A Teologia do holocausto

Transcrição

1 A Teologia do holocausto

2 ARIEL FINGUERMAN A TEOLOGIA DO HOLOCAUSTO Como os pensadores judeus e cristãos explicaram Auschwitz

3 Direção editorial: Zolferino Tonon Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes Revisão: Cesar Augusto Faustino Junior Tiago José Risi Leme Capa: Marcelo Campanhã Diagramação: Dirlene França Nobre da Silva Impressão e acabamento: PAULUS Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Finguerman, Ariel A teologia do Holocausto: como os pensadores judeus e cristãos explicaram Auschwitz / Ariel Finguerman. São Paulo: Paulus, ISBN Holocausto judeu ( ) 2. Holocausto (Teologia cristã) 3. Judaísmo 4. Judeus - Perseguições 5. Nazismo 6. Teologia judaica I. Título CDD-296 Índices para catálogo sistemático: 1. Teologia do Holocausto: Judaísmo Teologia judaica do Holocausto: 296 1ª edição, 2012 PAULUS 2012 Rua Francisco Cruz, São Paulo (Brasil) Fax (11) Tel. (11) editorial@paulus.com.br ISBN

4 INTRODUÇÃO O Holocausto não ameaçou apenas a existência física dos judeus, mas também o judaísmo como religião. O massacre do povo escolhido na Europa nazista, num nível de barbárie inédita na história mundial, pareceu para muitos ter abalado as estruturas de uma fé que reivindica um especial relacionamento com um Deus definido como bom, justo e preocupado com os assuntos humanos. Tamanha destruição não poderia passar despercebida pelos pensadores judeus, que começaram a elaborar explicações religiosas para o Holocausto ainda durante a Segunda Guerra Mundial, alguns deles aprisionados em guetos e campos de concentração nazistas. Respostas também foram exigidas pelos mais simples dos fiéis, que se perguntavam como aquela terrível calamidade poderia se encaixar no sistema de crenças do judaísmo. Esses pensadores enfrentaram perguntas dilacerantes: A crença na aliança de Deus com Israel foi abalada como resultado do massacre na Europa? Como essa tragédia pode ser entendida na História, um processo tradicionalmente entendido no judaísmo como sendo comandado por Deus desde a criação até a redenção? O nazismo teria sido um caso extremo de abuso de A Teologia do Holocausto 5

5 um livre-arbítrio concedido por Deus ao ser humano? Houve possibilidade de martírio numa situação em que os judeus não tiveram outra alternativa senão a morte? Deus teria ocultado sua face enquanto funcionavam as câmaras de gás e fornos crematórios? O Holocausto poderia ter sido uma punição divina por algum pecado do povo judeu? Outras duas importantes questões, de caráter mais moderno, também provocaram inquietação. A primeira diz respeito ao significado religioso do Estado de Is rael, um país fundado no imediato pós-segunda Guerra Mundial. A chegada em massa de judeus à Terra Prometida após o conflito estaria relacionada a um processo messiânico ou o novo país deve ser entendido apenas como um abrigo para refugiados? A segunda questão é sobre a singularidade do Holocausto. Os pensadores divergiram sobre como entender o genocídio nazista no contexto das catástrofes anteriores da história judaica. Eles se perguntaram se o Holocausto poderia ser equiparado a outras destruições do passado ou se deveria ser considerado um evento único e incomparável na História. A primeira parte deste livro é dedicada ao exame da Teologia judaica do Holocausto. Em outras palavras, veremos como os pensadores judeus responderam a essas desafiadoras questões, apresentadas acima. Essas respostas não foram apresentadas em bloco, mas, sim, evoluíram com o passar do tempo, influenciadas por importantes eventos do pós-guerra. Daí hoje, depois de seis décadas desse desenvolvimento, já podermos falar num histórico do pensamento sobre a Shoá, que também será apresentado neste livro. 6 A Teologia do Holocausto

6 As grandes questões que desafiaram os pensadores do Holocausto, apresentadas mais acima, estão ligadas a conceitos fundamentais do judaísmo que foram especialmente desafiados pelos eventos da Segunda Guerra Mundial. Então, para se compreender o desafio enfrentado por esses pensadores, devem-se, antes, entender esses conceitos fundamentais, saber como se desenvolveram ao longo da história do pensamento judaico, desde o período bíblico, e de que maneira o Holocausto colocou-os em questão. Assim, examinaremos neste livro os conceitos de aliança (a crença em uma relação especial entre o povo judeu e seu Deus), História como revelação divina (a interpretação de eventos históricos como um plano de Deus para seu povo e para a humanidade), livre-arbítrio (a liberdade do ser humano para escolher entre o bem e o mal), martírio (a disposição dos judeus em sacrificar suas vidas em nome de Deus), ocultamento da face (passividade divina enquanto judeus são perseguidos), por causa de nossos pecados (catástrofes interpretadas como punição divina por transgressões do povo judeu), além do significado religioso do Estado de Israel e a singularidade do Holocausto. Em seguida, para o leitor ter uma melhor ideia do pensamento judeu sobre a Shoá, focaremos nossa atenção num autor específico da Teologia judaica do Holocausto, examinando como ele respondeu aos desafios vistos acima. O escolhido foi Eliezer Berkovits, um dos mais expressivos pensadores da Shoá, autor da obra fundamental Faith After the Holocaust ( Fé após o Holocausto, inédito em português). A Teologia do Holocausto 7

7 A segunda parte deste livro é dedicada à Teologia cristã do Holocausto. Veremos que os teólogos cristãos ficaram divididos quando se depararam com o desafio de explicar a Shoá, assim como no entendimento sobre qual deve ser o impacto desse evento no cristianismo pós Examinaremos os principais documentos teo lógicos escritos sob o impacto da Shoá, especialmente no âmbito da Igreja Católica. Em seguida, apresentaremos uma cronologia dos eventos ligados à atitude cristã perante o Holocausto. O leitor perceberá que a primeira parte deste livro (Teologia judaica) ocupa um espaço bem maior que a segunda parte (Teologia cristã). Isso é uma decorrência inevitável da pesquisa acadêmica que originou este livro, um doutorado em Estudos do Judaísmo pesquisado na Universidade de Tel Aviv, em Israel. Porém, o leitor não deve concluir de maneira apressada que o impacto do Holocausto tenha sido maior no judaísmo do que no cristianismo. Pelo contrário, veremos que a atitude cristã foi profundamente afetada pelos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. Creio que, ao final da leitura deste livro, o leitor poderá concordar com o autor que o impacto da Shoá no cristianismo foi intenso e, provavelmente, ainda maior do que no judaísmo. 8 A Teologia do Holocausto

8 AGRADECIMENTOS Com a publicação deste livro, o autor cumpre uma promessa feita há mais de uma década. Na ocasião, como candidato a uma bolsa de doutorado pela Fapesp, argumentei sobre a necessidade de trazer ao público brasileiro os debates e reflexões que acontecem nos círculos acadêmicos e teológicos europeus, norte-americanos e israelenses sobre a Teologia do Holocausto. Praticamente inédito no país, esse campo é de fundamental importância para o entendimento dos direcionamentos presentes e futuros tanto do pensamento judaico quanto do cristão. A ideia proposta para a Fapesp foi a de realizar uma pesquisa de doutoramento sobre a Teologia do Holocausto que, posteriormente, se transformaria num livro de introdução ao tema destinado ao público de língua portuguesa. Daí o agradecimento, neste momento, à generosa bolsa de estudos concedida pela Fapesp para a realização do projeto. Um agradecimento especial à Profa. Jaffa Rifka Berezin, da USP, orientadora no sentido mais amplo da palavra, fonte de sabedoria e experiência que alimentou com generosidade este trabalho. Ao Prof. Shalom Ratzabi, coorientador da pesquisa na Universidade de Tel Aviv, e ao Prof. Paul Mendes-Flohr, meu tutor na Universidade Hebraica de Jerusalém durante o período A Teologia do Holocausto 9

9 em que fui visiting research fellow, continuando a pesquisa nessa mesma área. Aos seguintes especialistas, com quem me encontrei durante o decorrer deste trabalho, que ouviram e leram os capítulos dentro de suas especialidades, e me deram valiosas contribuições: Prof. Gershon Greenberg, da American University, especialista em Teologia do Holocausto; David Hazony, editor da obra de Eliezer Berkovits em hebraico; Prof. Ron Margolin, da Universidade de Tel Aviv, especialista em Teologia do Holocausto; Prof. Menachem Fisch, da Universidade de Tel Aviv, especialista em pensamento judaico. A Irving Greenberg, um dos mais destacados teólogos judeus do Holocausto, que me concedeu uma longa entrevista esclarecendo diversos aspectos da área. Aos professores David Shatz e Shalom Carmy, ambos da Yeshiva University de Nova York, e ao Prof Aviezer Ravitzky, da Universidade Hebraica de Jerusalém, com os quais troquei correspondências para esclarecer pontos específicos desta pesquisa. Um agradecimento especial ao Prof. Jacob Dolinger, jurista e erudito do judaísmo, que leu todo o manuscrito e fez valiosas considerações. A David Shahor, do Kolel Ohel Yaakov, de Bnei Brak, pela prontidão em esclarecer grandes questões e pequenos detalhes sobre o judaísmo. Agradeço à Editora Paulus pela abertura e tolerância ao aceitar a proposta de editar o livro de um autor judeu. Não há melhor homenagem às vítimas de intolerância em qualquer lugar do mundo do que abrirmos a perspectiva de um futuro mais fraternal entre os povos e religiões. 10 A Teologia do Holocausto

10 TERMOS, PADRONIZAÇÕES E ABREVIATURAS Holocausto ou Shoá Existem duas palavras distintas para designar o massacre do povo judeu na Europa nazista entre os anos de 1933 e Cada uma dessas palavras tem uma origem específica e implica certo posicionamento teológico por parte de quem a escolhe. O termo holocausto é originário da palavra hebraica hlw[ (olá), que significava um tipo de oferenda a Deus no Templo de Jerusalém que precisava ser totalmente queimada a fim de expiar um pecado (Lv 1,1-10). Quando a Bíblia hebraica foi traduzida para o grego, na chamada Septuaginta, a palavra hlw[ (olá) foi traduzida, de forma acertada, como holokaustos, um composto das palavras holos (inteiro) e kaustos (queimado). Séculos mais tarde, quando a Bíblia foi vertida para o inglês, na chamada versão King James, os tradutores, ao depararem-se com a palavra hlw[ (olá), decidiram manter o termo grego, apenas anglicizando-o para holocaust. O escritor Elie Wiesel é apontado como um dos responsáveis pela aplicação desse termo, nos anos 1950, ao massacre da Segunda Guerra Mundial, numa A Teologia do Holocausto 11

11 referência aos crematórios nazistas. O termo tornou-se desde então o mais usualmente utilizado, porém a sua adoção traz problemas teológicos: se os judeus foram um sacrifício queimado, implicitamente os nazistas seriam uma espécie de sacerdotes, envolvidos numa missão divina. Também implica que existiu algum pecado do povo judeu que motivou o massacre. Daí uma parcela significativa dos especialistas e também do público geral preferir uma palavra alternativa: Shoá (hawx). Na Bíblia (Sf 1,15; Is 47,11; Pr 1,27; Sl 35,8), a palavra significa destruição total que acomete um indivíduo ou o coletivo de forma repentina e inesperada, provocando choque. No contexto bíblico, o termo também carrega um elemento de punição por pecados, mas seu uso após a Segunda Guerra Mundial desconsiderou esse elemento. O uso do termo Shoá indica a busca de um vocábulo especial, não usado para destruições passadas da história judaica, querendo expressar que o sofrimento durante a Segunda Guerra Mundial foi sem precedentes dentro da experiência histórica do povo judeu. Mas nem todos os especialistas ou o público geral concordam com essa ideia (examinaremos isso mais detalhadamente neste livro). Neste livro, as palavras Holocausto e Shoá foram utilizadas como sinônimos, sem nenhuma intenção teológica específica. Glossário Ao longo do livro, foram utilizadas palavras e conceitos do judaísmo que demandam uma explicação 12 A Teologia do Holocausto

12 para o leitor não iniciado (por exemplo: Torá, Mishná, ashkenazi). Para não interromper o fluxo de leitura, as explicações desses conceitos foram reunidas num glossário, ao final do livro. Padronizações O uso de colchetes [ ] e parênteses ( ) em citações e traduções seguiu o seguinte padrão: informações entre colchetes são adições ao texto original necessárias à melhor compreensão do sentido original; informações entre parênteses são explicações destinadas à clarificação da citação. Abreviaturas Bíblia hebraica = BH Novo Testamento = NT Talmud da Babilônia = TB Seguindo tendência multicultural da área da Ciência das Religiões, neste livro preferiram-se as abreviaturas a.e.c. (antes da era comum) / e.c. (era comum), em vez dos tradicionais a.c. / d.c. Livros bíblicos: Ab Ag Am 1Cr 2Cr Ct Dn Abdias Ageu Amós 1º Livro de Crônicas 2º Livro de Crônicas Cântico dos Cânticos Daniel A Teologia do Holocausto 13

13 Dt Ecl Esd Est Ex Ez Gn Hab Is Jó Jl Jn Jr Js Jz Lv 1Mc 2Mc Mi Na Ne Nm Os Pr 1Rs 2Rs Rt Sf Sl 1Sm 2Sm Zc Deuteronômio Eclesiastes Esdras Ester Êxodo Ezequiel Gênesis Habacuc Isaías Jó Joel Jonas Jeremias Josué Juízes Levítico 1º Livro dos Macabeus 2º Livro dos Macabeus Miqueias Naum Neemias Números Oseias Provérbios 1º Livro dos Reis 2º Livro dos Reis Rute Sofonias Salmos 1º Livro de Samuel 2º Livro de Samuel Zacarias 14 A Teologia do Holocausto