A Nueva Revista de Buenos Aires e a Construção de uma Identidade Internacional Argentina (1881-1885)

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Transcrição:

A Nueva Revista de Buenos Aires e a Construção de uma Identidade Internacional Argentina (1881-1885) Paula da Silva Ramos 1 RESUMO A Nueva Revista de Buenos Aires (1881-1885), fundada por Vicente Quesada, conjuntamente com seu filho Ernesto Quesada, conferiu grande destaque às pautas americanas - em especial às pendências fronteiriças e à aproximação cultural entre os países sul-americanos - e configurou-se em um expoente na constituição do nacionalismo territorial argentino. Essa concepção e suas implicações quanto ao relacionamento da Argentina com os países limítrofes, expressas por meio do referido periódico, constituem-se nos objetos de análise desse trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Argentina; América; Imprensa. A Nueva Revista de Buenos Aires (1881-1885), editada por Vicente Gregorio. Quesada, conjuntamente com seu filho Ernesto Quesada, foi um expoente na construção do nacionalismo territorial argentino. No afã de defender os direitos do país em seus conflitos limítrofes, no último quartel do século XIX, Vicente Quesada desenvolveu a ideia de que o Vice Reino do Rio da Prata representava os contornos de uma grande nação, que não tomou forma devido, entre outros fatores, à ação do liberalismo, à política brasileira na região do Prata e à medíocre diplomacia do Estado Argentino (CAVALERI, 2004, p.12). O mito de reconstrução do Vice-Reino do Rio da Prata, recriado por Quesada, era baseado em um sentimento nostálgico acerca de uma suposta perda de territórios, considerados argentinos por direito devido ao fato de terem pertencido àquela unidade 1 Mestre em História. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História - Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP - Universidade Estadual Paulista. Bolsista CAPES. Email: ramosps.his@gmail.com 1

colonial. Essa concepção, e seus desdobramentos no tocante às relações com os países vizinhos, constituiu-se em uma peça fundamental da identidade argentina na virada do século XIX e contribuiu para a formação de um imaginário nacional. Este trabalho tem por objetivo discutir as formulações de Vicente Quesada sobre essa temática, publicadas no referido periódico, bem como seu posicionamento acerca das nações sul-americanas. A carreira pública de Vicente Quesada entrelaçou-se à construção e consolidação do Estado nacional argentino, na segunda metade do século XIX. Com a vitória de Justo José Urquiza sobre Juan Manuel de Rosas, na batalha de Caseros, em 1852, foi formada a Confederação Argentina. Contudo, a Constituição nacional firmada em 1853 foi rejeitada por Buenos Aires, que se separou da Confederação. Sem o apoio político e os rendimentos dessa província, o governo sediado na cidade de Paraná enfrentou sérias dificuldades. Quesada foi eleito deputado da Confederação pela província de Corrientes em 1856, destacando-se a partir de então tanto na vida política, quanto em seu trabalho cultural. A partir de fevereiro de 1861, editou a Revista del Paraná, seu primeiro empreendimento jornalístico. Traduzindo os anseios políticos da Confederação, a publicação mensal propunha a construção de uma história nacional resultante da soma das histórias, tradições e costumes provinciais. Com base nesse pressuposto, ocupava-se também de temas como literatura, legislação e economia. O prestígio e a forte vinculação do periódico com o poder estatal podiam ser observados por meio da lista de assinantes, que contava com os membros do poder executivo, três membros da Suprema Corte de Justiça, os ministros plenipotenciários da França, Paraguai, Uruguai e Bélgica, além de senadores, deputados, representantes da elite local, do clero e do exército (EUNAJIAN, 2010). A Revista del Paraná chegou ao fim em setembro de 1861, quando os desentendimentos políticos entre Buenos Aires e a Confederação culminaram na Batalha de Pavón, que teve como desfecho o triunfo bonaerense, sob o comando de Bartolomé Mitre. Após um longo período de conflitos internos, no ano de 1862 foi eleito o primeiro presidente argentino após a unificação do país. Com Mitre a Argentina teve lançadas as bases do Estado nacional e do modelo econômico primário-exportador, consolidado nas presidências de Domingo F. Sarmiento (1868-1874) e Nicolás Avellaneda (1874-1880). Tais mudanças não afastaram Vicente Quesada da vida política e cultural argentina. Com a colaboração de Miguel Navarro Viola, Quesada fundou a Revista de 2

Buenos Aires: Historia Americana, Literatura y Derecho (1863-1871), que tinha por objetivo demonstrar a existência de um precoce sentimento nacional e destacar a atuação dos heróis da pátria. Para tanto, o periódico ocupava-se em grande medida da história da independência e buscava criar uma identificação entre as distintas províncias. Em menor número, também eram publicados artigos sobre as fronteiras e personagens sociais argentinos, tal qual o gaucho (NODARI, 2013). A exemplo da Revista del Paraná, as pautas da Revista de Buenos Aires explicitaram o envolvimento de Quesada com a construção da identidade nacional e corroboraram o seu prestígio no meio cultural argentino, uma vez que a revista recebeu notas elogiosas de jornais de grande circulação e notoriedade, tais como La Nación, El Nacional e La Tribuna Nacional, que inclusive aconselharam seus leitores a assinar o mensário (NODARI, 2013, p. 31). As mudanças de título e locais de produção dos periódicos organizados por Quesada também revelaram a intrínseca relação deste com o poder. Desde 1862, Buenos Aires havia se convertido em capital do país, além de concentrar lideranças e partidos, contar com a maior taxa de população alfabetizada e ser o centro da vida política argentina. Contudo, a publicação chegou ao fim devido a dificuldades financeiras e a nomeação de Vicente Quesada como diretor da Biblioteca Pública de Buenos Aires em 1871, função que o levou a viagens à Europa com o objetivo de estudar a organização das principais bibliotecas daquele continente e realizar pesquisas em arquivos espanhóis, que posteriormente fundamentaram as discussões em torno da definição das fronteiras do país. De volta à Argentina, foi nomeado Ministro do Governo da Província de Buenos Aires em 1877, eleito deputado nacional por Buenos Aires em 1878 e presidente da Academia de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires (RAMÍREZ BRASCHI, 2004, p. 02). Em 1880, iniciou sua carreira diplomática, função que exerceu até 1904. Acompanhado de seu filho Ernesto Quesada, atuou, com intermitências, em delegações na Bolívia, Brasil, Estados Unidos, Espanha, México, Alemanha, Áustria e Rússia. Quesada pertencia a uma família tradicional de Buenos Aires, porém isso não implicava em sua integração à elite econômica do país. Apesar de compor setores letrados e articulados às elites sociais, não possuía um grande patrimônio. Por isso buscava em distintos cargos públicos os recursos para sua subsistência, sem privações, mas também sem folgas (DEVOTO; PAGANO, 2009, p. 79). 3

Motivada pelas contínuas divergências entre interesses bonaerenses e nacionais, a sucessão do presidente Nicolás Avellaneda desembocou em uma revolução. O triunfo do governo nacional em 1880 - com a vitória eleitoral e militar de Júlio A. Roca - é apontado pelos historiadores como a conclusão da estruturação do Estado nacional argentino (DONGHI, 1980; DONGHI, 1982; TERÁN, 2009). A federalização da cidade de Buenos Aires e a obtenção do monopólio da força legítima pelo governo central puseram fim a um conflito recorrente desde a independência. Além disso, as sanções de leis laicas de educação e de registro civil colocaram o controle da população sob exclusiva responsabilidade estatal. No plano econômico, a participação da Argentina na divisão internacional do trabalho como produtor de bens primários, a apropriação de territórios até então ocupados por indígenas 2 e os investimentos estrangeiros, sobretudo no setor de transportes, propiciaram um enorme crescimento ao país, que se tornou naquela década o mais próspero da América Latina. A necessidade de mão de obra impulsionou as políticas de incentivo à imigração e o fluxo, que já era grande, atingiu cifras ainda maiores, alavancando todos os setores produtivos do país. No início de 1880, cerca de 50 mil imigrantes ingressavam no país anualmente, ao final do decênio, esse número chegou a quase 300 mil (BERTONI, 2001, p. 19). Por esse motivo, a imigração ganhou papel de destaque na Argentina, balizando tanto as pautas econômicas quanto as culturais e norteando os debates acerca da identidade nacional. Naquela conjuntura, os intelectuais argentinos passaram a interpretar os efeitos das transformações sociais e econômicas do país em diferentes vertentes. De acordo com Oscar Terán, os membros da chamada geração de 1880, entre eles Vicente Quesada, apresentavam como ponto comum um "lamento tradicionalista", típico de épocas de mudanças aceleradas, em que se combinavam os impulso à modernização e a queixa de algumas de suas consequências (TERÁN, 2009, p. 114). Nesse sentido, Quesada mostrou-se preocupado com a ganância e a pouca disposição dos estrangeiros em nacionalizar-se, acarretando na perda de características efetivamente nacionais (TERÁN, 2000, p. 24; 59). O novo cenário político, econômico e cultural orientava as pautas de discussão. As elaborações de Vicente Quesada foram motivadas, em primeiro lugar, pela 2 A ocupação destes territórios, na chamada Conquista do Deserto, ocorreu por meio de ações militares entre os anos de 1878 e 1885 - com destaque à campanha comandada por Julio A. Roca em 1879 - que buscaram essencialmente, expulsar os índios da região localizada ao sul de Buenos Aires de modo a incorporar as terras da região. 4

Conquista do Deserto, que junto com o definitivo tratado fronteiriço firmado com o Chile redimensionaram a geografia argentina; e em segundo lugar, pela massivo ingresso de imigrantes no país, que questionava a hierarquia da tradicional sociedade criolla. Vinculado a esse último fenômeno, o cosmopolitismo irradiado a partir de Buenos Aires, deu lugar a uma reação destinada a recobrar as raízes nativas e hispânicas da argentinidade. Esses fatores favoreceram a emergência de um mito fundacional que não só fixava as raízes da nacionalidade em tempos remotos, mas criava um ponto de convergência na nova ordem social (CAVALERI, 2004, p.14). Embora a presidência de Júlio A. Roca não tenha representado uma ruptura em relação ao período anterior, a mensagem governamental, difundida por meio do jornal La Tribuna Nacional, como demonstrou Paula Alonso, afirmava que a Argentina havia entrado em uma nova era, identificada com o progresso econômico e social (ALONSO, 1997). A estabilidade política e econômica da década de 1880 conduziu as discussões entre os intelectuais argentinos em torno de uma determinada problemática. Esta agrupava questões relacionadas ao mundo do trabalho, a ampliação da participação política, a incorporação dos imigrantes à sociedade argentina e a construção de uma identidade coletiva (TERÁN, 2009, p. 111). A Nueva Revista de Buenos Aires se propôs a discutir esse último aspecto. A imprensa era o principal veiculo para o debate dessas questões. Os periódicos se tornaram porta vozes de grupos políticos e intelectuais que aspiravam exercer influência na sociedade. Nas últimas décadas do século XIX, surgiram diversas publicações em Buenos Aires, que naquela conjuntura contava com uma das maiores circulações periódicas por habitante a nível mundial (ALONSO, 1997, p. 38). De acordo com Hilda Sabato: La prensa constituía una pieza clave del sistema político. Por un lado, se la consideraba un instrumento fundamental para el desarrollo de las formas republicanas y la creación de una sociedad racional e ilustrada. A ella correspondía representar a la vez que forjar a la opinión pública, pilar del sistema político moderno (SABATO, 1999, p. 197). Em 1881, Vicente Quesada fundou a Nueva Revista de Buenos Aires, por meio da qual participou ativamente dos debates políticos e culturais argentinos, sobretudo no que concernia à construção identitária e ao lugar ocupado pelo país no continente americano. O mensário, que contava em média com 160 páginas, era dividido entre assuntos americanos, sob a direção de Vicente Quesada, e europeus, aos cuidados de Ernesto Quesada e ambas as partes eram subdivididas em seções que tratavam de política e cultura literária. No prefácio do primeiro volume, porém, Vicente Quesada 5

afirmou que a história americana se constituía na especialidade da Nueva Revista, sendo a "parte europeia" um contraponto para que os leitores pudessem apreciar os avanços argentinos em comparação com os que se realizavam no velho continente (QUESADA, 1881, p. 06). O novo empreendimento deu sequência aos propósitos esboçados em suas publicações anteriores, ao dedicar grande atenção à integração da República. Eram publicados diversos artigos a respeito das províncias e de intelectuais provenientes do interior, com o objetivo, segundo Quesada, de suplantar o isolamento cultural em que as unidades nacionais ainda se encontravam. Contudo, a revista deu maior destaque às relações políticas e culturais mantidas com as nações latino-americanas, manifestando, assim, a preocupação em torno da construção de uma identidade para além das fronteiras nacionais, que apresentava a Argentina como um referencial na América do Sul. De acordo com Quesada, a definição das fronteiras - evitando-se a perda de novos territórios - era primordial para o fortalecimento da nação. Foram publicados inúmeros artigos sobre as pendências lindeiras da Argentina com o Chile e o Brasil, alguns deles posteriormente reunidos e convertidos em livros, a exemplo de Virreinato del Río de la Plata (1776-1810): apuntamientos crítico-históricos para servir en la cuestión de límites entre la República Argentina y Chile e La cuestión de límites con Chile, considerada bajo el punto de vista de la historia diplomática, del derecho de gentes y de la política internacional, ambos de autoria de Vicente Quesada. Estes e outros artigos publicados na Nueva Revista contribuíram para lançar as bases do nacionalismo territorial argentino. É importante destacar que o constante discurso sobre as supostas perdas territoriais, a ideia de uma proposta falida de uma grande nação e, consequentemente a desvalorização das nações limítrofes, que malograram esse projeto, bem como uma perspectiva de reconstrução do Vice Reino como grande objetivo histórico da política exterior argentina, foram transmitidos por outros historiadores do país e constou até mesmo em manuais escolares de história e geografia, atlas históricos e ensaios de geopolítica e história diplomática (CAVALERI, 2004, p. 12). Essa ideia conduziu à crença de que a Argentina havia perdido um patrimônio territorial correspondentes às atuais repúblicas da Bolívia, Paraguai e do Uruguai, além de partes significativas incorporadas ao Chile e ao Brasil (CAVALERI, 2004, p. 13). 6

Ao atribuir uma importância fundamental à herança do Vice Reino e lamentar as perdas de territórios que deveriam ser argentinos, Quesada apresentou uma visão bastante crítica acerca das "pequeñas naciones que han traicionado el gran proyecto" (CAVALERI, 2004, p. 64). Nesse sentido, construiu o argumento de que essas "pequenas e ingratas" nações possuíam uma dívida com a Argentina, uma vez que esta havia conduzido suas independências com muitos sacrifícios. Em contrapartidas essas repúblicas não só haviam se colocado contra a unidade histórica e geográfica, mas tinham ambicionado porções territoriais em prejuízo das Províncias Unidas (CAVALERI, 2004, p. 65). Vicente Quesada assegurava, contudo, que a restauração dos contornos do Vice Reino seria impossível sem a deflagração uma guerra indesejada, o que implicava na inviabilidade da proposta. Dessa forma caberia à Argentina fomentar as afinidades entre os países limítrofes, por meio dos mais variados tratados de integração, livre comércio, união aduaneira e pela aproximação cultural, com o objetivo congregar tais territórios. A seção literária da revista cumpria o propósito de promover um acercamento entre os países da América do Sul. Esta era composta por artigos sobre o movimento intelectual tanto na Argentina quanto nos demais países latino-americano e resenhas de livros de autores do continente, cuyas obras conviene dar á conocer y popularizar, para crear el mercado y fomentar la venta del libro americano (QUESADA, 1881, p. 06). Consideramos que esta seção possuía um duplo propósito para o periódico: a construção de um ideário nacional, que inspirasse um sentimento de identidade e a inserção da Argentina como um referencial cultural na América Latina. Ao final do século XIX a necessidade de forjar a nação e caracterizar o seu povo eram algumas das principais preocupações dos intelectuais do continente. A luta pela elaboração desse imaginário teve como palco principal o universo literário (VENTURA, 1991). No Brasil, um dos grandes nomes desse período foi Silvio Romero, que inclusive assinou um artigo na Nueva Revista de Buenos Aires. Quanto às relações com os demais países americanos, a exemplo da maioria das revistas político-culturais do século XIX, a Nueva Revista tinha como modelo a publicação francesa Revue des Deux Mondes, importante canal de circulação de ideias entre a Europa e a América e cujo objetivo era promover vínculos culturais, políticos e econômicos entre a França e o mundo extraeuropeu e estabelecer uma liderança francesa sobre estes territórios (PRADO, 2010, p. 193). 7

A Nueva Revista conferia, assim, um grande destaque aos movimentos intelectuais no países da América do Sul, publicando textos de autores latinoamericanos e reproduzindo artigos de revistas desses países. O objetivo apresentado pelo editor era fomentar o conhecimento dos argentinos em relação aos seus vizinhos e compreender qual era o papel que, em interesse próprio e no da paz do continente, correspondia à República Argentina. A revista exaltava as iniciativas literárias dos países vizinhos e procurava um intercâmbio com as mesmas, oferecendo espaço para a publicação de resenhas e artigos de homens de letras latino-americanos que quisessem contribuir para a ampliação da interação entre as nações do continente. Quesada considerava a literatura um instrumento para a construção da nação, por esse motivo criticava os governos e as populações latino-americanas que deixavam algumas revistas culturais encerrarem suas atividades por falta de recursos e assinaturas. Nesse sentido, em artigo de 1882, Quesada lamentou a falência da Revista Brasileira e da Revista de Chile "últimas víctimas de la indiferencia de públicos paralizado por el mercantilismo" (QUESADA, 1882, p. 459), além de citar outros títulos na própria Argentina, inclusive a Revista de Buenos Aires, dirigida por ele entre os anos de 1863 e 1871. Diante desse cenário, Quesada se perguntava como seria possível as revistas argentinas, e latino-americanas de modo geral, superarem em importância as publicações estrangeiras. A comparação com a Revue des Deux Mondes ofereceu a resposta: Cuál es el número de ejemplares que edita la Revue des Deux Mondes? Mas de veinte mil; luego, pues, su director puede ser exigente, porque la colaboracion es bien remunerada, dá crédito al que escribe y da provecho. Los primeros literatos pueden ser buscados, y sus trabajos y sus trabajos son verdaderamente de alto mérito: han empleado su tiempo con provecho y con honra. Pero es posible sostener una Revista que no alcanza á mil suscritores en toda la República? Sucede entonces que solo escriben por patriotismo ó por aficion á las bellas letras, los que tienen algun ocio de que puedan disponer. (QUESADA, 1882, p. 458). O patriotismo, porém orientava a manutenção do empreendimento jornalístico. Apesar das dificuldades, a revista perdurou até o ano de 1885, quando Vicente e Ernesto Quesada assumiram cargos diplomáticos nos Estados Unidos. Ao final dessa análise, destacamos a atuação de Vicente Quesada na construção do nacionalismo territorial argentino. Apesar de reconhecer a inviabilidade da restauração dos contornos do Vice Reino do Rio da Prata, os escritos do jurista e historiador argentino contribuíram para a constituição de em um sentimento nostálgico 8

relacionado a uma suposta perda de grandes extensões territoriais e consequentemente, um olhar depreciativos dirigido às nações vizinhas, por terem frustrado tal propósito. Contudo, a liderança argentina, de acordo com Quesada, deveria se manifestar com vistas a uma integração simbólica. Assim, por meio da Nueva Revista de Buenos Aires, Quesada fomentou o intercâmbio cultural e atuou no sentido de promover o protagonismo argentino nesse setor. Tais concepções foram repetidas inúmeras vezes, contribuindo para a formação de um imaginário e uma identidade internacional argentina, assentada na questão territorial e no objetivo de restituição da grandeza que lhe foi furtada com o desmembramento do Vice Reino do Prata, gênese da nação argentina. Referências bibliográficas ALONSO, Paula. En la primavera de la historia. El discurso político del roquismo de la década del ochenta a través de su prensa. Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana Dr. Emilio Ravignani. Tercera serie, n. 15, p.35-70, 1997. BERTONI, Lilia Ana. Patriotas, cosmopolitas y nacionalistas. La construcción de la nacionalidad argentina a fines del siglo XIX. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2001. CAVALERI, Paulo. La restauración del Virreinato. Orígenes del nacionalismo territorial argentino. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2004. DEVOTO, Fernando; PAGANO, Nora. Historia de la historiografia argentina. Buenos Aires: Sudamericana, 2009. DONGHI, Tulio Halperín (org). Proyeto y construcción de una nación. (Argentina 1846-1880). v.68. Biblioteca Ayacucho, 1980.. Una nación para el desierto argentino. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1982. EUNAJIAN, Alejandro. Por uma historia nacional desde las províncias: el frustrado proyecto de Vicente Quesada em la Revista del Paraná. In Cuadernos del Sur. BD, 39, p. 73-92, 2010. NODARI, Daniel Jacob. La Revista de Buenos Aires: construindo a nação argentina através da história durante a década de 1860. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Paraná: Curitiba, 2013. 9

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