Gênero Neisseria spp.

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1 Departamento de Microbiologia Instituto de Ciências Biológicas Universidade Federal de Minas Gerais Gênero Neisseria spp. Introdução O gênero Neisseria é pertencente à família Niesseriacea e são caracterizados como cocos Gram-negativos, habitualmente ocorrendo aos pares. São imóveis, não formam esporos e medem cerca de 0,8 μm de diâmetro. Quando os cocos se encontram isolados são retiniformes, quando ocorrem aos pares, os lados adjacentes são achatados ou côncavos, dando a forma de rins ou dois grãos de feijão unidos por uma ponte (Fig. 1). Apenas a espécie N. elongata difere desta morfologia, sendo diplobacilos ou diplococo-bacilo. As espécies do gênero são oxidase-positivas e catalase-positivas, exceto N. elongata. Todas utilizam carboidratos por via oxidativa e não fermentativa, sendo baixa a acidez, de modo que podem acontecer reações duvidosas com o meio CTA (Cistyne Tripticase Agar) com indicador vermelho de fenol, que sempre foi muito utilizado em rotina. Figura 1: Neisseria meningitidis, observar os arranjo espacial dos pares de cocos. A maioria das espécies são comensais, vivendo em mucosas humanas e de animais. As duas principais espécies de importância clínica são a N. meningitidis (meningococos) e a N. gonorrheae (gonococos), que são patogênicas para o homem e tipicamente encontradas em associação a células polinucleadas. Os gonococos e os meningococos estão estritamente relacionados (70% de homologia no DNA). Algumas características específicas são a presença de cápsula de polissacarídio em meningococos e a presença de plasmídios na maioria dos gonococos, ocorrendo raramente em meningococos. As duas espécies são normalmente diferenciadas pelo quadro clínico das doenças que provocam: os meningococos são encontrados nas vias aéreas respiratórias superiores e provocam meningites; já os gonococos provocam infecções genitais. Outras espécies causadoras de doenças são patógenas oportunistas e provocam meningites, endocardites e pneumonias. Em meios de cultura enriquecidos (Muller-Hinton e Thayer-Martin modificado, por exemplo) os gonococos e os meningococos formam colônias mucóides convexas, elevadas e brilhantes, sendo transparentes ou opacas, não-pigmentadas e não-hemolíticcas. As neissérias crescem bem em condições aeróbias, embora algumas cresçam em anaerofilia, tendo exigências complexas para seu crescimento. A maioria fermenta carboidratos, produzindo ácido, mas não gás. São microrganismos pouco resistentes ao ressecamento, à luz solar, ao calor úmido e a muitos desinfetantes e agentes quimioterápicos. Esse gênero produz indofenol-oxidas e enzimas autolíticas que resultam em rápido intumescimento e dissolução das culturas. 1

2 Neisseria gonorrhoeae Características gerais Essa espécie é sempre considerada patogênica. É o agente etiológico da gonorréia e sua transmissão é sexual ou pelo parto. O homem é o único hospedeiro natural em que os gonococos são patógenos, os quais fermentam apenas a glicose e diferem de outras neissérias antigenicamente. Suas colônias, quando isoladas de amostras clínicas ou mantidas por repicagem seletivas, são menores que as outras espécies de neissérias e são dotadas de pili. Nos repiques não-seletivos as colônias são maiores e não apresentam pili. Fatores de Virulência - Pili ou Fímbrias tipo IV: São importantes na aderência, na atividade antifagocitária e na troca de material genético. São constituídos de proteínas em forma de estaca, as pilinas, que têm a extremidade aminoterminal conservada e com elevada concentração de aminoácidos hidrofóbicos. A porção intermediária da molécula também é conservada, servindo para a fixação; e a extremidade carboxiterminal é variável e é mais proeminente na resposta inunológica. - Proteína porina (POR): Essa proteína se estende pela membrana celular e ocorre em trímeros, formando poros que permitem a entrada de nutrientes na célula. A POR pode levar à morte intracelular dos gonococos no interior dos neutrófilos pela prevenção da fusão fagossomo-lisossomo. - Proteína de opacidade (OPA): Atuam na adesão dos gonococos dentro das colônias e na fixação às células do hospedeiro, principalmente naquelas que expressam antígenos carcinoembrionários (CD66). - Proteína III (reduction-modifiable protein Rmp): É uma proteína altamente conservada nos gonococos. Ela é passível de modificação por redução e se associa a POR para a formação de poros na superfície celular. - Lipopolissacarideo (LOS): Impedem a fagocitose. É uma endotoxina envolvida no dano tissular. O LOS dos gonococos e o glicoesfingolipídio humano pertencentes à mesma classe estrutural reagem com o mesmo anticorpo monoclonal. Esse mimetismo molecular ajuda esse microrganismo a escapar do reconhecimento imunológico. - Outras proteínas com papéis ainda pouco definidos na patogenia: A Lip (H8) é uma proteína de superfície exposta, temomodificável como a OPA. A Fbp (proteína de ligação do ferro) é expressa quando o ferro se torna limitado, como na infecção humana. A IgA1 protease que cliva e inativa a IgA1. - Plasmídio: Crítico na patogenia. Apresenta o gene para B-lactamase e pode ser passado por conjugação. Patologia, patogenia e manifestações clínicas Exibem várias formas morfológicas, mas apenas as dotadas de pili parecem ser virulentas. A expressão da proteína OPA varia de acordo com o tipo de infecção. Os gonococos atacam a mucosa do trato geniturinário, dos olhos, reto e garganta, causando supuração aguda, podendo levar à invasão tecidual, processo que é seguido por inflamação crônica e fibrose. No homem causa uretrite, sendo até 50% assintomática e está relacionada a complicações como epididimite, prostatite e estenose uretral. Na mulher causa corrimento vaginal, endocervicite, uretrite, abscesso vestibular, salpingonegooforite e doença inflamatória pélvica. Em recém-nascidos pode causar uma conjuntivite denominada Oftalmia neonatorum. A doença sistêmica pode ocorrer em 1 a 3% dos pacientes infectados, principalmente em assintomáticos e caracterizada por febre, tremores, lesões cutâneas e artrite de extremidades. 2

3 Disseminação ocorre com exantema nas extremidades, artrite gonocócica, endocardite, meningite, infecção ocular em adultos e oftalmia neonatal. Incubação dura de 2-6 dias e não há imunidade protetora. Diagnóstico laboratorial - Amostras: O material clínico escolhido para isolamento depende dos sintomas. Podem ser obtidas de pus e de secreções da uretra, do colo, do reto, da conjuntiva, da garganta ou do líquido sinovial para cultura e esfregaço. Utilizar swab com algodão atóxico ou swab de Rayon ou Dacron. - Esfregaços: Usa-se a coloração com Giemsa e Gram. Esfregaços de exsudato uretral ou endocervical mostram vários diplococos no interior de leucócitos (diagnóstico presuntivo) (Fig. 2). Figura 2: Neisseria gonorrhoea, em forma de diplococos, visualizadas dentro de leucócitos. Os esfregaços corados de exsudatos da conjuntiva também podem ser diagnosticados, mas as amostras de garganta e reto geralmente não são úteis. - Cultura: Recomenda-se incubar em Ágar chocolate enriquecido com suplemento com l- cisteína, NAD e vitaminas (Isovitalex ou similar). Secreção retal, swab de orofaringe, ou outros materiais com maior microbiota contaminante ou menor expectativa de isolamento, semear, além do meio rico, em meio seletivo como Thayer Martin modificado (TMM) ou meio New York City (NYC), em atmosfera contendo 5% de CO 2. Para evitar o crescimento excessivo de contaminantes, o meio deve conter antimicrobianos, como vancomicina, colistina, anfotericina e trimetoprima. - Testes confirmatórios: A identificação das espécies pode ser determina no repique por meio de reações de fermentação. No caso de isolados de locais que não sejam o trato genital ou de crianças, a identificação da espécie deve-se seguir de dois testes confirmatórios diferentes devido às implicações legais e sociais dos microrganismos isolados. - Testes de amplificação dos ácidos nucléicos: Testes disponíveis comercialmente para a detecção direta de N. gonorrhoeae em amostras do trato geniturinário. Esses testes possuem excelente sensibilidade e especificidade em populações sintomáticas de alta prevalência. Mas não são recomendados para infecções gonocócicas extragenitais ou infecções em crianças por darem reatividade cruzada com espécies de neissérias não-gonogócicas. - Sorologia: Em indivíduos infectados, anticorpos dirigidos contra pili gonocácicos e as proteínas da membrana externa podem ser detectadas por meio de immunoblotting, radioimunoensaio e ELISA. Porém, esses testes não são tão úteis devido à heterogeneidade antigênica, demora na produção de anticorpos na presença de infecção aguda e nível basal elevado de anticorpos na população sexualmente ativa. Tratamento Como a resistência gonocócica à penicilina vem aumentando, muitas cepas exigem altas concentrações de penicilina G para a sua inibição. O US Public Health Service recomenda que as infecções genitais e retais sem complicações sejam tratadas com dose única de ceftriaxona intramuscular (ativo contra gonococos apresentando resistência a B- lactâmicos). Terapia adicional com doxiciclina VO para prevenir infecções concomitantes por clamídias. Nas mulheres grávidas a doxiciclina deve ser substituída por eritromicina-base VO. Cefalosporinas de última geração também são utilizadas. 3

4 Epidemiologia, prevenção e controle A gonorreia é uma doença de distribuição mundial, exclusivamente transmitida por contato sexual, frequentemente por homens e mulheres assintomáticos. O microrganismo é altamente infectante, sendo a probabilidade de contrair a infecção em uma única exposição de cerca de 20 a 30 % para homens, e ainda maior para mulheres. A taxa de infecção pode ser reduzida evitando-se vários parceiros sexuais, com rápida erradicação dos gonocócicos dos indivíduos infectados por diagnóstico e tratamento precoce. A proteção por uso de preservativos proporciona proteção parcial. A quimioprofilaxia é limitada devido ao aumento da resistência gonocócica a antibióticos. A oftalmia neonatal pode ser evitada usando-se pomada tópica de eritromicina a 0,5% ou de tetraciclina a 1% na conjuntiva dos recém-nascidos. Neisseria meningitidis Características gerais São bactérias fermentadoras de glicose e da maltose (oxidação positiva). Possuem uma cápsula polissacarídea. Apresentam resistência natural à vancomicina e à polimixina e crescem no meio Thayer- Martin a 35 C. Necessitam de ferro para sobreviver. Existem pelo menos 13 sorogrupos desta bactéria, dos quais os principais são: sorogrupo A, frequentemente em países em desenvolvimento; sorogrupo B e C, causador de meningite e meningococémia; e sorogrupo Y e W135, causador de pneumonia meningocócica. Essa bactéria tem um caráter infecto contagioso, com alta taxa de mortalidade. O homem é o único hospedeiro natural em que os gonococos são patógenos. Fatores de Virulência - Pili ou Fímbrias tipo IV: vide Neisseria gonorrhoeae. Porém, ao contrário dos gonococos, estes não formam colônias distintas. - Proteínas de Classe 1, 2 e 3: Proteínas da membrana externa dos meningococs divididas por peso molecular. São análogas da proteína POR dos gonococos e responsáveis pela especificidade dos sorotipos dos meningococos, atuando na formação de poros na parede celular. - Proteína de Classe 5: comparável a OPA dos gonococos. - LPS: Responsável por muitos dos fatores tóxicos observados na doença meningocócica. - Polissacarídeos capsulares: Possuem especificidade imunológica e são a base para agrupar os meningococos. Os antígenos meningocócicos são encontrados no sangue e no líquido cefalorraquidiano dos pacientes com doença ativa. Os sorotipos A e C estão associados à doença epidêmica. Patogenia, patologia e manifestações clínicas O sítio de entrada desses microrganismos é a nasofaringe, onde se fixam às células epiteliais com o auxílio do pili. São disseminados via gotículas respiratórias aspiradas, logo a integridade do epitélio da faringe é importante na proteção contra a doença. Irritação crônica da mucosa e infecção respiratória superior são fatores que predispõe a contaminação. Podem fazer parte da microbiota transitória sem causar sintomas. Podem alcançar a corrente sanguínea e provocar bacteriemia, apresentando sintomas semelhantes a infecções das vias respiratórias superiores. As manifestações de meningite meningocócica são comuns à meningite bacteriana aguda, apresentando calafrios, febre, mal-estar, cefaléia, vômito e, raramente, papiledema. As manifestações de meningite meningocócica em crianças são: irritabilidade, recusa em se alimentar e vômito. A febre é tipicamente ausente em crianças com menos de dois meses de idade. A hipotermia é mais comum em neonatos. 4

5 Com o progresso da doença há apneia, alterações do tônus muscular e coma. Raramente há sinais de irritação de meninge. As manifestações de meningite meningocócica em jovens e adultos são: febre, estado mental alterado, dor de cabeça muito severa, convulsões ou coma, náusea, vômito, fotofobia, rigidez de nuca, sinais meníngeos (Kernig e Brudzinski), hiperreflexia, petéquias. A meningococcemia fulminante (síndrome de Waterhouse-Friderichsen) ocorre em 5 a 15% de pacientes, com alta taxa de mortalidade. Manifesta-se bruscamente apresentando febre alta, calafrios, mialgia, fraqueza, náusea, vômito, dor de cabeça, inquietude, delírio, equimoses e púrpuras em todo o corpo. Tipicamente, nenhum sinal de meningite está presente. Insuficiência pulmonar se desenvolve dentro de algumas horas, e muitos pacientes morrem dentro de 24 horas apesar de terapia antibiótica apropriada e tratamento intensivo. Diagnóstico laboratorial - Amostras: Materiais clínicos para isolamento são obtidos de acordo com aspectos clínicos. As amostras de sangue são para cultura, as de líquido cefalorraquidiano para esfregaço, cultura e determinações químicas. As culturas obtidas de swab nasofaríngico são apropriadas para a detecção de portadores. O material de petéquias por punção pode ser usado em esfregaço e cultura. - Esfregaço: Coloração pelo método de Gram de amostras do líquido cefalorraquidiano centrifugado ou do aspirado de petéquias frequentemente revela a presença de neissérias típicas no interior de leucócitos polinucleares ou fora das células. - Cultura: Amostras de sangue podem ser semeadas em meio de cultura sem sulfonato sódico. As de líquido cefalorraquidiano, em Ágar Chocolate e incubadas a 37 C em atmosfera de 5% de CO 2. Amostras da nasofaringe podem ser cultivadas em meio Thalyer-Martin modificado com antibiótico. - Testes presuntivos e confirmatórios: As neissérias em meio de cultura sólido podem ser identificadas por coloração de Gram e pelo teste da oxidase. Nas culturas puras (geralmente de líquido cefalorraquidiano e sangue) a identificação pode ser por reações de fermentação dos carboidratos e aglutinação com soro específico ou polivalente. - Sorologia: Detecção de anticorpos contra polissacarídios meningogócicos por teste de aglutinação em látex ou hemaglutinação, ou pela atividade bactericida. Tratamento O fármaco de escolha da doença meningocócica é a penicilina G. Em indivíduos alérgicos à penicilina usa-se clorafenicol ou um cefalosporina de terceira geração (cefataxina ou ceftriaxona). Epidemiologia, prevenção e controle Entre 5 a 30% da população é portadora dessa bactéria, mas poucos desenvolvem a doença. Mesmo durante epidemias de meningite meningocócica em recrutas militares, quando o índice de portador pode alcançar 95%, a incidência de doença é menor que 1%. Isso sugere que fatores do hospedeiro possuem papel mais determinante do que o da bactéria. O tratamento com penicilina oral não erradica o estado de portador, mas a administração de rifampicina durante dois dias ou de minociclina pode e serve como quimioprofilaxia para contatos domésticos e outros contatos íntimos. Evitar as aglomerações é importante para evitar o contágio e a transmissão. Os polissacarídios específicos dos grupos A, C, Y e W-135 podem estimular a produção de anticorpos e proteger os indivíduos susceptíveis contra a infecção. 5

6 Outras espécies de Neisseria Espécies de Neisseria, como a Neisseria sicca e a Neisseria mucosa, são microrganismos comensais na orofaringe. Estes microrganismos são implicados em casos isolados de meningite, osteomielite, endocardite, infecções broncopulmonares, otite média aguda e sinusite aguda. Não se conhece a verdadeira incidência de infecções do trato repiratório causadas por estes microrganismo, porque a maioria das espécimes é contaminada com secreções orais. No entanto, a observação de muitos diplococos Gram-negativos associados a células inflamatórias em um espécime respiratório bem coletado confirma o papel etiológico desses microrganismo. A maioria das cepas de N. sicca e N. mucosa é suscetível à penincilina, embora resistência a níveis baixos causada por alteração das proteínas que fixam a penicilina tenha sido observada. 6

7 Literatura sugerida ANVISA. Detecção e Identificação de Bactérias de Importância Médica. [Versão eletrônica]. BARON, S. Medical Microbiology. 4 ed. Galveston (TX): University of Texas Medical Branch; [Versão eletrônica]. JAWETZ, MELNICK & ADELBERG. Microbiologia Médica: Um livro médico lange/ Geo F. Brooks [et. al]. 24 ed. Rio de Janeiro. Editora McGraw-Hill Interamericana do Brasil Ltda MURRAY, Patrick R; ROSENTHAL, Ken S; PFALLER, Michael A. Microbiologia médica. 5. ed. Rio de Janeiro. Editora Elsevier, OLIVEIRA, A. M. F.; SANTOS, J. E. F.; OLIVEIRA, L. L.; SOUZA, L. B. S.; SANTANA, W. J.; COUTINHO, H. D. M. Fatores de vir- ulência de Neisseria spp. Arq. Ciênc. Saúde Unipar, Umuarama, 8(1), jan./abr. p.39-44, '