Conexão Psicanálise e Direito: uma política para o gozo 1

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1 1 Conexão Psicanálise e Direito: uma política para o gozo 1 Fernanda Otoni de Barros Palavras-chave: conexão psicanálise e direito, violência, ação lacaniana na cidade. Se vocês concordam que o gozo se tornou um fator de política, será que a psicanálise vai, deve conservar a mesma distância de bom grado sarcástica para com a política, tal como ela se mantinha na idade das ideologias? Acho que ela não poderá assim fazer. O privado se tornou público. Estamos diante de um amplo movimento, um destino da modernidade e, nele, a psicanálise está arrastada, para o melhor ou para o pior. 2 J.A.Miller A montagem de um Estado de Direito nutriu-se da crença numa estrutura normativa com capacidade para distribuir a satisfação no espaço público, ou seja, função de regular o que diz respeito ao gozo, através de sua indexação às normas, em sua montagem significante. Porém, a montagem nome do pai e significante fálico que tempera desejo e gozo, atravessa uma dura prova em todos os níveis da civilização. 3 Com o objeto causa em ascensão no Zênite social, a norma fundamental uma ficção jurídica mostra sua insuficiência na tarefa de fixar uma cota de gozo e a obediência à lei vacila. A civilização assiste à manifestação de violência generalizada. Segundo o relatório mundial sobre saúde e violência, em 2000, morreram 1,6 milhões de pessoas no mundo, resultado da violência auto infligida, interpessoal ou coletiva - 31,3% homicídios, 49,1% suicídio e 18,6% guerras. 565 crianças, adolescentes e jovens adultos, entre 10 a 29 anos, morrem por dia como resultado desta violência. O gozo não encontrando mais sua regulação pelo recurso da identificação ao pai, ao Direito e às tradições, marca a entrada numa nova era, no qual a perseguição ao gozo é uma idéia nova em política 4. Um Direito-Referente, fechado em si mesmo, não garante a regulação dos modos de vida na sociedade. A referência encontra-se no texto e o texto não é sem contexto. A complexidade da aplicação do Direito na regulação do gozo está em conjugar princípios 1 Esse trabalho foi apresentado no Segundo Encontro Americano, realizado em Buenos Aires, em agosto de 2005, sendo elaborado a partir das discussões e contribuições de Bernadete de Carvalho, Fernanda Otoni de Barros (relatora), Ludmilla Feres de Faria e Maria José Gontijo Salum. 2 MILLER, J.A. Lacan e a política. In: Opção Lacaniana, n. 40, ago p Idem, p.18 4 Idem, p.18

2 2 referentes que em si são contraditórios, tensos e disjuntos, numa sociedade complexa e plural e com modos de vida tão desiguais. A experiência real exige um direito aberto e afetado pela contingência, um direito possível e plural que se orienta por um eixo de princípios. Prescindir do Direito, então, é prescindir da crença em um Direito-referente, todo. Só assim pode-se ter acesso aos direitos, servir-se dele, na tensão entre o real e o texto. 5 De fato, há sempre um modo de vida novo, uma nova forma de gozar. Porém, as ficções jurídicas não visam atender a tal pluralidade de gozos, nomeando-os e fixando-os através da criação infinita de normas jurídicas. Ainda que as formas diferentes de vida e de gozo busquem sua regulação através de sua inscrição no registro da lei, incluir as diferenças deve ser na condição de inserir o contingente no campo das possibilidades, o que requer considerar no campo do impossível, um resto que leva ao absoluto fora da lei. Por exemplo, o fato de alguns confessarem seu modo de vida, um certo gozo na prática do nazismo, é impossível sua inclusão no texto da lei. O direito não é fechado, mas também não se abre a qualquer uso. 6 Nosso momento social está marcado pelo modo de exercício de um poder que põe em ação os recursos da normalização em benefício da lucratividade, de um a mais de gozo. Como aponta Foucault, vivemos numa sociedade em que o poder se exerce através de normas que visam gerir progressivamente cada momento da vida. Trata-se de um biopoder, um poder que se exerce através do controle da vida. O avanço da regulação social através de processos de normalização funcional das atividades não se fez sem gerar uma multidão de desclassificados e não classificáveis, excluídos dos investimentos do poder e também do gozo do produto social. Como diria Agamben, esses corpos não politizados, a vida nua, estão expostos a uma violência não ritualizada, que, em nome do perigo que representam, é ignorada. Um bom exemplo disso é um programa conhecido por Olho Vivo, uma parceria da Polícia Militar com a Secretaria de Defesa Social e o Clube de Diretores Lojistas. Agora você já pode fazer suas compras com tranqüilidade, diz seu slogan. A tecnologia garantirá ao consumidor vigilância permanente, usando câmeras filmadoras, cuidadosamente dispostas no campo geográfico do consumidor. Uma equipe viva estará de olho nos meninos que por ali passam, protegendo o consumidor do roubo e da violência. Em cenas suspeitas, a polícia será imediatamente acionada. Mas campo do impossível está lá, inarredável! O maior problema 5 CARVALHO NETO, M. Conferência realizada no Núcleo de Psicanálise e Direito - IPSM/MG. 21/03/05. 6 LAIA, S. Conferencia realizada no Núcleo de Psicanálise e Direito IPSM/MG. 21/03/05.

3 3 desse dispositivo são os pontos cegos e a simulação que os meninos fazem diante das câmaras. Essa tem sido a relação dos sujeitos com as regulamentações normativas. 7 Em resposta a essas emergências e ao perigo que elas representam, a resposta institucional no sentido das regulamentações tem se mostrado infinita, mas, por outro lado, assistimos à tentativa de reabilitação da Lei na sua referência mais crua. O momento é grave para um desenho do destino da modernidade. O Brasil tem apresentado índices de violência comparáveis aos existentes em tempos de guerra. Na grande Belo Horizonte, chega-se a 40 mortes por final de semana, jovens entre 14 e 29 anos. Cada vez mais, controlar a emergência do fora da lei, onde a norma não tem conseguido regular, se faz profanando o que de sagrado resta, ou seja, a vida. O E.C.A. Estatuto da criança e do adolescente, em vigor no Brasil desde 1990 criou a designação de um sujeito de direitos e deveres, no tempo da infância e da adolescência. Sua criação contou com a participação ativa dos meninos de rua, que freqüentaram diversas conferências estaduais e nacionais e entregaram ali suas queixas e proposições, num processo de discussão viva, que antecedeu a constituição do Estatuto. Contudo, essa ficção jurídica, ainda que se apresente como o melhor texto jurídico que a contemporaneidade pode dispor, diuturnamente, apresenta-se em disjunção com a experiência real e dá provas de sua insuficiência. O Código de menores, anterior ao E.C.A., foi criado a partir do direito penal. O adolescente que não se enquadrasse em uma sociedade que se acreditava completa era, portanto, excluído, o que deu origem às Fundações do Bem-Estar do Menor FEBEM. Esta política, na realidade, aparece ainda em vigor, produzindo como efeito rebeliões, maior violência e fugas. Acontecem nos espaços fechados que se orientam pela referência a um direito fechado, não aberto à complexidade do contexto. Nestas instituições, a única possibilidade do adolescente tomar a palavra e fazer sua entrada na cena como sujeito é a partir de um tumulto. Tumulto é o que estes jovens têm causado nos lugares por onde passam. Esta cena repete em ato o que não pode caber no discurso, atuando na cena do mundo, tumultuando os espaços, não somente nas instituições, nas quais são encarcerados os corpos, mas também diante de qualquer olho vivo, contra o encarceramento de cada dia, justo ali, onde a olhos vistos, o espaço parece estar aberto à cidade. É real! Estes jovens trazem a profanação. Os objetos consagrados de nossa civilização não servem para nada, inúteis, servem ao gozo. 7 MANDIL, R.A. Conferência realizada no Núcleo de Psicanálise e Direito do IPSM/MG 18/04/05.

4 tumulto. 9 Na prática, ao tolerar esse barulho, extraímos a exigência de um esforço a mais para 4 Objetos sacer, sagrados e malditos. Esse jogo sagrado e profano abre passagem para o absoluto. Estes atos de profanação, para Célio Garcia, anunciam o que poderá vir. 8 Entretanto, subvertemos. Os meninos que, diante do dispositivo Olho Vivo, mostram em cena o que sua montagem busca capturar, oferecem-se como personagem do filme que esse panóptico deseja colocar em cartaz. Mas é lá onde não se vê, onde o olho está morto, que realizam o que no real assombra: uma cena mortífera que profana a vida. Em verdade, há o gozo. Todo programa tem um ponto cego, um impossível que escapa a qualquer dispositivo. Contudo, se aqui estamos para dizer dos efeitos terapêuticos da psicanálise em sua conexão com o Direito, é para não ceder diante desse arrastão que empuxa ao gozo. A aposta tem sido no sentido do desejo, que não sabe ser global, nem fixo, nem final. Não recuar no cotidiano dos serviços, no qual esses casos se apresentam, mas, sim, avançar, suavemente. Então, pega leve diante desse escutar o inconsciente. Condição para servir, a qualquer instante que se abra, à produção de um anteparo a esse empuxo. Um esforço no destacamento de um detalhe, na pontuação de um gesto, um som, um objeto solto no meio da passagem que sirva de estaca para o sujeito se agarrar antes de passar ao campo do absoluto. A profanação da vida deflagra a morte. Contudo, o desejo é o que da morte se extrai no sentido da vida e o desejo do analista, nesses casos, pode ter conseqüências no adiamento desse encontro com a morte. Um analista é um objeto estranho a este cenário, uma peça avulsa, em condições de fazer as vezes de uma peça sobressalente, que pode vir a servir à engrenagem da vida, fazendo funcionar a montagem de um projeto. No lugar de um olho vivo, ligue-se no FICA VIVO. Se a identificação ao pai não funciona, na forclusão do seu nome, use da secretaria do PAI-PJ. Lá onde a liberdade abriu passagem ao gozo que dispensa o Outro, experimente uma LIBERDADE ASSISTIDA. 10 Uma oferta! Nestes Programas, a psicanálise está ao lado do Direito, acompanhando a pega possível de um sujeito no laço social. Junto a inúmeros projetos sociais dispostos na rede, para-todos, psicanalistas se oferecem como um objeto na cidade, atentos ao ponto onde o nãotodo está, visando na disjunção, uma conexão. Necessário operar na amarração da ficção 8 GARCIA, C. Conferência realizada no Núcleo de Psicanálise e Direito do IPSM/MG 18/04/05. 9 Pega leve - expressão cunhada pelo colega Célio Garcia. 10 Programas da Secretaria de Defesa Social, do Tribunal de Justiça e da Secretaria da Assistência Social.

5 5 jurídica com aquilo que a determina, no entanto, desde sempre, permanece fora dela o real mundo da vida. Neste ponto, a conexão à psicanálise se faz viva. Uma oferta, uma secretaria ou um acompanhamento, à disposição, pode servir ao sujeito, para que, ao seu modo, filie-se a um projeto, a um sintoma. Se a descrença no Direito é um dos efeitos dos novos tempos, fazer uso dele em sua função de sintoma, um sintoma que não se crê, emerge como possível. Quando a montagem da rede significante revela sua impotência, prescindir dela é reinventá-la, num tecido singular. 11 Nesses espaços, onde os sintomas atuais se apresentam, a conexão entre o direito e a psicanálise realiza sua possibilidade, quando então o direito deixa-se apreender como uma ficção útil, e um analista encontra a oportunidade de inseri-lo na lógica que permeia nossa clínica, caso a caso. A ação lacaniana tolera em sua experiência o campo onde não há relação. Há um ponto impossível de calcular, é verdade. O risco está no horizonte do manejo dessa experiência, o que nos coloca avisados de que a psicanálise não é uma vacina contra a violência. Contudo, o campo do impossível não se reduz à impotência quando o desejo do analista entra em cena, para dar tratamento a esse destempero entre o desejo e gozo, dos tempos atuais. Essa é a prevenção possível, tendo o risco à vista, a saber, avançar como um rinoceronte sobre um prato de porcelana. 12 Em alguns casos esse encontro é decisivo, no sentido de projetar a vida, em outros, ainda não foi possível promover uma subversão. Os efeitos terapêuticos da psicanálise em seu encontro com o Direito desenham uma política para o gozo. Caso a caso, avança, produzindo a torção necessária no enlaçamento do singular ao universal. Belo Horizonte, 10 de maio de O FICA VIVO, reduziu em 30% a taxa de mortes, na grande BH. O PAI-PJ, não registrou reincidência com uso de violência. O LIBERDADE ASSISTIDA reduziu em 80% a reincidência. 12 LACAN, J. Seminário 14, A lógica do fantasma. Aula de 08 de março.