José Martins Garcia OBRAS POESIA REUNIDA Feldegato Cantabile Invocação a um Poeta e outros Poemas Temporal No Crescer dos Dias abertura de Renata Correia Botelho 2018
Delimitar à faca o nevoeiro Há nomes que vão existindo connosco numa convivência serena. Assim se passou, desde que me lembro, e graças à casa que me foi colo, com José Martins Garcia. Um nome sempre presente e muito admirado. Apesar dessa proximidade, contudo, conhecia mal a sua poesia (e toda a sua obra). Lera-a de forma esparsa, quando e onde, na ligeireza do tempo, nos cruzávamos. Revisitá-la agora foi, pois, uma experiência impressionante. E surpreendente, confesso, não pela sua (óbvia) consistência, mas pela sua fragilidade, a fragilidade lúcida que dá corpo à mais notável grandeza. Para percebermos, desde logo, uma característica basilar desta poesia, tomemos a magnífica epígrafe da sua estreia poética (feldegato cantabile, 1973) «si je préfère les chats aux chiens, c est qu il n y a pas de chats policiers». Adverte-nos bem para o que nos espera. Com uma poesia complexa e multiforme, plena de um ritmo e de uma música singulares, que se movimenta, de forma por vezes violenta, entre a ironia e a amargura, a dor concreta do desencanto e a ilha simbólica da distância, Martins Garcia não é poeta de mimos telúricos e foge a qualquer prisão. Não há cão que o policie, não há mão que o detenha na esterilidade das categorias. Nesta sua primeira obra poética apresenta-nos um tecido variado na forma (intercalando poemas com textos em prosa), ainda que o fino recorte irónico atravesse todas as páginas. Há um gato que nos vai guiando elegante e sagaz, cuja presença nos é dada por um espantoso registo imagético que nos faz seguir a criatura, quase afagando o seu pelo macio. Um «Gato silencioso» (a quem incomoda o chiu de sempre ), um «Gato paciente ouvinte» (que nos interpela: vossa excelência não mia / vossa excelência é um exemplo / chapado / de antipatia ), um «Gato me- 9
josé martins garcia teorológico, que, num escuso recanto da arca de noé / (...) faz paciências olhando a aquática paisagem), um «Gato marinheiro» (que nos informa que já lá vai mais de ano e dia / que andam na volta do mar / enraízam na acalmia / já não têm mais que sonhar), um «Gato filósofo» (que nos diz que tudo é poema na vida / se pensado em geometria / persistente ), um «Gato babélico» (que nos relata o esforço dos linguistas na busca da chave do enigma original ), um «Gato espacial» (que nos fala da lua que dá prestígio ao possuidor / como ter uma amante famosa / sem jeito para o amor ), um «Gato eleitor» (que nos conta que era uma vez / um gato português / não dizia sim / nem não nem talvez ). Irónico e sarcástico, este gato, em todas as suas poses. Por entre as deambulações felinas, encontramos a prosa poética não menos felina nem menos mordaz. Os títulos, juntando normalmente substantivos triviais, tanto nos direccionam para temas caros ao autor («A Cortina e o Palco», por exemplo), como para questões iminentemente quotidianas («O Telefone e o Televisor», «O Caixote e o Lixo», «O Charuto e a Mortalha»), como para um perfeito espanto («O Galheteiro e o Peru», «O Prato e o Ódio», «A Cadeira e o Cu», «O Frigorífico e o Átomo»). Alguns, atrevo- -me a dizer, são versos, por si só: «A Trela e o Trevo», «O Velho e a Voz», «O Vampiro e Eu». Seguimo-los, no seu cunho narrativo, encontrando simultaneamente um lirismo incisivo ( acumular o nevoeiro. fabricar concentrado de nevoeiro, atrair o nevoeiro a uma cilada, delimitar à faca o nevoeiro. e depois exportá-lo ), um desassombro na observação das coisas e do mundo ( o crânio não é mais do que uma estrutura ausente, uma subjacência que produz a peruca tal como o estrume produz as flores ) e uma crítica acutilante ( o caixote é como o espírito dos contemporâneos. engole o que nele depositam sem um reflexo que o conduza ao vómito. ( ) o caixote é cultura. O caixote é o poema da boa educação, do educar, do duque, do duce, dudu ). E, por todo o lado, damos com um poeta que não se conforma nem se encaixa, que mordazmente se opõe a quaisquer formas de seguidismo. 10
poesia reunida Onze anos depois, dá à estampa Invocação a Um Poeta e Outros Poemas. Mais do que no livro anterior, onde era vincada a transição de um texto para o outro, estamos agora perante um conjunto que funciona como poema único. Ou, se quisermos, dois longos e belíssimos poemas, o primeiro dirigido a um tu que partiu ( diz- -me apenas se há mar nesse escuro onde habitas ) e cuja falta, irreparável, derrama solidão em cada verso ( desde que partiste aumentou a pergunta / em cada madrugada a resposta se esconde ). Um texto soberbo e doloroso, urdido numa estrutura tão simples: versos que, começando com diz-me, interrogam esse tu acerca do lado de lá do horizonte (um tu poeta diz-me tu que és de Dante camarada / se os poetas poetam no reino tripartido ), intercalados com outros, que se iniciam por desde que partiste e dão conta do vazio que se abate sobre aquele que permanece deste lado. Não conhecemos o destinatário de tal composição (Nemésio, Antero, Pessoa? ), mas julgo que, enquanto leitores de um Martins Garcia já habitante d esse além baptizado mistério, o encontramos, pleno e em toda a sua angústia existencial, neste tu pungente. O tom de despedida prolonga-se para a segunda parte, o regresso que não acontece, o demónio da espera, a solidão, a ilha no fundo de um poço, o Tempo engolidor de divos e humanos. Eis-nos perante um livro mais dorido do que o anterior, de um lirismo (a nosso ver) mais contundente: a linguagem do mundo fez-se coisa e o poeta / pode sem cura ausentar-se e dormir. Ancorados em repetições de palavras (anáforas, dirão talvez os que disto realmente sabem), há inúmeros versos deste livro que recebemos como autênticos mantras. Deixamos ao leitor a tarefa luminosa desse encontro. A este segue-se, pouco depois, um mergulho mais fundo. Temporal (1986) é uma tempestade de melancolia e de cansaço, para a qual recebemos um aviso (além do título) no poema inicial: só eu sou o sem deus a contas só comigo. Aqui, Martins Garcia vai abdicando, paulatinamente, de recursos como a rima e a anáfora. 11
josé martins garcia Está talvez, nesse aspecto formal, mais livre do que nunca, mas este é um livro terrível e desabrigado. Vemos-lhe a doença infinita do entardecer, sabemo-lo farto de coisas sérias. farto de coisas tristes. e no entanto triste e sério como um cadáver esquecido num matagal anónimo, exausto de si e dos outros, que deseja uma mesa de pé- -de-galo para conviver com alguém diferente dos asnos palrantes do [seu] tempo. Encontramos um poeta que nos confessa: roubaram- -me // o meu palmo de luz, um poeta mais disposto ao milagre das palavras do que ao milagre banal que foi a vida. Um poeta a colocar-se a dúvida primordial amei alguém ou algo alguma vez? (e fazendo-nos pensar em Herberto Helder: li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, / quando alguém morria perguntavam apenas: tinha paixão? ), a que responde no poema seguinte, de forma tremenda: não ter amado nada foi enfim / minha soma de orgulho e de miséria. Um livro à beira do abismo, feito de uma matéria des-sonhada, acutilante adjectivo do autor que, num poema próximo do final da obra, nos faz em pedaços com esta lâmina poética sem lugar a adjectivos: tristeza inverno ocaso exílio / inverno ocaso exílio solidão / ocaso exílio solidão o corpo / exílio solidão o corpo um caixão / solidão um corpo um caixão o descrer / o descrer a descer pelo corpo exílio / o exílio a descer pelo corpo solidão. E chegamos, em 1996, com no Crescer dos Dias, àquela que foi a sua despedida da poesia. Neste quarto livro, decorridos dez anos do cavado Temporal, o título acende-nos uma ligeira esperança. Mas cedo percebemos estar perante uma poesia outonal, ciente de que Crescem os dias sem mais intenção / Que decrescerem no findar de Junho. O livro, de um enorme despojamento e que nos devolve a impressão de poema único, com a rima de regresso e uma métrica espantosa, faz-se sem títulos, a cada poema correspondendo apenas a singeleza de um número. Encontramos, vezes várias, um interlocutor difuso: O corpo amado? O seu corpo que declina? O passado e a memória? O leitor que lhe segue os versos? O livro está, de facto, cheio de dias que crescem, mas Grão a grão Gota a gota Na 12
poesia reunida ampulheta. Percorremo-lo como quem contempla a tela crepuscular de um impressionista, pincelada pela ilha (sempre a ilha), pelo mar (sempre o mar), pela impiedade do tempo (sempre o tempo), agora ainda mais voraz: Crescem os dias E com quanta gula / Se demoram sugando o olhar que os fita! / Crescem os dias como uma infinita / Algema que em silêncio se estipula. A sobriedade da linguagem lembra-nos mesmo, amiúde, a mestria do haiku japonês: Crescem os dias Mas como é tardio / O crescer da ruína! ; Até nos olhos do meu cão, o clima / Coloca névoas de abissal torpor. E assim percorre o poeta, verso a verso, o crescer dos dias, Até que brilhe enfim a alta lógica / Do mundo livre de homens e relógios / ( ) / E não mais calendários rociados, / Nem pálpebras inchadas de palavras; / E natural se cumpra a vera vida / Sem pensamento alheio a traduzi-la. Neste tom se despede de nós, no que à sua poesia toca. [C]hamo a isto uma breve amostragem / da alma (se ela é língua) às postas / e pouco rentável no mercado do saber são versos que retomamos do seu segundo livro. Dizem bem da sua poesia (e de todo este labor poético). Entre o registo inicial mais sarcástico e o ocaso lírico do livro último, vertem-se mais de vinte anos em milhares de versos. Passa-se da ironia ao lamento, da crítica cáustica do outro e de si ao mergulho no mais solitário inferno do eu. Martins Garcia é um poeta, a todos os títulos, enorme. Enorme e inapreensível. Um poeta luminoso movimentando-se nas sombras, e consciente, como poucos (cedo no-lo diz em feldegato cantabile), de que uma alma é um cagagésimo de estrume e qualquer humano tão valioso como um piolho do deus que o ignora. Renata Correia Botelho 13