O INÍCIO DE UMA INSTITUIÇÃO POLÍTICA ISLÂMICA. Rafael Silva Graduando em História pela UFOP

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1 Comunicacoes ~ Modernidade, Instituicoes e Historiografia Religiosa no Brasil ~ O INÍCIO DE UMA INSTITUIÇÃO POLÍTICA ISLÂMICA Rafael Silva Graduando em História pela UFOP locknail@yahoo.com.br No tratamento dado para a instituição política nas regiões islâmicas hoje em dia, e principalmente depois do marco de 11 de setembro, tem-se visto que todo o projeto de formulação administrativa remete-se a época em que o próprio Islã surgira e como se deu a consolidação desse mesmo Estado. Ao remeter ao início dessa religião, e que desde seu início, não se dissociava da esfera política. Isso é claramente notório na medida em que se analisa o papel de Maomé como o magistrado supremo de Medina. Não que ele teria essa função firmada em sua atuação profética, mas acabou-se tornando um grande juiz de primeira e segunda instância, resolvendo todos os assuntos da grande ummah que se formara. Outro dado importante é o fato de que o Corão não fora revelado a Maomé por completo, ao decorrer dos anos o livro sagrado muçulmano aumentava o número de suas suras com a resolução de problemas constantes em que a comunidade começava cada vez mais a se deparar. Em um sentido mais amplo o Islã surge na península Arábica no momento em que a sua população vivia uma necessidade, cercada já pelos monoteísmos judaicos e cristãos, de algo que suplantasse o politeísmo vigente e acrescentasse algo de novo e, principalmente, algo de árabe para uma unicidade religiosa. Mas o ponto alto, que se mostrou um ponto favorável para o início e a aceitação do novo credo, foi que Maomé utilizou-se de uma tradição presente na península para assim enraizar as idéias do Corão por toda a Arábia. (ARMSTRONG, 2001). Isso se reflete nas prostrações no período inicial em direção ao grande santuário de Meca, que abrigava a Caaba, que servira de santuário para os pagãos da Arábia da mesma forma que serviria para os muçulmanos. Essa manutenção da tradição fez com que muitos adeptos do paganismo e ávidos por uma transcendência espiritual mais universal e com apenas uma divindade, olhasse para essa nova religião de uma forma mais próxima do que o juda-

2 ísmo ou o cristianismo, mesmo porque os livros sagrados desses povos não surgira em uma língua na qual os árabes não estavam habituados, por isso mesmo a facilidade da incorporação do islamismo, com toda uma teia dogmática e teologia professada em sua língua nativa e com o próprio profeta sendo um dos seus. Além dessa toda proximidade étnica que o Islã possuía, havia também, no aspecto dogmático, uma relação com uma igualdade entre todos que faziam parte da ummah e da vontade corânica de uma repartição maior de riquezas para diminuir o nível de pobreza e desigualdade. A zakat, que era essa esmola contida na elaboração dogmática dos pilares da fé islâmica, fazia com que se criasse um universo teoricamente preso a uma igualdade ou, pelo menos, uma aproximação entre todos que faziam parte da própria comunidade, sendo eles ricos comerciantes, ou simples mendigos. A relação próxima que se cria entre religião e política torna-se cada vez mais imbricada ao passo que todos o muçulmanos vêem o Profeta como o seu líder e o grande chefe da comunidade, ao mesmo tempo as atitudes dele o fazem ser visto como o criador de um novo Estado em que a religião se universaliza. (SCHUON, 1991) Nesse terreno político o grande problema que se forma é de como transformar esse Estado em algo não despótico e muito menos agregador de poderes. E o que se viu foi que Maomé transformou-se em um grande líder militar, político e religioso, mas aceito como tal, pois era o Profeta árabe e um instrumento da mensagem corânica. O problema toma corpo quando Maomé morre e não deixa a indicação de quem seria o seu sucessor. Para dar um incremento maior a isso, todos os Rashidun, ou corretamente orientados, que seguiram após a morte do Profeta, nenhum tinha a capacidade de transmitir novas revelações corânicas, ficando com o cargo de continuar a reger a ummah de acordo com o livro sagrado e praticando os atos que Maomé praticou. E o que se viu, politicamente falando, foi uma solidificação cada vez maior do poder nas mãos de um único governante em que muitos admitem, já nos primeiros anos de existência, a formação do Império Árabe, em um território que já tomava a Pérsia, alguns territórios de Bizâncio e se projetava em todo o resto do mundo com as idéias corânicas. (LEWIS, 1996) E a tradição que existia na região e que o próprio Maomé utilizou-se para melhor fixar sua mensagem para os povos da Arábia? Ela foi suplantada por um novo aparato teológico e político? Ou foi apenas remodelada para encaixar nos grandes alicerces em que se fixou o próprio Islã? O que fica bem claro é adaptação da população ao islamismo, de uma forma completa na medida em que a submissão a Deus que esse credo pregava fazia que a população deixasse de lado um individualismo constante e começasse a trabalhar em prol da comunidade. A tradição que existia permanece na forma de base social estruturante em que a sociedade continuava a se reger por princípios que já haviam na península. A unidade religiosa trouxe a esse povo uma coesão política que antes não era possível pelo simples fato de cada clã, cada tribo, ter um regimento de acordo com o que concluíam como sua entidade de culto. 2

3 As atitudes dos governantes na sociedade pré-islâmica estavam baseadas no direito costumeiro e na coesão dos membros diante de algum fator que relevasse alguma importância para toda a comunidade. Quando essa sociedade se islamiza, a coesão é obtida a partir do que o próprio Corão revela ou era utilizado o que Maomé fez com o Haddith, ou o livro das Tradições, que se baseia na vida do Profeta. A ruptura que ocasiona é exatamente no que tange em ter um códice de leis para reger a comunidade. Mas quando havia alguma questão onde a resposta proposta pelo livro sagrado era vista de forma nebulosa, ou quando apareciam questões em que o livro não conseguia abranger, seja pelo espaço temporal ou por diferenças regionais, a utilização de conselhos teve sempre a sua valia na medida em que os conhecedores da religião e também os próprios homens que estavam na órbita do poder participavam da mesma. Esse modo de governo, que de certa forma fazia parte de toda a Arábia, quando se vira diretamente para o deserto, encontramos lá os nômades do deserto ou os beduínos. Com uma vida nômade e ligados por laços de sangue e por relações de troca, em que valorizavam muito mais a sua liberdade como espíritos livres do que se estabelecer em cidades ficando a mercê da autoridade local. Esse povo só percebe o Islã como algo em que poderia adotá-lo a partir do momento em que viram uma ligação com a sua liberdade da forma que não precisavam ser submissos a um governante, mas ao ser superior a todos eles, Deus. A conciliação entre a tradição e a pungência dogmática que havia no Islã, fizera com que toda a Arábia se unificasse em prol de uma única bandeira, e essa bandeira quando fora portada pelo iniciador de tudo, ou seja, Maomé fez com que todo o território que vivia em conflitos constantes, pelas suas guerras de vendeta sem fim, e com um curto período de tempo, obtivesse uma região sob a imagem de Alá e de certa forma, um corpo pacificado. (ARMSTRONG, 2001). Mas mesmo assim como suplantar um aparato político-religioso por outro que afetava diretamente os interesses das grandes famílias dominantes? Maomé fora buscar essa resposta onde os anseios da população ecoavam pelos becos da grande Meca. Alguns autores dizem que imperava no começo da pregação de Maomé um aspecto de justiça social. (JOMIER, 2001). Se essa fora a idéia original do começo de sua pregação ou foi apenas uma estratégia para conseguir fieis para a sua crença, são algumas especulações que podem ou não serem levadas em consideração. Mas o fato é que ao afetar a base da sociedade árabe e fornecer uma religião na qual encaixava no caráter regional, Maomé consegue numerosos seguidores até atingir o grande epicentro do poder, que era a própria Meca, que fora tornada sagrada para os muçulmanos e toda a sua tradição espiritual e ritual adaptada para somente um Deus único O maior enraizamento do islamismo no corpo árabe se deu pelo simples fato do seu livro sagrado ser em sua própria língua e ser composto por uma rica e trabalhada poesia, que até hoje é visto como uma das obras primas da literatura árabe, pela sua composição e beleza, e que isso atraiu grande parte dos primeiros seguidores para a nova fé, e por atender a necessidade espiritual que havia. E não se pode esquecer o fator da fronteira que exercia sobre os povos da península. Vindos tanto de Bizâncio como da Pérsia, as influências religiosas desses povos faziam 3

4 com que a Arábia se tornasse uma área de confluências culturais, tornando-a um centro transregional. Além da grande influência que começa a exercer Meca pelo fator cultural, há também o fator econômico que era integrado pelas grandes caravanas comerciais que aportavam em Meca nas grandes feiras comerciais, ou na época das peregrinações a Caaba. (ARMSTRONG, 2001). Quando se consolida o islamismo como aspecto integrante do Estado, temos duas grandes cidades que seriam os carros-chefes desse início. Medina, como o grande centro religioso fortificado pela presença do profeta e posteriormente pelos quatro primeiros Califas, e Meca, como um centro de peregrinações e com um crescente poderio comercial. E foi nessas duas cidades em que a política islâmica se constituiu em modelos que podemos observar, com alterações, nos dias de hoje, um molde islâmico com raízes tradicionais. A grande comunidade islâmica que se formara e que abrangera não só os muçulmanos como também os povos do livro, ou seja, judaísmos e cristianismo tinham como unidade um aspecto relacionado à não agressão mutua e a proteção garantida dos muçulmanos descrita no próprio livro sagrado. A função não era uma conversão forçada, e esse não era o objetivo de Alá, mas uma aceitação do Islã, ou, uma submissão a tal. Se os povos não se convertiam a esse crença, eram obrigados ao pagamento de impostos aos não-muçulmanos, e que se tornava cada vez mais oneroso. Mas aos povos conquistados não importava realmente quem dominava, independente disso, os impostos islâmicos eram menos onerosos que os Sassânidas e os Bizantinos, e ainda tinha a liberdade de culto e em muitos casos, participavam do aparelho administrativo do local dominado, (HOURANI, 1994) Vemos então que além de uma política interna que unificava as suas tribos pela constituição da ummah, e uma atuação religiosa que tornava os povos como uma comunidade regida por um conjunto de leis vindas diretamente de Deus, a sua política externa para com os dominados fora de total tolerância sem a perseguição aos infiéis e sem a necessidade da submissão total a religião dominante. O que liga diretamente o fato de uma região em que era praticamente uma área de influências de dois grandes impérios e em cerca de uma geração já apontar como um grande Império, não seria exatamente o ímpeto imperial, se é que possuía tal, mas em todo caso, foi um êxito árabe sob uma região desgastada por conflitos e desgastada também por idéias sem um berço árabe. A política islâmica precisava de todo um aparato jurídico que a pudesse lhe sustentar, e o que se viu foi os teólogos usando o Corão como a base fundamental para a criação de bases para o Estado, para a economia e para a vida social, fazendo uma exigência de direitos iguais para todos dentro da comunidade, sendo assim, um principio sem possibilidade de arbitrariedades. (ANTES, 2003) Esse foco da política islâmica em sempre tratar com uma certa igualdade os povos em que nela são submetidos, nos remete sempre ao fato de justiça social que o Profeta planejava para a comunidade, e isso é levado para a relação entre os sexos, não fazendo um ser superior, e como no Corão equilibra essa relação, ao outro. Tinha-se que haver sempre uma igualdade nessas relações humanas, o principio de justiça é levado a cabo pela tradição das vendetas e contra-vendetas, mas 4

5 agora, não mais viabilizada por algum particular, mas por um corpo jurídico constituído e sem a necessidade da utilização das leis de Talião para o veredicto. Esse aparato jurídico que agora poderia apoiar o Estado foi algo em que a tradição foi suplantada pela necessidade e o bem estar da própria comunidade. Voltando para o campo político, apesar dessa relação de equiparidade entre os sexos, e continuando com a tradição sobre a liderança política, apenas homens assumiam o cargo de liderança na política islâmica, não que não houvesse mulheres participando, em um espaço privado, de decisões importantes, mas na órbita dos poderes, a supremacia masculina continuava a ser destacada. Não que isso tornasse alguém incapaz ou menos apto serem os lideres da comunidade, mas continua com a tradição masculina no poder. O início dessa instituição política se volta novamente para a ummah, a comunidade muçulmana, que desde a sua origem sempre manteve a sua mesma base estrutural quando fora criada. E a constante manutenção da comunidade sempre foi o primeiro conjunto especulativo que surgia quando tomava posse outro Califa, ou seja, a constante preocupação da manutenção de uma estrutura que fora a base para a solidificação dessa instituição política, calcada na religião. Essa estrutura era fixada nos pontos de um bem estar geral e dada para as mãos do governante a obrigação de manter-la unida, da mesma forma quando nas tribos pré-islâmicas o chefe tinha a função organizacional. A origem da ummah veio para complementar os costumes dessa península, muito mais do apenas para suplantar, surge com a intenção de conservar muitos desses costumes, como o casamento e as inter-relações existentes. (LEWIS, 1996) Temos então em um período de pouco mais de uma geração, a formação de uma nova religião, com todos os termos doutrinários próprios, uma língua própria, um livro próprio e um Profeta próprio, e que se estabeleceu em um centro de confluências de impérios e com isso pode absorver aspectos culturais e adaptá-los ao seu formato, como também essa religião se entrelaçou com a política em todos os terrenos quem que se envolve o Estado. Uma formulação nova e que não se dissociava entre si, e também da antiga tradição pré-islâmica. A funcionalidade da ummah como um aspecto de coesão da comunidade que os muçulmanos abrangiam, fez com que toda essa estrutura política tomasse um formato único, em que obtinham toda uma formatação no aspecto religioso que essa nova unidade política passara a ter. Num formato novo e que deu bases para uma expansão tão rápida e avassaladora que é um grande marco para a historia do Islã, e bases para a instituição do grande império que ser formou. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade para o Feudalismo. São Paulo: Brasiliense, ANTES, Peter. O Islã e a Política. São Paulo: Paulinas,

6 ARMSTRONG, Karen. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, CAHEN, Claude. El Islam: Desde los orígenes hasta el comienzo del Imperio otomano. 9 ed. Madrid: Siglo veintiuno, DUCELLIER, Alain, KAPLAN, Michel, MARTIN, Bernadette, MICHEAU, Françoise. A Idade Média no Oriente: Bizâncio e o Islão, dos bárbaros aos otomanos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, ESPINOSA, Fernanda: Antologia de textos históricos medievais. Lisboa: Sá da Costa editora, FLETCHER, Richard. A cruz e o crescente: cristianismo e islã, de Maomé à Reforma. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, HADDAD, Jamil Almansur. O que é islamismo. São Paulo: Editora Brasiliense, HOURANI, Albert: Uma historia dos povos árabes. São Paulo. Companhia das letras JOMIER, Jacques. Islamismo: historia e doutrina. Petrópolis: Editora Vozes, LARI, Sayyid Mujtaba Musavi. Los Fundamentos de la Doctrina Islámica. Libro I; Libro II; Libro III. Fundacion para la difusion de la cultura islamica em el mundo LE BON, Gustavo. La civilizacion de los Árabes. Buenos Aires: Biblioteca Clássica, LEMERLE, Paul: História de Bizâncio. São Paulo, Martins Fontes, LEWIS, Bernard. Os Árabes na Historia. Lisboa: Nova Estampa, MEDDEB, Abdelwahab: A doença do Islã. Belo Horizonte: UFMG, OATES, David. Más Allas de las fronteras de Roma. In: RICE, David Talbot. La alta edad Media. Hacia la formación de Europa. Barcelona: Labor, 1967 PIRENNE, Henri: De Maomé a Carlos Magno. Lisboa: Publicações Dom Quixote, SCHUON, Frithjof. A unidade transcendente das religiões. Lisboa: Publicações Dom Quixote,