UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE-UFS DEPARTAMENTO DE DANÇA CURSO DE LICENCIATURA EM DANÇA CAMPUS LARANJEIRAS O CACUMBI E A AFRICANIDADE NO BRASIL 1

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE-UFS DEPARTAMENTO DE DANÇA CURSO DE LICENCIATURA EM DANÇA CAMPUS LARANJEIRAS O CACUMBI E A AFRICANIDADE NO BRASIL 1 Resumo Ellen Jackeline Costa Nogueira 2 Entendendo a relevância que a influência africana tem sobre a cultura do Brasil, o presente estudo tem como objetivo analisar essa influência na manifestação popular do Cacumbi da cidade de Laranjeiras SE, através da religiosidade, da música e da dança, existentes nesse folguedo. Esta pesquisa de caráter qualitativo se deu por uma pesquisa bibliográfica, além da aplicação de uma entrevista semiestruturada, a qual continha perguntas sobre o surgimento do Cacumbi e elementos africanos presentes nesta manifestação popular, realizada com um participante do grupo Cacumbi, Antônio Carlos dos Santos. Concluímos que de fato, a cultura dos negros trazidos para o Brasil se tornou um fator decisivo para compreendermos a identidade cultural brasileira. Palavras-chave: Cacumbi; Africanidade; Cultura Popular. Abstract Understanding the relevance of the African influence has on the Brazilian Culture, this study aims to analyze its influence on popular manifestation of Cacumbi city of Laranjeiras - SE through religion, music and dance. This qualitative research study was structured by a literature search, besides the application of a semi-structured interview, which contained questions about the emergence of Cacumbi and the African elements present in this popular event, held with a participant Cacumbi group, Antonio Carlos dos Santos. We conclude that in fact, the African culture brought to Brazil by the slaves became a decisive factor in understanding the Brazilian cultural identity. Key-words: Cacumbi; Africanities; Brazilian Popular Culture 1 Artigo produzido como requisito para aprovação na disciplina Africanidade e Dançs, tendo como orientadora MSc Clécia Maria Aquino de Queiroz. 2 Aluna do curso de Licenciatura em Dança da UFS; bolsista da Capes do programa PIBID no projeto Andanças Populares: dançando a nossa cultura, dialogando com a contemporaneidade, do Departamento de Dança da UFS. Dançarina do Grupo de Dança e Performance da UFS grupo de extensão do Departamento de Dança da UFS.

2 Introdução O reconhecimento da influência dos negros trazidos como escravos para o Brasil se tornou muito importante hoje para compreendermos a cultura do nosso país, uma vez que apesar das tentativas de aculturação pelos portugueses, eles trouxeram consigo a sua bagagem cultural e conseguiram preserva-la através da tradição oral. Partindo dessa ideia, este artigo irá analisar a influência africana na cultura brasileira, através de elementos como a religiosidade, a música e a dança existentes no Cacumbi da cidade de Laranjeiras (SE). Iremos analisar esta manifestação como um folguedo que tem suas raízes na cultura africana, mas que não é muito valorizado na sociedade em que está inserida, sendo que o conceito de cultura aqui abordado é o definido por José Luís do Santos: Cultura diz respeito a todos os aspectos da vida social, e não se pode dizer que ela exista em alguns contextos e não em outros. Cultura é uma construção histórica, é a dimensão da sociedade que inclui todo o conhecimento num sentido ampliado e todas as maneiras como esse conhecimento é expresso (SANTOS, 2006, p. 45) O presente estudo foi elaborado com pesquisas bibliográficas e com uma entrevista semiestruturada feita com um participante do Cacumbi, Antônio Carlos dos Santos, filho do Mestre Deca, o atual mestre do Cacumbi. O Cacumbi de Laranjeiras A cidade de Laranjeiras, localizada no estado de Sergipe, é uma cidade que possui muitas manifestações populares e que se mantêm há muito tempo atraindo muitos turistas e visitantes devido a sua riqueza cultural. Dentre essas manifestações está o Cacumbi do Mestre Deca, que com seus cantos e danças louvam os santos negros São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e Bom Jesus dos Navegantes. Em Sergipe este folguedo, de acordo com Alencar (1988), existe nas cidades de Lagarto, Japaratuba, Riachuelo e Laranjeiras, sendo que, nesta última, ele é formado por 27 brincantes do sexo masculino, todos encantados pela história dos seus antepassados. Essa história começou há quase cem anos atrás com os negros africanos escravizados e hoje é passado de geração a geração fazendo com que permaneça viva esta grande manifestação popular.

3 As músicas do Cacumbi variam entre músicas sagradas e profanas, sendo estas últimas cantadas nas ruas e as primeiras os cantos de louvor cantados em frente à igreja, para celebrar o nascimento e a chegada do mês de janeiro. A coreografia agitada deste folguedo convida para dançar todos que assistem as apresentações dos brincantes pela alegria dos seus instrumentos: cuícas, pandeiro, ganzás, apito e tamborins. O Mestre Deca, que está há quarenta anos à frente do Cacumbi, não tem mais a força e disposição de antes por problemas de saúde. Por esse mesmo motivo o Cacumbi passou por uma fase muito difícil, sem muitas perspectivas de continuidade. Porém, seus filhos assumiram as responsabilidades do grupo e atualmente dirigem o folguedo. Apesar das dificuldades financeiras, o Cacumbi hoje já conta com algumas vitórias. Eles foram contemplados em dois editais do Ministério da Cultura, um para auxiliar no tratamento da saúde do Mestre Deca e outro para o material de divulgação do folguedo. Eles também ganharam uma quantia em dinheiro para comprarem um terreno e construírem a sede do Cacumbi. Segundo o entrevistado desta pesquisa, Antônio Carlos dos Santos, filho do mestre Deca, que se considera um fazedor da cultura popular, o descaso com as manifestações populares em Laranjeiras é muito grande, os grupos são lembrados apenas no mês de agosto, que é considerado o mês da cultura no estado de Sergipe, e no Encontro Cultural de Laranjeiras, que acontece no mês de janeiro. Outro fator negativo é que o governo não disponibiliza verba para os grupos folclóricos se manterem e continuarem a existir. De acordo com Antônio Carlos, a falta de ensino e divulgação da cultura popular nas escolas resulta na falta de interesse nos alunos. O entrevistado afirma que: Antes os pais compravam a indumentária para os filhos brincarem no Cacumbi. Hoje em dia os brincantes do Cacumbi oferecem as roupas, mas, as pessoas não querem brincar. Se houvesse uma preparação, uma divulgação nas escolas, os jovens iriam querer brincar e não iriam sentir vergonha. No Cacumbi mirim as crianças gostam porque sempre viam o Cacumbi, mas, hoje em dia, muitos grupos estão acabando porque não tem brincantes. Antes quem quisesse entrar teriam que passar por um teste, hoje eles pegam jovens que estejam interessados, ensinam a tocar algum instrumento, participam dos ensaios e agradece porque eles quiseram entrar. (Antônio Carlos dos Santos)

4 A influência Africana no Cacumbi Ainda segundo Antônio Carlos, a maioria dos brincantes é afrodescendente. O Cacumbi é uma herança cultural herdada dos seus antepassados. De acordo com Alencar (1998, pág 72) O Cacumbi guarda os traços de procedência africana em vários aspectos: na pompa do cortejo, na presença dos reis, na presença das embaixadas, nas lutas entre reis poderosos e nas cenas de combate. O Cacumbi tem como personagens: O Mestre dirige o grupo e marca com um apito o começo e o fim dos cantos e danças; O Rei representa o poder indígena ou africano; A Rainha representa o poder africano; Os Brincantes representam a parte coletiva do grupo. (ALENCAR, 1998) É provável que esta influência de reis e rainhas tenham vindo das nações africanas, dos combates e dos cerimoniais africanos. É muito comum encontrar tipos de dança guerreira, como essa, presente nas festas africanas. As músicas de louvor do Cacumbi são feitas para os santos protetores dos negros. Na dança em dois cordões de repente se transforma numa cadeia ritmada que tem característica de dança guerreira, tamanha é a força do batuque que os impulsiona (ALENCAR, 1998, pág 76).. Na louvação, o grupo sobe os degraus da igreja dançando e fazendo movimentos de louvor, cantando a seguinte música: São Benedito, São Benedito Um favor venho te pedir, Eu peço que vos abençoe a força do meu Cacumbi. Na África ocidental e na região onde hoje estão o Congo e Angola, de onde vieram a maior parte dos negros escravizados entre os três primeiros séculos de colonização no Brasil, a maioria dos acontecimentos sociais eram celebrados com dança e música. Podemos apontar as seguintes características nas danças africanas dessas regiões: movimentos lentos, rápidos e dinâmicos, majestosos, ágeis; giros; movimentos convulsivos, ou seja, proporcionados pelo corpo em estado de transe; rebolados; gingados e passos arrastados e saltos. Algumas danças brasileiras mais antigas como o lundu, o maxixe e o samba são originários do batuque

5 africano e outras contemporâneas como o pagode, o reggae, o funk ou as praticadas pelo grupo carnavalesco baiano Olodum também encontram na África suas estruturas estéticas e rítmicas. (BREGOLATO, 2006) De Acordo com ALENCAR (1998, pág 78), Caixas, pandeiros, ganzás, reco-reco e corror (corror é feito de taquara rosqueada, tocado com uma palheta de costela de boi), formam o suporte para as músicas do Cacumbi cujo ritmo do batuque está presente em todas as melodias. Através desta afirmação podemos observar a influência africana na música com a presença do batuque, tato confirmado por Benjamin (2006, pág. 32). Segundo ele, O batuque que atravessou o Atlântico nos navios negreiros, incorporou nos chocalhos e maracás dos povos indígenas, anexou a vida dos portugueses e deu origem ao samba. Na África, as cerimônias estão presentes nos momentos mais importantes da vida desde o nascimento até a morte, sendo que a música e a dança fazem parte delas de forma inseparável. Da mesma maneira, na louvação do Cacumbi, a música e a dança não são artes separadas. A influência do povo negro no Brasil não está presente somente na musica e na dança. Outra característica dos povos africanos, que para aqui foram arrastados nos primeiros séculos da nossa formação, é o respeito aos mais velhos, à experiência que eles acumularam durante a vida. Isso também pode ser observado no Cacumbi. Em entrevista com Antônio Carlos, me foi revelado que em algumas músicas desse folguedo existe um respeito com o Mestre, segundo ele, é um homem sábio e que trará a sabedoria de Deus para os brincantes. Podemos observar esta valorização em uma das músicas do repertório deste folguedo, onde também pode ser vista e a grande resistência do grupo para manter o folguedo vivo: Me leva, me leva, Me leva pra Bahia, Vou levar meu cacumbi seja de noite ou de dia. Nosso pai não pôde vim, Nós viemos em seu lugar, Cacumbi do Mestre Deca nunca vai se acabar.

6 Sabemos que os negros escravizados que vieram para o Brasil eram de culturas diferentes, e suas práticas religiosas tinham semelhanças e diferenças, porém, dois grupos exerceram maior influência na cultura brasileira: os Yorubás e os Bantos. Entretanto, foram os bantos os que mais tiveram seus costumes preservados e resignificados, muitas vezes misturando-se com algumas características do cristianismo. Hoje em dia a cultura dos afrodescendentes não é exatamente a mesma dos seus antepassados porque na época da escravidão eles foram repreendidos pelos colonizadores. Não era fácil viver nas terras americanas sendo escravizados e para se consolarem eles se apegavam à memoria dos seus antepassados, evocando-se através de rituais e ritmos musicais. A partir do contato com outras culturas, eles recriaram suas práticas, sem esquecer-se de onde vieram, e as transmitiram de geração em geração. Com o Cacumbi não foi diferente. Esta manifestação passou por diversas transformações como o tempo e seu legado passou por vários mestres até chegar ao atual mestre, o Mestre Deca. Com o decorrer dos anos o Cacumbi de Laranjeiras perdeu toda a dramaticidade que tinha e hoje contém apenas representações com cantos e danças, mas não deixam de ter o seu devido valor, porque eles trazem em si a força do povo negro da África e é essa força que faz o Cacumbi permanecer vivo. Contudo, para sua manutenção é necessário o apoio da comunidade, para que eles possam ter um lugar na sociedade que por direito lhes cabe, pois, apesar da maioria dos brincantes ser afrodescendente e esse folguedo ser uma herança africana, isso não é o suficiente para que seja valorizado. Infelizmente, nossa sociedade ainda não reconhece o valor do legado africano e isso pode confirmar através das palavras de Anderson Ribeiro Oliveira (2009, pág 111), Nem as apropriações e reinvenções no campo da religiosidade, musicalidade e das ideologias foram suficientes para internalizar no imaginário coletivo a ideia de que o continente africano é um dos eixos centrais para o entendimento da trajetória histórica brasileira. Conclusões Finais Como vimos, a influência africana no Brasil é imensa e vai mais além dos limites da dança, música e religião. É possível ver a contribuição dos africanos em muitos aspectos da sociedade brasileira como na língua portuguesa; na culinária; na literatura; nas artes plásticas, a exemplo das construções de grandes igrejas que ergueram; das imagens religiosas que

7 esculpiram e das lindíssimas pinturas banhadas a ouro que fizeram. Essa influência pode ser observada até mesmo no modo de andar. Estamos ligados à cultura africana e não há mais possibilidade de um desligamento dela, afinal, ela faz parte da construção da nossa identidade. Por outro lado o Brasil é o segundo país do mundo em população negra conforme os dados do IBGE em 2001, o que nos aproxima mais ainda da cultura africana. Esses e outros ensinamentos precisam ser transmitidos pelas instituições de ensino. É preciso que elas falem sobre a herança cultural africana e traga informações e sobre as origens dos grupos de cultura popular valorizando sua grande importância histórica e social. O ambiente escolar é um local de formação apropriada para isso. Dessa forma, estes ensinos trarão uma qualidade no aprendizado brasileiro, cumprindo com a sua função de prática do bem comum. Referências Bibliográficas ALENCAR, Aglaé D. F. de. Danças e Folguedos RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo, companhia das letras, BREGOLATO, R. A. Cultura Corporal da Dança. São Paulo, ícone, OLIVEIRA, A. R. in: SILVA, A. L. dos S; SANTOS, N. O. dos. Cadernos África e Africanidades 5 Histórias. Maricá, ponto de cultura, SANTOS, J.L. dos. O que é Cultura. São Paulo, Brasiliense, BENJAMIN, R. E. C. A África está em Nós: História e Cultura Afro-brasileira. João Pessoa. Editora Grafset, FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 43 ed. Rio de Janeiro: Record, NASCIMENTO, T. C. do. A História e a Cultura da África e suas Implicações com a Cultura Brasileira na Atualidade Disponível em: < acesso em: 24/08/2014 as 19:00

8 FERREIRA, M. C. C. A Influência Africana no Processo de formação da cultura Afrobrasileira Disponível em: < acesso em: 01/09/2014 DIÁRIO DE CUIABÁ. Brasil tem 2º maior população negra do mundo. Cuiabá, Edição nº 10128, 19 de nov Disponível em: < acesso em: 13/09/2004