IMAGINANDO O RURAL: AS REPRESENTAÇÕES DE CAMPO DE MAURICIO DE SOUZA EM CHICO BENTO

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1 IMAGINANDO O RURAL: AS REPRESENTAÇÕES DE CAMPO DE MAURICIO DE SOUZA EM CHICO BENTO 27 Introdução CONEGLIAN, Flavio Marcelo MONASTIRSKY, Leonel Brizolla Considerando que os modos de vida do rural e do urbano são distintos, as imagens que se formam sobre os habitantes de espaços urbanos e rurais ganham aspectos positivos e negativos, para compreendermos a reprodução dos ideários de campo e cidade, devemos nos ater ao conceito de representação social onde, segundo Jodelet (2001) é um conhecimento socialmente construído, é ideológico e se reproduz e circula através dos discursos. As representações segundo Chartier (1990) são classificações e divisões que servem para organizar as apreensões como categorias para perceber o mundo real. Essas representações têm uma visão de universalidade, porém, são determinadas pelos interesses dos grupos que constroem essas representações. As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses do grupo que as forjam. Daí para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de que os utiliza (CHARTIER, 1990, p. 17). De acordo com Chartier (1990) o objetivo das representações é dado pelo sentido de substituir um objeto ausente (ou com pouco contato) por uma imagem que é capaz de reconstruí-lo na memória, ou seja, as representações sociais criam um imaginário sobre um determinado elemento que serve de referência, dentro de um sistema simbólico, para a produção de objetos. As representações sociais variam em diferentes tempos e espaços, ou seja, cada coletividade, de cada período histórico e de cada localidade, possui formas específicas de "imaginar, reagrupar e renovar suas representações socioculturais. (MOLAR, 2009, p. 590). Jodelet (2001) atenta para a importante intervenção das mídias na elaboração e difusão de representações, onde muitas vezes a forma como são passadas mensagens e imagens é manipuladora, isso converge à ideia já apresentada de Chartier (1990) sobre a determinação dos interesses de grupos específicos. Sendo assim, abre-se caminho para pensarmos as representações que se formam e são difundidas acerca do que se refere às diferenças entre o campo e a cidade, o rural e o urbano e seus habitantes. Objetivos O objetivo deste trabalho é compreender como o autor Maurício de Souza cria representações, através de seus personagens, acerca da vida rural brasileira e, sendo assim, ajuda a criar imaginários em torno do campo. Metodologia Os modos de representação acerca do homem e da vida rural variam fortemente no que se refere à qualificação positiva ou negativa. A construção de representações com valores

2 opostos é claramente visível nas obras de Maurício de Souza, principalmente nas histórias que envolvem o personagem Chico Bento. Tomamos como análise, portanto, as representações sociais e o ideário de campo e cidade na literatura brasileira. Para isso abordamos os retratos feitos por Maurício de Souza (2011) sobre a dualidade explícita entre a imagem de rural e urbano nas histórias do personagem Chico Bento. Esse personagem foi criado em 1963 a partir da observação de Maurício de Souza sobre camponeses no interior de São Paulo associado à imagem que tinha de seu tio-avô, morador rural. Podemos considerar que o discurso construído de Maurício de Souza é uma reprodução das representações sociais já existentes no Brasil, isso fica evidente na citação de que Chico Bento era uma versão mirim do Jeca Tatu, personagem clássico das histórias de Monteiro Lobato presente no site oficial das obras do autor 1. Para compreendermos a construção desses imaginários, analisamos, portanto, o Almanaque Temático Chico Bento Nº 19 A Roça e a Cidade publicado em 2011, que traz uma coletânea de republicações com 22 histórias. O enredo do almanaque, como sugere o título A Roça e a Cidade gira em torno de comparações dos modos de vida da área rural e urbana, tendo os personagens Chico Bento e Zeca respectivamente como representantes do campo e da cidade. O que nos permite fazer a análise sobre essa fonte é a noção de semiótica, que consiste em preocupar-se com várias modalidades de representação, tanto representações verbais, sonoras ou visuais. O uso da análise semiótica nos permite extrapolar as matrizes linguísticas, permitindo focar em elementos que não se limitam no domínio oral, mas que a transcende (BORTOLOTTI, 2011), ou seja, analisaremos o conteúdo exposto nesta obra em busca das representações que o autor constrói através de seu discurso escrito e imagético. 28 Resultados e Discussões A capa desta edição (Figura 1) já nos contempla com muitos ideários e imagens que o autor possui acerca do rural e do urbano. Nela percebemos a representação da vida em contato com a natureza, com a alimentação natural, com o ar e água puros imaginados por Chico Bento e, representando a virtualidade, a vida enclausurada, a alimentação rápida e o contato com a tecnologia que temos no imaginário do Zeca. Dessa forma fica nítido o discurso dos extremos, onde cada um dos personagens vive em um mundo totalmente diferente do outro. 1 Disponível em acessado em 10 de julho de 2014.

3 . 29 Figura 1. Capa do Almanaque Temático Chico Bento Nº19 A roça e a cidade O conteúdo do Almanaque segue uma lógica com dois tipos de enredo que são: o personagem urbano passa férias no campo ou o personagem rural faz uma visita à cidade, portanto todas as histórias contidas no almanaque seguem essas características. As características que Mauricio de Souza dá a Chico Bento podem ser consideras ambíguas, pois ao mesmo tempo em que os atributos são positivos, logo as negatividades do individuo rural também são explicitadas. As principais características do personagem que observamos nas histórias são a sua ignorância, falta de escolaridade, dificuldade de compreensão (ao levar tudo ao pé da letra) e de se relacionar na cidade. Porém, também são ressaltadas outras características como a sua consciência ecológica, seu carinho com animais e a atenção com as outras pessoas, além do personagem representar a pureza, a simplicidade e a ingenuidade. Uma imagem emblemática pode ser analisada na história Eu amo os animais (Figura 2), onde o personagem urbano Zeca imagina a convivência do seu primo Chico Bento com os animais, dessa forma, a representação que o primo tem do indivíduo rural é de ternura e aproximação entre esses seres que fica evidente no balão de seu pensamento:

4 30 Figura 2. Quadrinho da história Eu amo os animais. Dessa forma, podemos observar as representações que Mauricio de Souza emprega para descrever as características do homem rural brasileiro, onde estão juntas qualidades tanto positivas quanto negativas. Além de caracterizar os personagens, o autor também dá visões bastante diferentes para os espaços rural e urbano, porém desta vez o campo possui em sua grande maioria as características agradáveis, da boa vida, já a cidade possui atributos desagradáveis para se viver. A pressa é constantemente abordada como imaginário para o espaço urbano, porém ao lado dessa característica encontra-se em várias histórias o personagem rural se incomodando com os intensos e incessantes barulhos da cidade. Além da dificuldade de locomoção entre pontos dentro da cidade, onde comumente aparecem dificuldades em metrôs, ônibus, carros e no deslocamento a pé, como distância, quantidade de pessoas, caos no transito, dentre outras. Como extremo da imagem do campo, podemos encontrar a associação do espaço urbano com a poluição, onde fica bastante claro na história Tome cuidado com você que possui como objetivo exclusivo do enredo enfatizar o imaginário de poluição da cidade. Figura 3. Quadrinho da história tome cuidado com você. Considerações Finais O espaço rural aparece, no Almanaque, representando qualidades sempre positivas. As imagens relacionadas ao campo são o contato com a natureza pura, a água e o ar sem

5 poluição; a alimentação saldável e sempre fresca; a vida tranquila, lenta, sem pressa, sem barulhos e tumultuo; o lugar da sabedoria popular e; o contato fraterno entre homens e animais. As representações de campo, cidade, rural e urbano estão comumente presentes na literatura brasileira, tendo como foco a diferença entre os modos de vida e as diferentes características dos espaços. Sendo assim, são fortes as oposições extremas das características relacionadas à representação dos personagens analisados, o urbano e o rural são expostos como antônimos. Portanto podemos afirmar que Mauricio de Souza, com suas representações solidificadas em seus personagens, contribuiu para formar o imaginário brasileiro e as representações sociais do modo de vida rural. Convergindo com o pensamento de Williams (1989) acredita-se que a reprodução do imaginário estereotipado contribui para a negação de continuidade e sobreposição entre campo e cidade, e também auxilia na criação de imagens que consideram os modos de vida enquanto oposição, sem associação entre eles. Concluímos, também, que atualmente as representações criadas e reproduzidas dos moradores rurais mantêm-se cheias de estereótipos, pois suas representações partem de uma perspectiva verticalizada (de cima para baixo), com isso humoristas, escritores e atores sustentam essa visão e ajudam na sua perpetuação. Dessa forma a construção de imaginários acerca do rural brasileiro é comumente caricaturalizado. 31 Referências Bibliograficas CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Ed. 2. Lisboa: Difel, JODELET, Denise. Representações Sociais: Um domínio em expansão. In: (Org). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, MOLAR, Jonathan de Oliveira. Sou caipira pira porá... : representações sobre o caboclo, do parasita da terra a paradigma da realidade nacional ( ). In: Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem, Londrina SOUZA, Maurício de. Almanaque Temático Chico Bento: A Roça e a Cidade. São Paulo: Panini Comics, n WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.