o tempo de ser efectuada a reparação ( não consinta qualquer dilação ), não sendo possível esperar que o defeito seja corrigido por iniciativa do locador. A lei não dispensa, todavia, o inquilino de fazer o aviso, impondo-se que o momento em que é feito o aviso seja temporalmente próximo do momento da reparação. As reparações são urgentes por não se compadeceram com o tempo normal de uma providência cautelar, nos termos do n.º1. No caso de serem urgentíssimas, o locatário é dispensado de fazer o aviso previamente, mas terá que fazer o aviso no momento em que se iniciou a obra (requisito essencial), sob pena de não vir a ser ressarcido pelo dinheiro que gastou. A reter: Nº1 não se compadece com a delonga do procedimento judicial; Nº2 não se compadece com qualquer delonga. B - OBRIGAÇÕES DO LOCATÁRIO: 1 - A principal obrigação do locatário é o pagamento da renda ou aluguer, nos termos do artigo 1038º, alínea a). Trata-se de uma obrigação sujeita a um prazo muito concreto: a renda é paga no dia 1 ou no primeiro dia útil do mês anterior àquele que respeita (e não até dia 8, como geralmente se entende). Permite-se, geralmente, que haja um período de tolerância de 8 dias, durante o qual a mora do devedor não tem consequências. 2 O locatário terá que facultar ao locador o exame da coisa locada. O locador, por seu lado, deverá restringir-se aos limites da razoabilidade (no que diz respeito à justificação, oportunidade e frequência do exame), sob pena tal actuação constituir abuso de direito. 3 O locatário não poderá dar uso à coisa locada diferente daquele que é estipulado no contrato, nos termos do artigo 1038º, alínea c). É necessário ter em atenção que aplicação para fim diverso é diferente de aptidão para fim diverso (previsto na licença de utilização): por exemplo, ainda que seja permitido que um prédio seja usado para fins comerciais, é necessário ter em consideração se a forma de comércio é a permitida pelo contrato de arrendamento. 7
4 O locatário encontra-se proibido de fazer uma utilização imprudente da coisa, nos termos do artigo 1038º, alínea d). A utilização será prudente se o locatário tratar a coisa como se fosse sua, de modo diligente e adequado ao seu uso normal. São permitidas pequenas deteriorações, como pregar pregos nas paredes. 5 O locatário não poderá opor-se a que o locador efectue reparações urgentes ou obras ordenadas por autoridade pública, de acordo com o artigo 1038º, alínea e). 6 O locatário não pode sublocar, não pode ceder a terceiros e não pode emprestar (sem autorização expressa do senhorio) - artigo 1038.º, alínea f). 7 Não comunicação de cedência o locatário pode estar autorizado a sublocar ou a ceder, mas tem que comunicar sempre a cedência ao locador (artigo 1038.º, alínea g). O não-cumprimento da comunicação de cedência, para efeitos da violação do contrato, é equiparável a sublocar sem autorização. A obrigação de comunicar a cedência verifica-se sempre que for efectuada uma nova cedência. 8 O locatário terá que avisar imediatamente o locador sempre que tenha conhecimento de vícios na coisa, ou saiba que a ameaça algum perigo ou que terceiro arrogam direitos em relação a ela, nos termos da alínea h) do artigo 1038.º. O artigo 1037.º, n.º2, deverá ser conjugado com a 2ª parte da alínea h) do 1038º. 9 Restituição da coisa locada findo o contrato (artigo 1038.º, alínea i) é absolutamente essencial que a coisa locada seja restituída ao locador findo o contrato, havendo sanções graves para o locatário se não o fizer. A violação dos deveres do locatário justifica, em regra, a possibilidade de resolução do contrato por parte do locador. 8