Sousa Mendes, "O Desobediente de Bordéus"



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DOSSIER Só contra todos Sousa Mendes, "O Desobediente de Bordéus" segunda-feira, 15 de Setembro de 2003 Maio de 1940. Os exércitos de Hitler invadem os Países Baixos. O Luxemburgo cai imediatamente. A Holanda resiste alguns dias. Na Bélgica, contra a vontade do seu Governo, o rei Leopoldo assina a rendição. Milhares de pessoas abandonam os seus lares e fogem para França. Em Antuérpia, apesar dos cinco filhos pequenos, o rabi Chaim Krugger decide esperar o fim do Sabat para partir. Em Bruxelas, Liesel Spett e o marido fecham a casa e partem, com os filhos, de 6 e 3 anos. O destino é Paris, na França ainda livre. Os bombardeamentos das linhas férreas alteram-lhes os planos e é Bordéus que os acolhe, como a milhares de outros refugiados. Incapaz de deter o avanço alemão, a 10 de Junho o Governo francês parte, também ele, para Bordéus. O consulado de Portugal em Bordéus atrai milhares de fugitivos em busca de um visto que lhes permita sair de França, passar Espanha, atingir Lisboa e daí partir, rumo aos Estados Unidos. O que esses fugitivos ignoram é que há ordens estritas de Lisboa para a concessão de vistos. A Circular 14 do Ministério dos Negócios Estrangeiros, dirigido por Salazar, determina que os cônsules de carreira não poderão conceder vistos consulares sem prévia consulta ao Ministério aos estrangeiros de nacionalidade indefinida, contestada ou em litígio, aos apátridas, aos portadores de passaportes Nansen * e aos Russos; (...) àqueles que apresentem nos seus passaportes a declaração ou qualquer sinal de não poderem regressar livremente ao país de onde

2 provêm; aos judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou daqueles de onde provêm. Determinações com que o cônsul de Portugal em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes, católico, monárquico e conservador, cujo irmão gémeo foi ministro dos Negócios Estrangeiros no primeiro Governo de Salazar, tem dificuldade em conformar-se. Sobretudo porque as consultas prévias ao ministério são, normalmente, demoradas e as respostas muitas vezes negativas. Sensível à angústia dos que o procuram, o cônsul já por mais de uma vez infringiu as ordens recebidas. A 24 de Abril, uma carta do ministério ameaçara-o de sanções: Por despacho de 16 de Janeiro último, foi chamada a sua atenção para a irregularidade cometida ao conceder um visto para Portugal no passaporte de Arnold Winitzer e mulher, antes de haver pedido para tal a indispensável autorização deste Ministério. (...) Apesar disso, em 1 de Março, visou o passaporte do médico espanhol Eduardo Neira Laporte, cujo visto esta Secretaria recusou. Ao dr. Neira Laporte foi recusado o desembarque em Lisboa, não só porque visto lhe fôra abusivamente concedido, mas ainda porque a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado o considera indesejável. (...) Fica advertido de que qualquer nova falta ou infracção nesta matéria será havida por desobediência e dará lugar a procedimento disciplinar. Ao contrário dos que, em Lisboa, dão as ordens, Aristides de Sousa Mendes confronta-se, diariamente, com a aplicação das orientações da Circular 14. É que entre as centenas de pessoas desesperadas que acorrem ao consulado em Bordéus, mulheres e homens de todas as idades, muitas vezes com filhos, há judeus, ciganos, apátridas, combatentes contra o nazismo, que vêem no visto português a única forma de escapar ao terror nazi. A 13 de Junho, o ministério recusa-lhe, uma vez mais, a concessão de vários vistos. Entre eles, o do homem que preferira correr o risco de morrer sob os escombros de sua casa a desrespeitar o Sabat, o rabi Chaim Krugger. Sousa Mendes encontrara-o na rua, frente à sinagoga, com a mulher e os filhos. Pai de 13 filhos, o cônsul é sensível à situação dos Krugger e convida-os para ficarem em sua casa até à chegada dos vistos, de cuja autorização não duvida. Chaim Krugger aproveita a ocasião para explicar ao diplomata tudo o que sabe sobre a perseguição nazi aos judeus. Para o católico convicto que é Sousa Mendes, não faz sentido que alguém seja perseguido por razões religiosas e, perante a negativa de Lisboa, decide, ainda assim, conceder vistos aos Krugger. O rabi, no entanto, recusa: não são eles os únicos a precisar de salvação. Todos os judeus que se comprimem às portas do consulado correm os mesmos riscos. É para todos os seus irmãos que requer a ajuda do cônsul. Sousa Mendes hesita. Esgotado, cai de cama durante três dias. Mas quando, ao quarto dia domingo, 16 de Junho, se levanta, tomou uma decisão: vai dar vistos a todos os que o necessitarem e ordenar que o façam também os consulados dependentes de Bordéus.

3 Os refugiados que se apinham à porta do consulado 14, Quai Louis XIV vêem um excitado rabi Krugger, sem chapéu nem casaco, sair do consulado e gritar: Judeus! Dai-me os vossos passaportes! Conseguir-vos-ei vistos! Também Otto de Habsburgo, depois de Sousa Mendes ter visado pessoalmente os passaportes da família imperial austríaca, faz chegar ao consulado centenas de passaportes de cidadãos austríacos em fuga, que igualmente recebem os necessários vistos. Enquanto Sousa Mendes, ajudado por familiares e funcionários, trabalha sem cessar, também em Bordéus, Pétain prepara o armistício e De Gaulle decide partir para Londres. A 17, 18 e 19 de Junho, o consulado de Portugal em Bordéus emite milhares de vistos. Na noite de 19, a cidade é bombardeada. Para os refugiados que como os Bromberger e os seus três filhos, fugidos de Antuérpia em Maio julgavam poder esperar em Bordéus até ao fim da guerra, é de novo a fuga, a caminho de Baiona. O vice-cônsul português em Baiona, Faria Machado, recebeu de Sousa Mendes ordens para desobedecer à Circular 14 e conceder vistos a quem o solicitasse. Inquieto, avisa o ministério que envia a Baiona o cônsul Lopo Simeão. Quando chega a Baiona, a 22 de Junho, este encontra, em redor do consulado 8, Rue du Pilori, onde Sousa Mendes ajuda Faria Machado e Vieira Braga, cônsul honorário, a emitir vistos, o que descreve, em telegrama para o ministério, como circunstâncias tragicamente anormais e incalculável multidão em situação verdadeiramente desesperada enchendo as ruas na proximidade do consulado. Sylvain Bromberger, então com 15 anos, lembra-se de esperar, na praça contígua, que lhes fossem visados os passaportes entregues no consulado pelo irmão mais velho, David. De vez em quando, alguém chegava à praça com um molho de passaportes e gritava alguns nomes. Quando, finalmente, ouviu Bromberger, soube que a família tinha uma possibilidade de salvar-se. Horas mais tarde, chega por sua vez a Baiona o embaixador de Portugal em Madrid, Pedro Teotónio Pereira. Homem da confiança de Salazar, aclara as instruções para a concessão de vistos: Vistos de passaportes Nansen só com bilhetes de barco. De resto, podem receber vistos ingleses, americanos, americanos do Sul, franceses gente limpa! e belgas personalidades!, atendendo também a outros recomendados pelas embaixadas e legações. Tudo para nos termos da informação ao ministério de Lopo Simeão evitar a entrada em Portugal de uma massa ignóbil e em grande parte indesejável do ponto de vista social. No dia seguinte, Teotónio Pereira, acompanhado de Faria Machado e Lopo Simeão, dirige-se a San Sebastian, para dali contactar o ministério, em Lisboa. Em Hendaia, encontra Sousa Mendes, que ali acompanhara alguns refugiados e continuava a conceder vistos.

4 Liesel Spett, que nesse dia atravessa a fronteira, lembra-se de o ver, de gabardina, encostado a um carro, a passar vistos em todos os papéis que lhe estendiam. Milhares de pessoas atravessaram, desde 19 de Junho, a ponte internacional de Irún e esse dia 23 de Junho é apontado pelas agências internacionais como um dos dias de maior trabalho para os guardas fronteiriços espanhóis. Quando, chegada a Irún, a família Bromberger olhou para trás, na direcção de Hendaia, viu que tinham já chegado os primeiros soldados alemães. Já o compositor e pianista Norbert Gingold, judeu austríaco, que tinha recebido o visto português, não conseguiu visto de trânsito de Espanha. Teotónio Pereira comunicara entretanto às autoridades espanholas a decisão de dar por nulos os vistos concedidos pelo consulado em Bordéus a numerosíssimas pessoas que ainda se encontravam em França, acrescentando que o referido cônsul havia perdido o uso da razão. O adido militar alemão em Madrid citado por Lopo Simeão louva a atitude correcta tomada pelo Governo português, filtrando essa precipitada corrente de imigração. Sousa Mendes é mandado regressar a Lisboa. A 4 de Julho, Salazar, que acumula a pasta dos Negócios Estrangeiros com o seu cargo de presidente do Conselho, ordena a abertura de um inquérito aos acontecimentos de Bordéus e Baiona. (Dois dias antes, em mensagem ao representante português em Londres, parecia saber de antemão o resultado: Vistos concedidos em Bordéus foram-no em contravenção de instruções expressas do Ministério, por cônsul que já afastei do serviço. ) A nota de culpa refere a concessão de vistos a pessoas pertencentes a nacionalidades para as quais, por determinação do Ministério dos Estrangeiros, estava interdita a concessão de qualquer visto. A nota acrescenta que houve necessidade de deixar internar no país esses estrangeiros, em virtude das autoridades espanholas não consentirem no seu retorno e conclui que a atitude do arguido deu lugar a uma situação desprestigiante para Portugal perante as autoridades espanholas e alemãs de ocupação. Na sua contestação, Aristides de Sousa Mendes refere a aflição indescritível daqueles que pediam um visto e salienta: Não podia eu fazer diferenças de nacionalidades, visto obedecer a razões de humanidade que não distinguem raças nem nacionalidades. O cônsul de Portugal em Bordéus afirma ter procedido sempre segundo os ditames da [sua] consciência, que nunca deixou de [o] guiar no cumprimento dos [seus] deveres. Embaixador de Portugal em Bruxelas, presente em Baiona na altura da concessão dos vistos, Calheiros e Meneses depõe a favor de Sousa Mendes, esclarecendo que, para resistir às súplicas e implorações de tantos desgraçados apavorados com a aproximação do invasor e o justo medo do campo de concentração, ou, ainda pior, do fuzilamento, se requeria uma coragem moral pouco banal. O instrutor do processo, Paula Brito, recomenda a pena de suspensão de exercício e vencimento de mais de trinta até cento e oitenta dias. Salazar decide: Um ano de inactividade com direito a metade do vencimento da categoria, devendo em seguida ser aposentado. Sousa Mendes não se conforma. O seu advogado, Adelino da Palma Carlos, requer ao Supremo Tribunal Administrativo a anulação da sentença. Em vão.

5 É também em vão que, para fazer frente à redução do vencimento, tenta voltar a advogar: a recusa do ministério em informar a Ordem dos Advogados das razões do seu processo impede-o de exercer. Em Cabanas de Viriato, onde a família Sousa Mendes dava, todas as quintas-feiras, um jantar aos pobres e recebia amigos e refugiados, o filho do padeiro é um dos primeiros a aperceber-se das dificuldades: O saco do pão que lhes levava ia cada vez mais vazio. Em breve, Sousa Mendes é forçado a abandonar a casa de Cabanas de Viriato, a mudar-se para um pequeno apartamento em Lisboa e a partilhar com refugiados o recurso à cantina da Assistência Judaica Internacional onde um dia dirá a um jovem judeu, Isaac Bitton, que também ele, Sousa Mendes, é um refugiado. A Assistência Judaica Internacional ajuda, aliás, alguns dos filhos do cônsul a partirem, também eles, rumo aos Estados Unidos. Terminada a Segunda Guerra com a vitória dos Aliados, Sousa Mendes entrega à Assembleia Nacional uma reclamação contra a sentença que lhe fora imposta. Mais uma vez em vão. O cônsul, no entanto, nunca se arrepende do seu acto. Fiel às suas convicções religiosas, recorda que, se tantos judeus puderam sofrer por culpa de um católico Hitler então, não é demais que um católico sofra por ter auxiliado judeus. A 3 de Abril de 1954, Aristides de Sousa Mendes morre no Hospital da Ordem Terceira. César, o gémeo, recebe um cartão de condolências de Salazar. Em 1967, em Israel, a Autoridade para a Recordação dos Mártires e Heróis do Holocausto considera Aristides Sousa Mendes gentio virtuoso e planta uma árvore em seu nome. Dez anos depois contra as reservas dos serviços, que consideram a reparação da injustiça feita a Sousa Mendes uma crítica aos diplomatas mais obedientes o então titular da pasta dos Estrangeiros, José Medeiros Ferreira, homologa a proposta da reintegração de Sousa Mendes na carreira diplomática. Mas só em 1989 essa reintegração vem a efectivar-se, depois da votação unânime da Assembleia da República. Distinguido a título póstumo com a Ordem da Liberdade, o Desobediente de Bordéus é hoje um exemplo de que a obediência cega não é, nem pode ser, um dever absoluto. * Documentos internacionais de identidade inicialmente emitidos pela Liga das Nações aos refugiados de guerra. A sua designação provém do nome do diplomata norueguês Fridtjof Nansen ( 1861-1930 ). A sua utilização desenvolveu-se a partir da Revolução Russa, quando 1.4 milhões de russos fugiram do país. Durante a Segunda Guerra ( 1939-1945 ) foram passados cerca de 450.000 passaportes Nansen que, reconhecidos pelos governos de 52 países, permitiram salvar a vida a muitas centenas de milhar de desalojados, vítimas das perseguições do regime nazi. [ nota de LMM ]