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Transcrição

1 Editora Penalux Guaratinguetá, 2018 miolo-apequenamaodacriancamorta.indd 3 12/29/2017 3:26:36 PM

2 Rua Marechal Floriano, 39 Centro Guaratinguetá, SP CEP: Edição: França & Gorj Revisão: André de Paula Ferreira e Beatriz Bajo Capa e diagramação: Guilherme Peres Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S162p ABREU, Samantha A pequena mão da criança morta / Samantha Abreu Penalux: Guaratinguetá, p.: 18 cm. ISBN: Poesia I. Título CDD B869.1 Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte desta obra só é permitida mediante autorização expressa do autor e da Editora Penalux. miolo-apequenamaodacriancamorta.indd 4 12/29/2017 3:26:36 PM

3 Da incapacidade de matar o poema Você mira a boca aberta do poema e mete nela meia dúzia de tiros; Você observa a ontologia do poema enquanto espana o ar com as mãos para dissipar a fumaça dos tiros; Você quer se vingar da arrogância do poema que decorou as sagradas escrituras do seu tórax; Mas você mal suspirou aliviada e o rabo do poema já concedeu a ele um novo corpo de matéria pegajosa; O poema rasteja e imobiliza seu assombro quando você dá de cara com o fenômeno: O corpo asqueroso do poema é sua própria mão. SAMANTHA ABREU 17 miolo-apequenamaodacriancamorta.indd 17

4 Natureza Há dias em que morte é um rosto que se toca com os dedos. Morrer não é fingimento nem dor. Apenas calma e olho virado do avesso. Eu quase posso sentir a pele fina, eu posso ver, eu quase. Eu quase faço um poema denunciando suas formas. Como quando a percebo através do vidro embaçado do banho, um vulto de movimentos lentos, e me aproximo do vidro, seguindo seu contorno, por um ínfimo segundo entre as frestas riscadas eu a vejo, eu quase a descubro, um triz de compreender sua beleza entre a fumaça: o mistério é vapor água {tão mãe da vida} água {tão cúmplice da morte}. 18 A PEQUENA MÃO DA CRIANÇA MORTA miolo-apequenamaodacriancamorta.indd 18

5 Termo Um pequeno corpo estacado e mudo. Agora não importam as folhas amarelas caindo com o vento. Não importa mais a destruição do vento. As brigas explodindo janelas dos edifícios não importam, os gritos, a dor nem o sal mirrando a pele. Esquecemo-nos das canções que gravamos na memória, é que memória não existe mais. SAMANTHA ABREU 19 miolo-apequenamaodacriancamorta.indd 19

6 Só uma casca fina, a pele de seda desfiando com um tocar de unhas. O vácuo e a mais invasiva inércia da desexistência: em um corpo morto, inerte aos teus barulhos. Porque já não importam mais os barulhos. 20 A PEQUENA MÃO DA CRIANÇA MORTA miolo-apequenamaodacriancamorta.indd 20

7 A mulher que floresce em cavidades Uma mulher atravessa um muro com seu corpo translúcido e alcança o outro lado, acariciando as vértebras torácicas. Entre as paredes ela consegue intuir a morte atingindo veias e músculos. Sente o calafrio: a mulher de sangue diáfano não arde, ela não queima. A mulher que atravessa muros não tem febres. Suas mãos reviram toda a cavidade preparando-a para plantar girassóis. Mas ela não sabe onde deixar as raízes; não conhece sobre a natureza das raízes nem sobre o bombeamento de diafragmas. A mulher floresce nas pequenas costelas flutuantes. SAMANTHA ABREU 21 miolo-apequenamaodacriancamorta.indd 21

8 Ancestralidade Existe uma imagem antes do símbolo. Um poema antes do verso. - o invisível da palavra não sendo palavra. Tem um estalar que transpõe matéria através de imanências: a poesia está antes. Está entre. Está indo: vai cansada a ancestral de todas as coisas, a mãe interior da vida e da morte imaginadas. 22 A PEQUENA MÃO DA CRIANÇA MORTA miolo-apequenamaodacriancamorta.indd 22

9 Ontologias Tenho um negro grande e forte escondido em mim. Ele está se levantando, o negro de mim. E me sangra pelas extremidades: do íntimo ele quer gritar e grita. Grita através dos rasgos que fez, o negro de dentro. E seus berros ardem nos ouvidos do mundo. Uma puta está sendo gerada em meu ventre. Ela se contorce, louca: vou parir a puta que traz a alma de minha avó. Sagrada, a puta de dentro quer renascer explodindo a revolta de minha mãe e de todas as minhas avós anteriores, e das avós de minhas avós. De todas as putas antes de mim. SAMANTHA ABREU 23 miolo-apequenamaodacriancamorta.indd 23

10 Eu não controlo o gay que usa minhas mãos e colore meus olhos, este gay em mim, que ama olhos pintados. Ele me esfrega sua revolta e borra a minha boca, o gay das minhas mãos, castigando meu rosto na lama de tinta enquanto ri da decadência de mim. Eu já não existo mais sem os que vivem no fundo deste precipício e que saem pelo mundo rasgados, prenhes e gargalhando sangue. 24 A PEQUENA MÃO DA CRIANÇA MORTA miolo-apequenamaodacriancamorta.indd 24