Os Cadernos de Alegrete

Transcrição

1 Os Cadernos de Alegrete Nesta tarde cinza, pensativo, vou folheando um volume encadernado das edições dos Cadernos de Extremo Sul, saudosa coleção de publicações literárias fundada em Alegrete, em 1953, pelo poeta Hélio Ricciardi. Todos os autores estão mortos: Dionísio Vilarinho, Ênio Campos, Fidêncio Caigoaté, Hernani de Carvalho Schmitt, Antônio Milano e Hélio Ricciardi isso sem falar em Mario Quintana, que também fez parte da coleção, mas não morava na cidade. Dionísio Vilarinho, que inaugurou as duas séries, a dos Cadernos e a dos mortos, foi protagonista de uma tragédia em Alegrete. O poeta e noiva se suicidaram, dramático desfecho de uma história de amor, ciúme e perversão. Dias depois Hélio Ricciardi recebeu uma carta da cidade de Amarante, no Piauí. Era da mãe do poeta morto. Pedia que Ricciardi enviasse o cãozinho que o filho mencionava em sua correspondência. Pedido tão extravagante quanto compreensível de uma pobre mãe aflita e Ricciardi fez o possível para atendê-lo. 7

2 Não conseguiu. O cão de Vilarinho era o mesmo de Ênio Campos, os dois se consideravam donos e o animalzinho vivia mudando de uma casa para outra. Era um cão especial, decerto (até por gostar de poetas), pois o dono sobrevivente não concordou com sua remoção para as caatingas nordestinas. O professor Ênio Campos... Lembro-me vagamente de vê-lo a caminhar, mãos para trás, cabisbaixo, olhos escuros e profundos que só se erguiam para sondar as noites estreladas. Felizmente os agiotas não são donos das estrelas, escreveu o professor, pois se o fossem eu teria de pagar juros a vida inteira. Suponho que costumava andar só, vai ver que não tinha amigos nem leitores. Tinha o cão, dia sim, dia não. E era comunista. Quando passava em nossa rua os adultos comentavam: Vai passando o poeta comunista. E a miuçalha, sem saber o que era aquilo, corria para espiar nas frestas da veneziana. Fidêncio Caigoaté era um lutador e durante muitos anos foi o Johannes fac totum dos Cadernos do Extremo Sul. Vivia para os Cadernos e não raro dos Cadernos. Foi ele quem publicou Barcos de papel, de Antônio Milano, com o patrocínio dos bacharéis citadinos. Quando Milano cobrou os exemplares que lhe correspondiam, recebeu de Fidêncio a lacônica resposta: Edição esgotada. Era 8

3 verdade. O autor de Alma da cidade, sem emprego e sem economias, vivia da venda diária do livrinho. Esse Fidêncio... Em certa quadrinha ele recomendava: Quem goza de cama e mesa / conserve essa segurança / e não se arrisque em empresa / movido só de esperança. E fazia justamente o contrário. O velho Hernani de Carvalho Schmitt ainda conheci pessoalmente. Ricciardi e eu fomos visitá- -lo no Hospital de Caridade, em Alegrete, onde já passava bem mal. Eu acabava de voltar de Moscou e andava escrevendo uns artigos amaneirados sobre as relações sino-soviéticas. Hernani os lera, e ao saber quem eu era, exclamou: Então é esse o poeta russo? Eu sabia de cor seu belíssimo soneto sobre a cegonha: Heráldico pernalta... comovida ave enigmática e dolente.... Mas ele não quis falar de poesia. A poesia, para ele, não tinha mais sentido, talvez porque a vida também não tinha e já o mundo era uma saudade, assim como as taperas. Antônio Milano também conheci e sempre que penso nele vejo-o à cabeceira da mesa, sem camisa, momentos em que sua noite era um crisol a mesclar vinho, lembranças e poesia: (...) Eu, sim, da humana tristeza / faço rosas de surpresa / em cores e papel fino / dessas que vi, certa vez, / juntar no bairro chinês / um velho, um moço e um menino. Era um boêmio e grande romântico, 9

4 quem o conheceu ficou marcado, quem com ele privou como eu privei, sempre viveu um pouco mais, estremecido pelo seu companheirismo, sua solidariedade, seu respeito pela alteridade, sua humanidade palpitante. Teve uma vida que mereceu ser vivida e nos legou, pela poesia, uma suave notícia de sua passagem pelo mundo. Nessa época eu já me agregara aos Cadernos do Extremo Sul e um dos primeiros volumes do meu tempo foi uma coletânea de antigos poemas de Hélio Ricciardi, intitulada Meu baú de moço. A seu pedido escrevi a nota de apresentação. A certa altura, referindo-me à juventude do poeta, dizia que ele fora um gurizão sardento, desajeitado e feio, que não sabia o que fazer com as pernas compridas e o pé 43. Ricciardi leu a nota e não a aceitou totalmente, queria discutir o tamanho de seu pé. Alegava que era 41 e que constando 43 iam mexericar que descia de lancha a rua Tamandaré. Mantive o pé verdadeiro e ficamos nisso. Ou pensava eu que ficaríamos nisso. O poeta era dono da gráfica e à noite, como um ladrão, penetrou no estabelecimento, pegou o original e o emendou para um conciliatório 42. E assim saiu na plaqueta. Quando ele morreu, os anjos, no céu, não puderam calçá-lo. Mas posso garantir que o problema é de somenos, foi descalço que o amável peregrino de Em busca da lua cheia pôs-se 10

5 a caminho, atrás de suas amadas. Num poema de 1954 ele já reivindicava: Fidêncio, arruma minha gravata, / Mario, me empresta teus sapatos, ele queria percorrer as estradas do mundo. E depois: Não quero que saibam / que andei por todas elas / e todas elas não me encantam mais. Morreram Vilarinho, Ênio Campos, Fidêncio, Hernani, depois morreu Milano, depois ainda os Cadernos do Extremo Sul e por último Ricciardi, com seu ambíguo pé, enquanto eu continuo aqui, encravado na massa imóvel desta tarde cinza. Lá de cima o sexteto alegretense me espia e Ricciardi, que está mais próximo, acena insistentemente: Quando sobes? O Senhor te chama para seu Reino de Glória. E de pronto respondo, com os próprios versos dele:...e eu logo me ponho a rezar e a rezar / para que o Senhor não me chame ao Reino / e me deixe sem Glória alguma. 11