AS RELAÇÕES DE PODER E DE LIBERDADE EM DOCUMENTOS JURÍDICOS DO SÉCULO XIX 130

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Transcrição:

Página 647 de 658 AS RELAÇÕES DE PODER E DE LIBERDADE EM DOCUMENTOS JURÍDICOS DO SÉCULO XIX 130 Vanessa Oliveira Nogueira de Sant Ana (UESB) Prof. Dr. Jorge Viana Santos** (UESB) RESUMO No presente trabalho, a partir do estudo historiográfico sobre a escravidão no Brasil e de documentos do século XIX originários da 1ª Vara Cível do Fórum João Mangabeira, Seção Judiciária de Vitória da Conquista - Bahia, objetivamos contribuir para a construção da memória da Escravidão da Região Sudoeste, investigando preliminarmente: a) Que tipo de documentos judiciais do século XIX, envolvendo a correlação de poder vinculada à liberdade encontra-se sobretudo em Vitória da Conquista - BA; b) Que relações ao mesmo tempo jurídicas e de poder envolvendo a liberdade se materializam linguisticamente em documentos como esses revelando sentidos específicos analisáveis à luz da Semântica e da Teoria do Direito. PALAVRA CHAVE: Discurso jurídico; Semântica; Escravidão. INTRODUÇÃO O presente projeto de pesquisa de iniciação científica vincula-se a um projeto maior de Santos (2010), denominado Sentidos da palavra 130 Trabalho vinculado ao Projeto de Pesquisa: Sentidos da palavra liberdade em cartas de alforria: contribuição da Semântica para a memória da escravidão, coordenado pelo prof. Dr. Jorge Viana Santos. Bolsista IC/Fapesb. Discente do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia campus de Vitória da Conquista (BA). ** Doutor em Linguística (UNICAMP), Orientador da pesquisa. Professor do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários da UESB campus de Vitória da Conquista (BA).

Página 648 de 658 liberdade em cartas de alforria: contribuição da Semântica para a memória da escravidão, o qual, fundamentado na Semântica do Acontecimento e na Semântica Argumentativa, e dialogando com outros projetos parceiros (cf. SANTOS; NAMIUTI, 2010), (...) investiga a hipótese de que as cartas de alforria, historicamente consideradas instrumentos legais de libertação, funcionam, paradoxalmente, como instrumentos linguístico-históricos de libertação-dominação. Nesse sentido, questionamos: a) Que tipo de documentos judiciais do século XIX, envolvendo a correlação de poder vinculada à liberdade encontrase na região sudoeste, sobretudo em Vitória da Conquista - BA? b) Que relações ao mesmo tempo jurídicas e de poder envolvendo a liberdade se materializam linguisticamente em documentos como esses revelando sentidos específicos analisáveis à luz da Semântica e da Teoria do Direito? MATERIAL E MÉTODOS Nesse sentido, buscando responder preliminarmente as questões levantadas, em primeiro lugar, transcrevemos documentos jurídicos do séc. XIX integrantes do Corpus DoVic (cf. SANTOS; NAMIUTI, 2010); em seguida fizemos um estudo classificatório-tipológico para, posteriormente, recorrendo a elementos da Semântica em combinação com o Direito, executar uma descrição analítica dos documentos encontrados. De tal modo, esperamos contribuir simultaneamente tanto para a pesquisa em Linguística quanto para os estudos do Direito e da Memória. Ademais, selecionada a amostra de documentos, realizou-se a transcrição pelo método paleográfico utilizando-se o E-dictor, ferramenta de edição eletrônica desenvolvida para corpora baseados em textos antigos e, desenvolvido pela Profa. Dra. Maria Clara Paixão de Sousa (USP), Fábio Kléper (USP) e Pablo Faria (UNICAMP).

Página 649 de 658 RESULTADOS E DISCUSSÃO Dos documentos jurídicos do séc. XIX transcritos por nós encontrados no Fórum João Mangabeira, da então Imperial Villa da Victoria (atual Vitória da Conquista) classificamos até o momento: cartas de alforria: gratuitas, condicionadas, pagas e onerosas; testamentos; inventários; documentos de garantia hipotecária; documentos de compra, venda e quitação; dentre outros. Para análise das relações jurídicas e de poder, selecionou-se um documento jurídico: uma escritura hipotecária, naquele período, denominada como escritura de débito, obrigação e hypotheca, datada de 1887. A escritura de débito, obrigação e hypotheca inicia-se com a informação de qual tipo de documento jurídico se tratava, no caso escritura de hipoteca, seguido das partes que celebravam tal negócio jurídico, os devedores hipotecantes e o credo hipotecário. No desenvolvimento do documento encontra-se a data, o local e novamente as partes do contrato, ademais há uma descrição pormenorizada dos bens dados em garantia hipotecária, assim como a descrição do prazo dado para o pagamento da dívida e que tal negócio se dava de livre e espontânea vontade pelas partes. Em seu fecho o documento tabelião certifica de boa fé que os bens dados em garantia hipotecária estavam livres de quaisquer outros ônus, além do local e data da celebração do mesmo e a assinatura das partes. Por conseguinte, para que se perceba a relação de poder numa escritura de garantia hipotecária destaquemos o seguinte trecho que diz: (...) como hypothecado fica de suas livres e expontaneas vontades os bens se guintes= um sitio denominado= Engenho Novo= sito no lugar chamado Verruga, em terras próprias, com caza de morar, (...),

Página 650 de 658 uma junta de bois mancos e uma escrava denome Roza, parda, matriculada no Município desta Villa (...). (Escritura de débito, obrigação e hypotheca. Ano: 1887, Corpus Dovic) Pelo trecho transcrito pode-se observar relações de poder entre o senhor e o escravo em que o primeiro é sujeito de direito (pode hipotecar), e o segundo é objeto de direito (um bem hipotecado), a rigor um bem. Percebe-se, destarte, nos documentos jurídicos, de que esse é uma amostra, a presença de descrições dos escravos como garantia hipotecários, assim como passíveis de serem comprados e vendidos, ou mesmo doados em herança. Tal fato, demonstra, portanto, a posição dos escravos na sociedade brasileira do século XIX, em face da posição simétrica dos senhores. E, linguisticamente, tais relações se materializam como posições de sujeito (senhor e escravo) demonstrando, como postula Guimarães (2005), que a língua é histórica. CONCLUSÕES Assim concluímos com base nos dados aqui analisados preliminarmente, que, de fato, materializam-se linguisticamente em tais documentos a correlação de poder envolvendo juridicamente senhor e escravo, correlação esta vinculada à liberdade no contexto da escravidão (cf. SANTOS, 2008). Isso se demonstra pelas expressões: de suas livres e expontaneas vontades (relacionadas à posição senhor) e uma escrava (relativa à posição escravo), as quais revelam, à luz de análise científica a exemplo da Semântica em correlação com o Direito, a aceitação juridicamente legalizada e normal de pessoas serem tidas como objetos de direito

Página 651 de 658 REFERÊNCIAS BRASIL. Lei nº. 2040 de 28 de Setembro e 1871 (Lei do Ventre Livre). In: MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p. 238-240. GUIMARÃES, E. Semântica do Acontecimento. Campinas: Pontes, 2005. MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da Abolição Escravos e senhores no Parlamento e na Justiça. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. PENA, E. S. Pajens da Casa Imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001. SANTOS, Jorge Viana. Liberdade na escravidão: uma abordagem semântica do conceito de liberdade em cartas de alforria. 257p. [Tese de doutorado em Linguística]. Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP: 2008. SANTOS, Jorge Viana; NAMIUTI, Cristiane. Memória conquistense: recuperação de documentos oitocentistas na implementação de um corpus digital. Vitória da Conquista: UESB, 2010. Projeto de pesquisa. SANTOS, Jorge Viana. Sentidos da palavra liberdade em cartas de alforria: contribuição da Semântica para a memória da escravidão. Vitória da Conquista: UESB, 2010. Projeto de pesquisa.