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Transcrição:

Excelentíssimo Senhor (a) Ministro (a)... O Procurador-Geral da República, nos autos da Petição nº 3388 em que é requerente Augusto Afonso Botelho Neto e requerida a União, tendo em vista as condições estabelecidas no voto do Ministro Menezes Direito, vem à presença de Vossa Excelência apresentar o memorial anexo. Brasília, 16 de março de 2009. ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

Petição nº 3388 Autor: Senador Augusto Afonso Botelho Neto Ré: União Relator: Ministro Carlos Britto MEMORIAL Tendo em vista que no próximo dia 18 do corrente mês retorna ao plenário a Petição nº 3388 para continuação do julgamento, que fora suspenso em razão do pedido de vista do Ministro Marco Aurélio, considero oportuno a apresentação de algumas considerações sobre o voto proferido pelo Ministro Carlos Alberto Direito na parte em que apresentou dezoito condições que deveriam ser seguidas em todos os processos versando sobre terras indígenas. É que o estabelecimento dos referidos condicionamentos comporta, ao meu ver, questionamentos de ordem formal e material. OS CONDICIONAMENTOS, ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, SEPARAÇÃO DE PODERES E DEVIDO PROCESSO LEGAL Na compreensão do Ministério Público não cabe a essa Corte Suprema, a partir de obter dictum lançado em voto proferido em sede de processo subjetivo, traçar parâmetros abstratos de conduta, máxime em contexto em que os mesmos não foram sequer objeto de discussão no curso da lide. É certo que o Supremo Tribunal Federal vem relativizando a idéia tradicional, de matriz kelseniana, de que o seu papel no âmbito da jurisdição constitucional é o de mero legislador negativo. A Corte, em sintonia com outros tribunais constitucionais, vem admitindo, em algumas circunstâncias especiais, a prolação de decisões de caráter aditivo.

Todavia, os princípios do estado democrático de direito e da separação de poderes impõem limites para esta atividade normativa do STF que, ao ver do Ministério Público, foram ultrapassados no caso. Na hipótese, sem nenhuma discussão prévia na sociedade, simplesmente foi proposta a edição de comandos gerais e abstratos, em tema extremamente complexo e de enorme relevância social e jurídica. Tal procedimento viola não apenas as regras legais concernentes aos limites objetivo e subjetivo da coisa julgada (CPC, arts. 469 e 472, art. 18 da Lei nº 4.717/65), como também agride os princípios do Estado Democrático de Direito (art. 1º, CF) e da Separação de Poderes (art. 2º, CF), segundo os quais cabe ao legislador, devidamente legitimado pelo voto popular, a prerrogativa constitucional de expedir normas gerais e abstratas de conduta. Ademais, o procedimento adotado para imposição das mencionadas condições ofende também a garantia constitucional do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF). Com efeito, a maior parte das questões abordadas nas referidas condições não guarda qualquer relação com o objeto da lide. Portanto, sobre elas não se estabeleceu o contraditório. Não se concedeu nem as partes, nem aos diversos grupos e instituições afetadas por medidas tão impactantes, qualquer possibilidade de se manifestarem e de tentarem influir na elaboração das citadas condições. A rigor, para proferir orientações gerais dotadas de força impositiva a partir de processos subjetivos, o STF teria de se valer do procedimento adotado para edição de súmula vinculante (art. 103-A; CF). Contudo, na hipótese, isto não seria possível, seja porque não há reiteradas decisões da Corte sobre as matérias que foram objeto das condições (art. 103-A, caput, CF), seja porque estas não geram relevante multiplicação de processos sobre matéria idêntica (art. 103-A, Parágrafo 1º, CF). Portanto, entende o Ministério Público Federal que essa Suprema Corte deve, no julgamento do feito, se limitar à apreciação dos pedidos formulados pelas partes, sem impor condições genéricas para casos presentes e futuros envolvendo terras indígenas.

PETIÇÃO Nº 3388 4 A OFENSA À CONSTITUIÇÃO E À CONVENÇÃO 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO 1 EM DIVERSAS CONDIÇÕES Não há dúvida de que o direito das comunidades indígenas à posse e usufruto das suas terras constitui direito fundamental, haja vista a sua relevância para a proteção e promoção da dignidade da pessoa humana de cada pessoa indígena. Como se sabe, a terra para as comunidades indígenas representa muito mais do que patrimônio material. São as terras que mantêm a continuidade dos grupos étnicos e possibilitam que eles se reproduzam ao longo do tempo, vivendo de acordo com as suas tradições e cosmovisões peculiares. As terras têm significado espiritual e são vitais para a subsistência e florescimento das populações indígenas, e para o direito à identidade de cada um dos seus componentes. Assentada esta premissa, cumpre salientar que, pela sua fundamentalidade, o direito das comunidades indígenas às suas terras reveste-se de transcendente importância no sistema constitucional brasileiro, situando-se em posição extremamente elevada na escala dos valores constitucionais. Daí porque, no confronto com outros direitos e interesses legítimos, ele não pode ser amesquinhado, ou reduzido de forma desproporcional. Contudo, com a devida vênia, foi isto que se deu com as condições sugeridas no voto do ilustre Ministro Carlos Alberto Direito, que atribuíram aos direitos indígenas, na ponderação com outros bens jurídicos, como segurança nacional, desenvolvimento econômico e meio ambiente, uma posição de manifesta inferioridade. Confira-se, a seguir, breves notas sobre algumas das condições: Condição I: O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser suplantado de maneira genérica sempre que houver 1 A Convenção nº 169 do OIT foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº 143/2002 e promulgada através do Decreto nº 5.051/2004. Por versar sobre direitos fundamentais, ela desfruta de hierarquia supralegal, de acordo com a atual orientação do STF.

PETIÇÃO Nº 3388 5 como dispõe o artigo 231 (parágrafo 6º, da Constituição Federal) o interesse público da União na forma de Lei Complementar; A condição estabelecida atribui uma primazia incondicionada ao interesse econômico da União em explorar recursos hídricos e pesquisa e lavra de riquezas minerais sobre os direitos indígenas. Ao ditar que o usufruto titularizado pela comunidades indígenas pode ser suplantado de maneira genérica por lei complementar, a condição praticamente autoriza o Congresso Nacional a desprezar a tutela dos direitos indígenas na disciplina da questão, tornando os direitos de uma minoria completamente dependentes da vontade política da maioria. Ademais, há aqui franca violação ao art. 15. 2 da Convenção 169 da OIT, que estabelece: 2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos existentes nas terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. os povos interessados deverão receber indenização eqüitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades. Observe-se agora o conteúdo das condições V e VI: Condição V: O usufruto dos índios fica condicionado ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;

PETIÇÃO Nº 3388 6 Condição VI: A atuação das Forças Armadas da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai; Não é preciso qualquer esforço para se constatar que tais condições conferem primazia completa e incondicionada à política de defesa nacional, em detrimento dos direitos indígenas. Ademais, elas tornam a tutela dos direitos indígenas dependente das leituras sobre segurança nacional realizadas por órgãos vinculados às Forças Armadas, que, pelo seu perfil institucional, tenderão muitas vezes a supervalorizar riscos e ameaças, em detrimento dos interesses constitucionalmente protegidos das comunidades indígenas. Não bastasse a primazia incondicionada à política de defesa nacional, elas excluem o direito dos povos indígenas de serem ouvidos antes da adoção de decisões que lhes afetem. Neste sentido, as condições ofendem francamente o disposto no art. 6º da Convenção nº 169 da OIT: 1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente, b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes. c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim. 2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa-fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.

PETIÇÃO Nº 3388 7 Também merece consideração específica a condição VII: Condição VII: O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação; A condição referida autoriza, de forma genérica, a instalação de equipamentos públicos, rede de comunicação, estradas e vias de transporte, construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, no interior de terras indígenas, sem sequer condicioná-la ao mínimo respeito aos interesses das comunidades étnicas, detentoras de direitos originários sobre as áreas em questão. Estes empreendimentos podem, muitas vezes, gerar efeitos nefastos sobre a vida das comunidades, afetando a sua cultura e suas tradições e comprometendo o seu modo de vida. Mais uma vez, atribui-se uma primazia absoluta sobre outros interesses diante de direitos fundamentais de uma minoria, de forma incompatível com o sistema constitucional brasileiro. Não se prevê sequer a necessidade de prévia consulta às comunidades indígenas, em ostensiva ofensa ao art. 6º da Convenção nº 169 da OIT. As condições VIII e IX devem igualmente merecer reflexão: Condição VIII: O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica restrito ao ingresso, trânsito e permanência, bem como caça, pesca e extrativismo vegetal, tudo nos períodos, temporadas e condições estipuladas pela administração da unidade de conservação, que ficará sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; Condição IX: O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, em caráter apenas opinativo, levando em conta as

PETIÇÃO Nº 3388 8 tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da Funai; Nas duas condicionantes, atribui-se prioridade à tutela do meio ambiente, em detrimento dos direitos das comunidades indígenas, em desarmonia com a Constituição. Deve-se buscar a conciliação entre estes dois relevantíssimos direitos fundamentais no caso concreto, resolvendo eventuais conflitos pela via da ponderação e do princípio da proporcionalidade, e não sujeitar o primeiro ao segundo. É certo que a condição nº IX determina que o Instituto Chico Mendes leve em consideração as tradições e costumes indígenas, mas tratar-se-á de apenas mais um fator, a ser sopesado pela autoridade ambiental. A tendência natural é a de que, em casos de conflito, o administrador da unidade de conservação, até pela sua posição institucional, ponha em primeiro plano a tutela ambiental, em detrimento do direito das comunidades indígenas. Por outro lado, o caráter meramente opinativo da participação das comunidades indígenas na administração da unidade de conservação não se compatibiliza com o disposto no art. 15. 1 da Convenção 169 da OIT: 1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados. As condições X e XI são também incompatíveis com uma adequada proteção das comunidades indígenas: Condição X: O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pela administração; Condição XI: Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai;

PETIÇÃO Nº 3388 9 Tais condições disciplinam o trânsito de não-índios sobre terras indígenas, sem conceder nenhum espaço para que as próprias comunidades étnicas decidam a respeito. No caso de unidades de conservação, a decisão cabe ao Instituto Chico Mendes, e, fora disso, à FUNAI. Não se prevê nem mesmo a necessidade de oitiva das populações indígenas afetadas, para definição do regime de ingresso de não-índios nas suas terras. Este regime ofende a filosofia da Constituição no trato da questão indígena, que envolve a superação do modelo da tutela, em que os indígenas e suas comunidades eram tratados como incapazes e privados de autodeterminação individual e coletiva. Viola-se, ainda, o arts. 6. 1, a, 7. 1 e 18 da Convenção nº 169 da OIT. específica: Finalmente, a condição XVII comporta consideração Condição XVII: É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada; De todas as condições estabelecidas, talvez seja esta a mais prejudicial aos direitos das comunidades indígenas. Se, em matéria de direitos fundamentais, fala-se hoje em princípio da proibição ao retrocesso social, a condição sob análise instituiu uma espécie de proibição do avanço em matéria de proteção do direito das populações indígenas às suas terras. Porém, é certo que muitas vezes as demarcações têm erros ou vícios, que podem prejudicar às populações indígenas. A condição, da forma como está redigida, impediria a correção destes vícios, sempre que dela resultasse ampliação de terras indígenas. Mas não é só. A realidade das comunidades indígenas não é estática no tempo, mas dinâmica. Se o objetivo da constituinte foi o de assegurar às populações indígenas não apenas as terras habitadas por eles de forma permanente, como também as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo os seus usos e costumes e tradições (art. 231, CF), é certo que mudanças sociais podem eventualmente ensejar a necessidade de ampliação das suas áreas, para que o objetivo constitucional seja logrado. Além disso, a condição XVII pode dar margem à leitura de que seja impossível ampliar terras indígenas através de outras formas que

PETIÇÃO Nº 3388 10 não a demarcação. Contudo, não há nenhuma razão legítima que justifique a impossibilidade de aquisição de novas terras pelas formas tradicionais da legislação civil, como, aliás, está expresso no arts. 32 e 39, III, da Lei 6.001/73. Tem-se, nesta condição, uma clara afronta ao princípio da igualdade, na medida em que, sem qualquer razão plausível, pretendeu-se cercear a possibilidade de tutela e ampliação de direitos de uma minoria étnica vulnerável, que ainda é vítima de preconceito e discriminação. Em face do exposto, espero que essa Suprema Corte rejeite todas as condições sugeridas no voto do eminente Ministro Carlos Alberto Direito, por não ser cabível a definição destas condições em sede de processo subjetivo, e sem prévio contraditório no curso da lide. Caso assim não entenda essa Corte, requeiro que sejam rejeitadas as condições nºs I, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI e XVII. Brasília, 16 de março de 2009. ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA