IRMÃ CELESTE: UM ESTUDO DA HAGIOGRAFIA ULTRAMONTANA

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1 IRMÃ CELESTE: UM ESTUDO DA HAGIOGRAFIA ULTRAMONTANA Nadia Maria Guariza Unicentro-Irati Resumo: a presente comunicação trata da história de uma religiosa brasileira chamada Irmã Celeste que morreu muito jovem com 17 anos em Ela faleceu logo após ter feito os seus votos de freira na Congregação das Irmãs do Coração Imaculado de Maria (Belém/Pará), acometida por uma febre muito forte. A sua história foi contada por pe. Júlio Maria De Lombaerde ( ) fundador da Congregação das Irmãs do Coração Imaculado de Maria, porém foi publicado apenas no ano de 1948 após a morte dele no livro Um anjo da Eucaristia. Comparando esta obra com outra do mesmo gênero publicada pelo pe. Júlio Maria Almas sacramentinas (1943) e com outras ações do padre no período é perceptível a importância das religiosas para os planos da igreja ultramontana. Analisando o livro Um anjo da Eucaristia como um estilo literário em particular, a hagiografia, ou seja, como Certeau (2006) ressalta o discurso das virtudes, sendo assim, a história de Irmã Celeste pode fornecer indícios de que comportamento era esperado das religiosas brasileiras dentro dos quadros do ultramontanismo. Muitos estudos já demonstraram a feminização da Igreja Católica em meados do século XIX e início do XX à medida que os homens se afastaram da instituição. A hagiografia de religiosas atendia a necessidade crescente de estimulo à vida religiosa, porque as freiras passaram a serem responsáveis por várias atividades da instituição como colégios femininos e hospitais. Palavras-chave: Ultramontanismo hagiografia- Gênero 88

2 Introdução Veja, dizia ela [Dica], às vezes, como a santidade é cousa fácil; nossa Teresinha quase nada fez para o bom Deus; ela desejava fazer muito. Ela ficou para Nosso Senhor a filhinha amante e dedicada. Oh! Como é suave, ser a filhinha preferida do bom Deus, deixar-se guiar por Ele, beijar-lhe a mão, quando castiga como quando acaricia. Tenho quase inveja quando penso nessa santinha, e me parece que tal é o caminho que nós, religiosas, devemos seguir, para agradar a Deus (LOMBAERDE, 1948, p ). A citação acima foi extraída da obra Um anjo da Eucaristia (1948) escrita pelo pe. Júlio Maria De Lombaerde ( ) que narra a vida e a morte de Raimunda Siqueira Coutinho ( ) que tornara-se Irmã Celeste após realizar os votos religiosos. Órfã de mãe aos onze anos, o pai ao constatar o temperamento indócil de sua filha, resolveu interná-la no Colégio das Irmãs do Coração Imaculado de Maria (Belém/Pará). A citação demonstra o papel desempenhado pela produção hagiografia na formação da vida religiosa católica, Dica comenta sobre a história de vida de Santa Teresinha de Lisieux. Santa Teresinha de Liseux teve a sua história de vida escrita por sua irmã, esta santa canonizada no século XIX se destaca por sua vocação religiosa precoce, bem como por falecer ainda muito jovem, com 26 anos de idade. Órfã de mãe, Teresinha se inspira em uma tia religiosa. Santa Teresinha também é conhecida como a santa que ensinou ao mundo a pequena estrada da infância espiritual. De acordo com Certeau (2006), o texto hagiográfico é permeado de intertextualidade, porque as trajetórias e as virtudes de outros santos são compartilhadas. Em muitas hagiografias podemos observar o fato do santo ou da santa lerem a história de outros santos e se inspirarem nelas para viver a sua própria história de santidade. O caminho para a santidade seria uma luta constante contra o demônio e as tentações, uma tentativa de dominar a sua própria propensão ao pecado. A biografia de Santa Teresinha foi escrita por sua irmã após a sua morte, Dosse (2009) comenta que o santo não poderia escrever a sua própria biografia, porque isso não seria condizente com a modéstia esperada dele. Lembrando 89

3 também que a canonização ocorre postumamente e as biografias contribuem para o processo de canonização. Neste sentido, as biografias de santos e de santas teriam mais de uma função pedagógica, elas serviriam no processo de canonização e no reconhecimento da importância daquela pessoa para o catolicismo. No caso da Irmã Celeste, a sua história mostraria a importância do próprio trabalho do pe. Júlio Maria De Lombaerde para a formação da vida religiosa no Brasil do início do século XX. O objetivo deste texto é discutir alguns aspectos da hagiografia, focando no papel esperado das religiosas católicas no início do século XX no Brasil. Para tanto, é analisado a biografia de Irmã Celeste compreendendo que ela expressa a multiplicidade de funções e de sentidos que as hagiografias portam em sua narrativa. A partir da década de 1990 com os conceitos da Nova História Cultural as análises sobre a hagiografia do ponto de vista histórico receberam um novo fôlego, que passaram a estudar mais a cultura popular, rompendo com a dicotomia entre a cultura popular e a erudita. A Nova História Cultural fornece uma série de conceitos que gera o questionamento da compreensão da hagiografia apenas em sua forma normativa, porque os modelos para serem aceitos devem ser condizente com à devoção católica. Atualmente, os estudos sobre a hagiografia se preocupam com esses escritos como uma forma narrativa, desenvolvendo um intenso debate que norteia a questão da biografia, autobiografia e hagiografia. Dialogando com autores como Mikhail Bakhtin (1999) e François Dosse (2009), percebemos que estes estudos pretendem compreender a hagiografia como um estilo literário que se aproxima de outras formas como a biografia, por seu caráter religioso expressar alguns elementos específicos deste gênero literário. De acordo com Thiago Pires (2013) o autor, as hagiografias transitam entre a hagiografia e a biografia histórica, formando um estilo híbrido de história e ficção. Para François Dosse (2009), a biografia, apesar de tratar de uma singularidade, a vida de uma pessoa, pretende colocá-la nos quadros de um romance verdadeiro. Thiago Pires (2013) afirma que as hagiografias possuem uma escrita edificante, a serviço do exemplar e de um perfil específico de santidade. No entanto, 90

4 ao analisar as hagiografias do cura d Ars observa que elas não se limitam ao exemplar, projetando as virtudes morais e psicológicas do cura, narrando também a sua dimensão humana no atendimento às necessidades pessoais e sociais. As hagiografias do cura d Ars analisadas pretendiam dar um efeito de veracidade à vida do santo, por isso empregam um estilo de biografia histórica, procurando se afastar de um estilo literário fictício. O efeito de real foi construído a partir da necessidade de comprovação documental, do uso abundante de fontes, de testemunhos e notas de rodapé. Segundo Dosse (2009) a epifania progressiva é que comportaria um sentido à hagiografia, que daria um sentido à trajetória de vida do santo, demonstrando os sinais de santidade que se manifestariam mais adiante. As hagiografias no século XIX e XX, para Thiago Pires (2013), se apropriaram das estratégias narrativas do romance moderno, preocupando-se com a comprovação histórica do santo protagonista. Portanto, esta epifania progressiva seria abandonada ou ao menos minimizada nas hagiografias analisadas por ele. Pe. Júlio Maria ao narrar a infância e as inclinações de Dica comenta no subtítulo que ela não nascera santa. O autor afirma que Como já disse e como o provará cada página desta biografia, Dica apesar de dotada de grandes qualidades, não nasceu santa; bem ao contrário ela viciou-se e adquiriu um gênio colérico, caprichoso, indômito, rancoroso e levado a todos os excessos. (1948, p. 33) É interessante observar a preocupação do autor em comprovar a sua narrativa com testemunhos e cadernos escritos pela própria Dica, conferindo a sua narrativa um efeito de realidade. Contudo, a biografia de Irmã Celeste transita entre a biografia histórica e a hagiografia, porque o autor se preocupa em mostrar que ela estava destinada a brilhar um dia no firmamento da vida religiosa e a servir de modelo às almas generosas (1948, p ). De acordo com Michel De Certeau (2006), as hagiografias seriam narrativas exemplares que serviriam para inspirar e doutrinar. Isso não significa que as hagiografias se constituem como a-históricas e universais, elas apresentam variações em suas histórias, em determinadas épocas algumas virtudes são destacadas ou minimizadas, dependendo dos interesses do emissor da história. Neste sentido, as hagiografias nos séculos XIX e início do século XX se 91

5 configuraram como mais uma estratégia da Igreja Católica na política mais ampla no ultramontanismo. Neste período, então, a hagiografia tornou-se mais uma estratégia da Igreja para a reconquista da sociedade, porque na visão da igreja ultramontana era preciso formar novos quadros para lutar contra seus inimigos. Os padres e as freiras possuíam o papel fundamental para a disseminação do poder da instituição, organizando novas paróquias, colégios e hospitais. É nesta preocupação mais ampla da Igreja que deve-se compreender as ações do pe. Júlio Maria que ao chegar em Manhumirim (MG) em 1928 que além de combater aqueles que eram considerados os inimigos da instituição, procurou estimular a participação leiga e o recrutamento de jovens para a vida religiosa (GUARIZA, 2003). De 1913 a 1928, o pe. Júlio Maria trabalhou como missionário em Macapá (AP), fundando aí uma congregação religiosa feminina, as Filhas do Imaculado Coração de Maria, que recebia as meninas e as moças pobres da região. Pela trajetória posterior do padre em Manhumirim pode-se aferir que ele desejava formar uma vida religiosa para atender às crescentes demandas da Igreja no Brasil. Em Minas Gerais, o padre fundou um colégio internato para meninas, um hospital, a congregação das Irmãs Sacramentinas e o seminário dos Irmãos sacramentinos. Considerando o quadro mais amplo do ultramontanismo e das ações do padre, compreende-se que as obras escritas por ele nas décadas de 1930 e 1940 que tratam da vida de religiosas brasileiras possuía o objetivo de estimular o ingresso de jovens à vida religiosa. Quais virtudes eram destacadas pelo padre? Nestes livros ele procurou demonstrar que o Brasil precisava de religiosas e que, apesar dos sacrifícios, até temperamentos mais instáveis e indomáveis poderiam ser transformados. Ao narrar a vida de Irmã Celeste, desejava torná-la modelo para as moças e moços, no sentido de ingressarem na vida conventual, e quem sabe em breve contar com um rebanho de santos no país. No caso das freiras o trabalho delas era necessário no hospital e na escola internato para moças, atividades condizentes com as aptidões consideradas femininas, do cuidado aos outros e da educação das crianças. Neste sentido, a 92

6 biografia de Irmã Celeste procurava demonstrar que era possível até para aquelas que não tinham nascido com graça, consegui-la, por meio do sacrifício. Michel De Certeau (2006), ao analisar a hagiografia, observa que esta narrativa se constituía como uma organização textual que respeita determinados atos, lugares e temas. Tal organização indica uma estrutura própria da hagiografia que não se refere ao que passou, mas procura o que é exemplar. Neste sentido, a história de Celeste ressalta o martírio, o sacrifício e a devoção a Nossa Senhora, como uma forma de santificação dos indivíduos, tendo um caráter exemplar para a juventude brasileira. Segundo Bakthin (1992) a hagiografia permite pouca inovação do autor, considerando que o padre Júlio Maria era um religioso e que suas obras deveriam receber a aprovação de seus superiores, poderíamos pensar os seus livros como uma leitura autorizada, que de acordo com Chartier (1988) passa por censuras. O que percebemos é que as personagens escolhidas pelos hagiógrafos obedecem tanto a princípios de ordem institucional ou seja, o que a igreja espera dos fiéis quanto mobilizam elementos de identificação e de cunho emocional para promover a identificação dos fiéis. Neste sentido, a hagiografia não é apenas imposição, é um território de negociação da norma e da prática cultural dos fiéis. A vida ceifada tão precocemente comove os leitores, ainda mais diante de uma doença impiedosa, como no caso da Irmã Celeste. Além disso, temos a questão da doença como mortificação da carne propensa ao pecado, para a santidade enfim ser alcançada, um tema recorrente na tradição hagiográfica. Portanto, a hagiografia para provocar a identificação do leitor deve observar os seus gostos e seus anseios. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, CERTEAU, M. De. Hagiografia. In:. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, p ,

7 . Textos, impressos, leituras. In:. A História Cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, p DOSSE, F. A Idade heroica. In:. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: EDUSP, p GUARIZA, N. M. As Guardiãs do lar: a valorização materna no discurso ultramontano. 148 p. Dissertação (Mestrado em História) Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, UFPR, Curitiba, LOMBAERDE, J. M. De. Um anjo da Eucaristia ou vida de uma religiosa brasileira Irmã Maria Celeste ( ). Manhumirim: O Lutador, PIRES, T. As hagio-biografias do cura d Ars ( ): um estudo a partir das obras de Trochu e Ghéon. In: SNHH, VII., Anais