Acting out e passagem ao ato: a história do ato no corpo Autores: Francisco Garzon e Manoel Tosta Berlinck

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1 Acting out e passagem ao ato: a história do ato no corpo Autores: Francisco Garzon e Manoel Tosta Berlinck Francisco Gomes de Almeida Garzon 000 Rua Teodoro Sampaio, 498 apto 153, Pinheiros, São Paulo SP. CEP Graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Mestrando / pesquisador no Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP, Psicólogo do Centro de Atendimento Multidisciplinar da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Manoel Tosta Berlinck Rua Tupi, o andar sala 103 São Paulo, SP Brasil tel: Manoel Tosta Berlinck: Bacharel em Ciências Sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo ( ), Mestre em Ciências Sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1964), Ph.D. (Development Sociology) pela Cornell University (1969). Professor de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) ( ). Diretor do IFCH da UNICAMP ( ). Sócio fundador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde dirige o Laboratório de Psicopatologia Fundamental. Presidente da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental ( ), diretor da Editora Escuta e da Livraria Pulsional ( ). Editor de Pulsional Revista de Psicanálise ( ). Editor da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. Membro da WAME - World Association of Medical Editors. Experiência na área de Psicopatologia Fundamental, atuando principalmente nos seguintes temas: psicopatologia fundamental, psicanálise, método clínico e melancolia. 1

2 Acting out e passagem ao ato: a história do ato no corpo Autores: Francisco Garzon e Manoel Tosta Berlinck Em oposição à clara qualidade de símbolo encontrada no sintoma, amplamente pesquisada por Freud, encontramos na observação clínica formas de expressão sintomática, muitas vezes repetidas ao longo da história de um sujeito, a respeito das quais não se pode reconhecer tamanha qualidade simbólica. Sua expressão é frequentemente alcançada por meio de atos, estes sim, providos de sentido se considerados no contexto de uma cena. Dentre as muitas formas deste tipo de expressão sintomática que podemos reconhecer a partir de nossa vivência clínica, como atos-falhos, lapsos, inibições, trataremos nesta exposição apenas do acting-out e da passagem ao ato, traçando distinções e aproximações entre os conceitos, de acordo com o ponto de vista dos autores que nos servem de referência. A respeito do acting out, encontramos valiosas definições na literatura psicanalítica. Segundo Laplanche e Pontalis (2001), genericamente, o termo acting out vem sendo utilizado em psicanálise para ações que apresentam caráter impulsivo, isolável em relação à conduta usual, que toma, muitas vezes uma forma auto ou heteroagressiva. Passagem ao ato (passage à l acte), expressão mais utilizada em francês como equivalente ao acting out, sugere a ideia de que o sujeito faz uma passagem - da representação, de uma tendência, ao ato nu e cru. O termo atuação, situado em verbete diverso de acting out, é definido como um ato em que o sujeito atua uma pulsão, fantasia ou desejo, vivendo-os no presente com sentimento de atualidade e desconhecendo sua natureza repetitiva. Retomemos a cena em que Édipo Rei passa ao ato, furando os próprios olhos após o suicídio de Jocasta. A passagem ao ato de Édipo deve ser compreendida levando-se em consideração não apenas a morte (também uma passagem ao ato) de Jocasta, mas a constatação que fizeram anteriormente sobre o assassínio de Laio pelas mãos de Édipo e sobre a relação incestuosa que viviam. 2

3 A Édipo foi revelada, pelo pastor que primeiro o acolheu, sua origem filho de Laio e de Jocasta. Ao tomar consciência de ter assassinado o próprio pai e desposado a própria mãe, Édipo se desespera: Édipo: Transtornado Ai de mim, ai de mim! As dúvidas desfazem-se! Ah! Luz do sol. Queiram os deuses que esta seja a derradeira vez que te contemplo. Hoje tornou-se claro a todos que eu não poderia nascer de quem nasci, nem viver com quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia! (SÓFOCLES, 2008, p. 82) Jocasta, também ciente da revelação, recolhe-se ao quarto e comete suicídio, enforcando-se. Ao encontrá-la, já sem vida, Édipo tira a própria visão, ferindo os olhos. O relato do Criado do rei a seu amigo, Corifeu, oferece uma visão da cena: Criado: Ao contemplar o quadro, entre urros horrorosos o desditoso rei desfez depressa o laço que a suspendia; a infeliz caiu por terra. Vimos, então, coisas terríveis. De repente o rei tirou da roupa dela uns broches de ouro que as adornavam, segurou-os firmemente e sem vacilação furou os próprios olhos, gritando que eles não seriam testemunhas nem de seus infortúnios nem de seus pecados: nas sombras em que viverei de agora em diante, dizia ele, já não reconhecereis aqueles que já não quero reconhecer! Vociferando alucinado ainda erguia as próprias pálpebras e desferia novos golpes. (...) (SÓFOCLES, 2008, p. 86) O ato desesperado de Édipo pode ser pensado como um recurso ao Real, daquele que já não pode ver diante de si a própria história. Ciente da catástrofe, restou a Édipo cegar a si mesmo. Não teria sido possível encontrar outro meio de lidar com o afeto, que ultrapassou suas possibilidades de elaboração e defesa. Segundo Roussillon (2006), o ato de Édipo é uma descarga. (...) O ato é então o preço a pagar para salvaguardar a interioridade e a organização psíquica, ele se oferece como anteparo, como limite (p. 206). 3

4 A saída de cena, neste caso, supõe um apagamento de si em relação a si mesmo. Todos, de escravos a deuses, teriam se tornado conhecedores dos infortúnios do rei. No entanto, o impossível para Édipo foi olhar para o fim da cena. Furando os próprios olhos, encerra-se em si mesmo e encerra a cena insuportável. Seu pedido foi, por fim, o próprio exílio. Roudinesco e Plon (1998), por sua vez, em seu Dicionário de psicanálise, oferecem definição de acting out que congrega, em um mesmo verbete, as atuações de modo geral: Noção criada pelos psicanalistas de língua inglesa e depois retomada tal e qual em francês, para traduzir o que Sigmund Freud denomina de colocação em prática ou em ato, segundo o verbo alemão agieren. O termo remete à técnica psicanalítica e designa a maneira como um sujeito passa inconscientemente ao ato, fora ou dentro do tratamento psicanalítico, ao mesmo tempo para evitar a verbalização da lembrança recalcada e para se furtar à transferência. No Brasil, também se usa atuação. (p. 06) Como se pode observar na definição, acting out e passagem ao ato são agrupados segundo a concepção freudiana de colocação em prática. No entanto, ao longo da discussão sobre o termo, os autores introduzem os avanços propostos por Lacan sobre as peculiaridades desses atos, sobretudo no que tange às distinções psicodinâmicas e na relação com o objeto, observadas por ele. Em seu seminário sobre a angústia, Lacan ( ) abordou a questão dos atos sintomáticos de forma bastante esclarecedora. A distinção que propõe baseia-se na posição do sujeito em relação à cena em torno do conflito. A passagem ao ato seria, segundo sugere Lacan, a queda do sujeito para fora da cena, interrompendo seu curso. O acting out, segundo propõe, seria a criação e sustentação da própria cena, em um nível de demonstração bastante intencional (mesmo sendo inconsciente). Lacan ( ) afirma que o momento da passagem ao ato é o do embaraço maior do sujeito, com o acréscimo comportamental da emoção como distúrbio do 4

5 movimento (p. 129). Seria justamente a emoção, o afeto, a impulsionar o sujeito para fora da cena que vinha sustentando. A ideia do afeto como distúrbio do movimento faz sentido quando a reconhecemos inserida em um sistema em que não se pode ter recurso ao uso do símbolo. Ali onde não haveria palavra e não haveria sequer a possibilidade de sustentação da cena, adviria o movimento que livra o sujeito do embaraço em que se encontra, a passagem ao ato. Segundo Maria Cristina Bechelany Dutra, a passagem ao ato representaria uma tentativa de cura realizada pelo sujeito que, diante de um encontro dessa ordem e não estando em condições de mobilizar um significante para temperar a perplexidade angustiante que o assalta, lança mão do ato como uma saída possível (DUTRA, 2000, p. 55). Segundo sugere a autora, da impossibilidade de simbolização diante do afeto, o ato representaria o avesso do pensamento e da dúvida, fundando para o sujeito uma certeza; a certeza de sair da cena em que pode ser vista pelo Outro, afirmando que a passagem ao ato é o movimento que consiste em separar a vida de sua tradução, de sua transposição no Outro. Ela representa este momento em que nenhum interlocutor e nenhuma mediação é possível (DUTRA, 2000, p. 52). Iniciando a distinção entre passagem ao ato e acting out, Lacan ( ) sugere que tudo que é acting out é o oposto da passagem ao ato (p. 136). Tal oposição seria principalmente situada em relação ao endereçamento do ato. O acting out seria, assim, algo que se mostra na conduta do sujeito, dotado de ênfase demonstrativa e orientado para o Outro (LACAN, ). Ainda segundo ele, a escandalosa publicidade do acting out demonstra seu direcionamento em direção ao Outro, clamando por um espectador capaz de interpretálo. Postula que, assim como o sintoma, o acting out demonstra um desejo desconhecido pelo sujeito, afirmando até mesmo que o acting out é um sintoma. O sintoma também se mostra como outro. Prova disso é que deve ser interpretado (LACAN, , p. 137). Em resumo, Lacan ( ) aproxima o acting out do sintoma por considerá-lo passível de interpretação. No entanto, traça clara distinção entre ambos ao ponderar que o que a análise descobre no sintoma é que ele não é um apelo ao Outro (...) o sintoma, por natureza, é gozo (p. 140). Assim sendo, o sintoma, posto que gozo encoberto, não 5

6 requer o reconhecimento do Outro para cumprir sua função, não é mostração, se basta em si. Por outro lado, nesta distinção, Lacan distancia a passagem ao ato do sintoma, considerando-a desprovida de destinatário e de interpretação. Por esse critério da interpretabilidade, podemos sugerir que o acting out guarda, ainda que de forma precária, valor simbólico, uma vez que é dirigido ao Outro para que seja interpretado. Na passagem ao ato, a intenção seria a do desmonte da cena, saída do sujeito do campo de visão do Outro, recurso ao real que paralisa a interpretação do espectador, que passa a lançar o olhar sobre o corpo, inanimado, do sujeito. Segundo Dutra (2000), contrariamente ao acting out que viria sob a forma de um dizer, a passagem ao ato seria um eu não quero dizer capaz de separar o sujeito do Outro, veiculando a mensagem de um não profundo do sujeito, dirigido ao Outro (p. 52). Lacan ilustra as distinções que traçou valendo-se, para tanto, dos casos apresentados por Freud em Psicogênese de um caso de homossexualidade numa mulher (1920) e em Fragmento da análise de um caso de histeria (1905), especificamente em relação à nota acrescentada por ele em 1923, na qual introduz a identificação homossexual de Dora em relação a sua mãe, observada na relação de Dora com a Sra. K. Afirma Lacan ( ), quanto à situação que: No caso de homossexualidade feminina, se a tentativa de suicídio é uma tentativa de passagem ao ato, toda a aventura com a dama de reputação duvidosa, que é elevada à função de objeto supremo, é um acting-out. Se a bofetada de Dora é uma passagem ao ato, todo seu comportamento paradoxal na casa dos K., que Freud prontamente descobre com tanta perspicácia, é um acting out. (p. 137) A respeito dessa afirmação, podemos considerar que, nos casos que nos servem de exemplo, a passagem ao ato encerra a cena que vinha sendo atuada, dirigida ao Outro. Isto reitera a ideia da passagem ao ato como ato que não é dirigido a alguém para que seja decifrado, mas uma retirada do sujeito da cena, ou, conforme sugere Pinho (2000), do mundo do reconhecimento, onde pode se manter somente como sujeito a partir do tecido simbólico de sua história. (...), é um ato não simbolizável, que leva o sujeito a uma situação de ruptura integral (p. 78). 6

7 Outro ponto importante da discussão em torno de acting out e passagem ao ato em relação à angústia, segundo propôs Lacan, diz respeito ao posicionamento do sujeito em relação ao objeto a (pequeno a). Para o presente texto, limitaremos sua definição a: objeto causa do desejo, desejado pelo sujeito e que se furta a ele a ponto de não ser representável, ou de se tornar um resto não simbolizável (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 551). A posição em relação ao objeto a, objeto inassimilável pelo significante, é sempre de proximidade, seja na passagem ao ato, seja no acting out. Na passagem ao ato, a proximidade com o resto da operação que resulta no sujeito da castração, impõe a angústia que precipita o sujeito ao largar de mão, laisser tomber (LACAN, , p. 129), seus correlatos necessários. O mesmo poderia ocorrer ao sujeito da negação da castração, também angustiado pela proximidade com a, ainda que desde outro ângulo. A respeito do acting out, Lacan sugere que sua proximidade com o objeto a se revela no fato de que o acting out, em sua exuberância performática, sempre se mostra como algo diferente do que é. A cena veiculada no acting out se dirige ao Outro como pedido de interpretação de um enigma. Para Lacan, o cerne desse enigma estará sempre atrelado à emergência do objeto a. Tanto no primeiro caso quanto no segundo, o ato se impõe, segundo Lacan ( ), pelo caráter irrepresentável do objeto. O resultado em ato da angústia imposta pela aproximação do sujeito ao resto que lhe falta como sujeito castrado ou como sujeito que negou a castração, impõe questionarmos sobre a possibilidade da existência de passagem ao ato e acting out nas diferentes estruturas clínicas. As concepções de passagem ao ato e acting out desenvolvidas por Lacan desvinculam-se do condicionamento à estrutura clínica, uma vez que se relacionam, concomitantemente, às dimensões do significante (ou do Outro) e do objeto. Ainda que o faça de forma diferente, o sujeito, em algum nível, estará às voltas com o Outro e ameaçado pela aproximação com o objeto a, seja na neurose, na psicose ou na perversão (DUTRA, 2000). Especificamente em relação à psicose, a passagem ao ato ocorreria quando o sujeito não consegue operar eficazmente uma mobilização delirante do significante. Com a falência do recurso simbólico, não restaria ao psicótico outra possibilidade que não fosse lançar mão desse outro meio: o sacrifício de um objeto real (DUTRA, 2000, p. 54). 7

8 Entre os anos 1975 e 1976, em seu seminário intitulado O sinthoma Lacan alcançou importante avanço na cenceituação do sintoma em sua função de símbolo. Em sua complexa e algo obsessiva explanação acerca das propriedades do nó borromeano, ele nos oferece a esclarecedora imagem do sintoma como liame a costurar, compromissar, os registros do real, imaginário e simbólico. Na estrutura do nó, o sintoma seria a peça responsável por impedir a desarticulação entre os demais elementos. Segundo Lacan ( ), estabelecer o laço enigmático do imaginário, do simbólico e do real implica ou supõe a ex-sistência do sintoma (p. 21). Sob este prisma, poderíamos sugerir que nos atos sintomáticos esta função de articulação não se completa. Em oposição ao sintoma, o ato seria incapaz de sustentar o atrelamento do simbólico aos registros do real e do imaginário, ainda que guarde a possibilidade de síntese da cena, como sugere Roussillon (2006), ao afirmar que a passagem ao ato seria então nela mesma algo que contém um movimento, no interior do qual já teria se operado uma função de síntese elementar, mas que não possuiria representação metafórica ou simbólica desse vínculo, dessa ligação (p. 202). Outro aspecto relevante diz respeito ao endereçamento do ato, a que ou a quem se destina. Estes atos sintomáticos dos quais vimos tratando, podem destinar-se ao desmonte ou à composição de uma cena. Neste sentido, pensamos que o sintoma também ocupa determinada posição em relação à cena; mais uma vez haveria, quanto a isto, uma distinção qualitativa a apontar. Enquanto nas atuações existiria o trânsito entre o dentro e o fora da cena, entre o desmonte e a montagem, o sintoma neurótico seria capaz de prover a composição simbólica do microcosmo da cena do conflito, moldado sob forças muito potentes, de modo a ser a forma irreconhecível da cena do todo do conflito. Tal composição enigmática requer um vasto trabalho do aparelho psíquico. O sintoma esconde a cena do conflito. Quando o sintoma opera, ele permite que o conflito opere em outro registro, o registro do simbólico. Nesse registro até pode aparecer o desejo, mas o motor do sintoma é o gozo, traduzido na (im)possibilidade de acesso ao resto do conflito. De forma análoga, na psicose, o trabalho psíquico requerido para a composição do sintoma delirante seria tão elaborado quanto aquele que apontamos em relação à neurose. O delírio, capaz de transformar a realidade compartilhada, moldando-a à negação da castração pode ser reconhecido como rico trabalho imunológico oferecido pelo psiquismo, evitando a total fragmentação do sujeito. 8

9 Sabemos, sobretudo quando nos submetemos à análise pessoal, o peso que têm determinações impostas pelos fatos comuns de nossa história, pequenos traumas aos quais atribuímos sentidos os mais diversos. Construção de cicatrizes simbólicas para sequelas lançadas ao des-conhecido do recalque. Por outro lado, existiria, segundo Dunker (2006), outro efeito da passagem ao ato, de certa maneira oposto à ideia de conjurar um fantasma, mas que dela se aproxima no que diz respeito à sua função: Aqui poderíamos localizar os efeitos da passagem ao ato. Ela exprime a realização positiva do objeto em um ato paradoxal, tal qual o suicídio. Não se trata de purificar o excesso, mas de uma identificação com o elemento perturbador (p. 48). A contribuição desses autores endossa nossa ideia de que o recurso ao acting out, atrelado à passagem ao ato teria a função de criação de uma cena em que o Outro é convocado a implicar-se na tentativa de controle dos elementos de sujeição e afetação. Sua tentativa de passagem é para a cena do Outro, onde o homem como sujeito tem de se constituir, tem de assumir um lugar como portador da fala, mas só pode portá-la numa estrutura que, por mais verídica que se afirme, é uma estrutura de ficção (LACAN, , p. 130). Retomemos a cena em que Édipo Rei passa ao ato, furando os próprios olhos após o suicídio de Jocasta. A passagem ao ato de Édipo deve ser compreendida levandose em consideração não apenas a morte (também uma passagem ao ato) de Jocasta, mas a constatação que fizeram anteriormente sobre o assassínio de Laio pelas mãos de Édipo e sobre a relação incestuosa que viviam. A Édipo foi revelada, pelo pastor que primeiro o acolheu, sua origem filho de Laio e de Jocasta. Ao tomar consciência de ter assassinado o próprio pai e desposado a própria mãe, Édipo se desespera: Édipo: Transtornado Ai de mim, ai de mim! As dúvidas desfazem-se! Ah! Luz do sol. Queiram os deuses que esta seja a derradeira vez que te contemplo. Hoje tornou-se claro a todos que eu não poderia nascer de quem nasci, nem viver com quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia! (SÓFOCLES, 2008, p. 82) 9

10 Jocasta, também ciente da revelação, recolhe-se ao quarto e comete suicídio, enforcando-se. Ao encontrá-la, já sem vida, Édipo tira a própria visão, ferindo os olhos. O relato do Criado do rei a seu amigo, Corifeu, oferece uma visão da cena: Criado: Ao contemplar o quadro, entre urros horrorosos o desditoso rei desfez depressa o laço que a suspendia; a infeliz caiu por terra. Vimos, então, coisas terríveis. De repente o rei tirou da roupa dela uns broches de ouro que as adornavam, segurou-os firmemente e sem vacilação furou os próprios olhos, gritando que eles não seriam testemunhas nem de seus infortúnios nem de seus pecados: nas sombras em que viverei de agora em diante, dizia ele, já não reconhecereis aqueles que já não quero reconhecer! Vociferando alucinado ainda erguia as próprias pálpebras e desferia novos golpes. (...) (SÓFOCLES, 2008, p. 86) O ato desesperado de Édipo pode ser pensado como um recurso ao Real, daquele que já não pode ver diante de si a própria história. Ciente da catástrofe, restou a Édipo cegar a si mesmo. Não teria sido possível encontrar outro meio de lidar com o afeto, que ultrapassou suas possibilidades de elaboração e defesa. Segundo Roussillon (2006), o ato de Édipo é uma descarga. (...) O ato é então o preço a pagar para salvaguardar a interioridade e a organização psíquica, ele se oferece como anteparo, como limite (p. 206). A saída de cena, neste caso, supõe um apagamento de si em relação a si mesmo. Todos, de escravos a deuses, teriam se tornado conhecedores dos infortúnios do rei. No entanto, o impossível para Édipo foi olhar para o fim da cena. Furando os próprios olhos, encerra-se em si mesmo e encerra a cena insuportável. Seu pedido foi, por fim, o próprio exílio. 10

11 Nos, Francisco Garzon e Manoel T Berlinck autores do trabalho intitulado Acting Out e Passagem ao Ato: a história do ato no corpo, o qual submetemos à apreciação da Comissão Executiva do V Congresso de Psicopatologia Fundamentaç AUPPF, sendo vedada qualquer reprodução total ou parcial, em qualquer outra parte ou meio de divulgação impressa ou virtual sem que a previa e necessária autorização seja solicitada por escrito e obtida junto à AUPPF. 31/08/