A CIDADE REAL: OS ESPAÇOS URBANOS DE SALVADOR E SEUS SIGNIFICADOS



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ANDRADE, Luiz Cristiano Oliveira de - UNESCO A CIDADE REAL: OS ESPAÇOS URBANOS DE SALVADOR E SEUS SIGNIFICADOS Esta comunicação pretente realizar um estudo de caso sobre a história urbana de Salvador entre 1549, ano de sua fundação, até 1649, quando a expulsão final dos holandeses do Recôncavo encerra o período inicial da cidade, no qual foram executados os seus pontos de referência, como fortes e igrejas, e pontos estruturantes, como largos e praças. Nesse sentido, discutiremos algumas questões fundamentais para o entendimento da formação urbana brasileira, tais como as idéias de traçado medieval e de planejamento barroco. No caso da primeira sede da América Portuguesa é fundamental tratar da presença de inúmeras fortalezas, que ainda hoje caracterizam a sua paisagem. O valor histórico-estético atribuído ao centro de Salvador atualmente não mais se restringe aos edifícios do poder metropolitano, às igrejas, às fortalezas, ou seja, respectivamente aos símbolos do poder civil, religioso e militar. Quando se começou a considerar históricos não só os fatos dos grandes, mas também os do povo, ou seja, os fatos da economia, do trabalho, das artes, o valor de historicidade de uma cidade não pôde mais limitar-se aos monumentos, mas estendeu-se a todo tecido urbano. 1 Para analisar o tecido urbano de Salvador, é fundamental ultrapassar a simples rotulação do traçado como regular ou irregular, e interpretar os significados de seus espaços, de seus pontos de estruturação e referência. Para tal, há de se relacionar o núcleo urbano estabelecido ainda nos primeiros anos da cidade com as intenções, necessidades, enfim com a dinâmica sócio-cultural que condicionou a sua forma. A história da fundação da cidade é conhecida. A vinda de Tomé de Souza como Governador Geral do Brasil, em 1549, assinala uma mudança da política portuguesa, operada no reinado de D. João III, em relação às suas possessões americanas. Alguns anos antes, o donatário da capitania da Bahia, Francisco Pereira Coutinho, havia sido devorado pelos Tupinambás de Itaparica, onde naufragou quando retornava ao reino. Tomé de Souza, portanto, chega com a preocupação de se estabelecer num lugar defensável tanto dos corsários como dos indígenas. Para tal tarefa, trouxe consigo instruções régias de como fundar uma cidade e, para executá-las, o mestre Luiz Dias, que ergueu muros de taipa que circundavam a cidadela, pois, o gentio, até o início das investidas holandesas, foi o inimigo mais temido dos portugueses. Em Salvador, pela sua proeminência como porto escoadouro de açúcar e sede da administração colonial, as características defensivas estiveram fortemente presentes pelo menos desde o século XVII. Os dois primeiros baluartes, erguidos ainda à época de Tomé de Souza, situavam-se à beira-mar, junto ao porto de desembarque. Contudo, num primeiro momento, a maior preocupação era com os indígenas, e, portanto, as muralhas da cidade receberam maiores cuidados. As vias de acesso ao núcleo urbano, as Portas do Norte e do Sul, foram guarnecidas. Com a União Ibérica, a defesa do território tornou-se uma questão crucial, posto que a Espanha envolvia-se em diversos conflitos externos na Europa, fator que influenciava diretamente as disputas pelas possessões ultramarinas. O primeiro 1 Argan, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade, p. 260.

governador nomeado pelos espanhóis, Manuel Teles Barreto (1583-87), erigiu os primeiros fortes a fim de proteger a cidade contra ataques marítimos: ao sul, Santo Antônio, e ao norte, São Felipe. O segundo fator a ser considerado é a tese da cidade medieval, defendida, entre outros autores, por Robert Smith, no artigo Arquitetura civil do período colonial, e Waldemar Mattos, em Evolução histórica e cultural do Pelourinho. Ambos têm como evidência as ruas sinuosas e as ladeiras íngremes de Salvador. A presença de muralhas costuma ser outro elemento evocado para reafirmar o caráter medieval de Salvador. Entretanto, mesmo após o Renascimento, muitas cidades européias continuavam circundadas por muros. Mais do que a continuidade de um elemento obsoleto, as muralhas faziam parte do sistema defensivo da época moderna e, na América, devido aos constantes e imprevisíveis ataques indígenas, tornaram-se ainda mais necessárias. Ademais, a maioria das capitais européias modernas reconstruiu ou ampliou os seus muros medievais. Assim ocorreu em Roma, Paris, Viena e nas portuguesas Lisboa e Porto. Apenas Londres, desde o incêndio de 1666 pôde, por sua situação insular, crescer como uma cidade aberta. Ademais, a construção de Salvador de seu traçado e de seus edifícios empregou o método de trabalho moderno, vigente desde Brunelleschi, de elaborar o projeto antes de sua execução. Em meados do século XVI, o planejamento urbano já era uma prática consolidada em Portugal e aplicada em suas possessões do Oriente. Por outro lado, alguns autores defendem a implantação de um urbanismo barroco no Brasil. A abertura de largas avenidas, muitas vezes sobre o traçado tortuoso das cidades medievais, constitui o maior símbolo desta nova concepção de cidade. Em primeiro lugar, é preciso considerar a própria posição da cidade no interior do Império Português. O espaço urbano derivava da importância que o Brasil desfrutava entre os portugueses até meados do Seiscentos e da configuração social, especialmente marcada pela escravidão. Portanto, o cenário que abrigava o Governo Geral diferenciava-se do espaço metropolitano e mesmo dos Vice- Reinados do Oriente. Ao invés das carruagens, predominavam as liteiras, carregadas pelos escravos, que executavam os demais serviços domésticos na sede da América Portuguesa. De todo modo, parece mais interessante aprofundar a interpretação do tipo de cidade que se construiu no Brasil durante os séculos XVI e XVII relacionando essas cidades às formações urbanas coevas do Império Português: na África, Ásia e América. Beatriz Bueno afirma ainda que a posse de territórios portugueses no alémmar foi possível na medida em que a Coroa investiu, entre outros aspectos, na formação de um quadro de técnicos especializados na construção de fortificações e cidades. 2 Os mesmos engenheiros-militares realizaram minuciosos levantamentos geográficos e produziram vasta iconografia a fim de fornecer instrumentos que garantissem o domínio e o controle de suas possessões. Na América, a presença desses técnicos foi intensa. D. João III nomeou Luís Dias Mestre da Fortaleza e Obras de Salvador. No princípio do século XVII, Leonardo Turriano projetou um novo sistema defensivo para a cidade, não completamente concretizado. 2 Bueno, Beatriz Siqueira. A iconografia dos engenheiros militares no século XVIII: instrumento de conhecimento e controlo do território. In: Universo urbanático português, p. 91.

Salvador, a sede da América Portuguesa constitui um dos melhores exemplos da intervenção da Coroa no planejamento de cidades e da utilização dos princípios que nortearam o seu formoseamento, não obstante a preocupação com a defesa, primeiro em relação aos índios e depois aos holandeses, tenha contribuído fundamentalmente para a sua formação inicial. Contudo, o entendimento da questão urbana que predominou no IPHAN até a década de 1980 levaria ao intervalo entre o tombamento dos fortes coloniais, realizado em 1938, imediatamente após a criação da instituição, e o dos conjuntos arquitetônicos e urbanísticos de Salvador, efetivado após sete anos de estudos em 1959. A publicação do estudo de Silva Campos pelo SPHAN em 1940, Fortificações da Baía, é um exemplo do destaque conferido ao aspecto da cidade-fortaleza. Apesar da análise considerar os fortes soteropolitanos como parte de um sistema defensivo construído entre os séculos XVI e XVIII, eles foram tombados isoladamente, assim como as igrejas, os conventos e outras edificações da cidade. A separação de duas décadas entre os tombamentos dos bens isolados e do conjunto evidencia uma visão compartimentada da realidade social. Mesmo hoje, a análise e o tratamento dos bens culturais ainda são dissociados da história urbana, e, de modo geral, as tentativas de explicação esbarram nas três categorias arquitetura civil, militar e religiosa. A utilização destas categorias é fruto não apenas de uma análise formalista, mas da própria separação das esferas de conhecimento, ocorrida a partir do século XVIII. É preciso evitar o anacronismo, presente em diversas análises, de transportar os conceitos construídos a partir do advento do Iluminismo para os séculos precedentes. Acreditamos que a relativização dessas categorias é condição sine qua non para o entendimento do patrimônio cultural brasileiro. A própria atuação de Francisco Frias, engenheiro-mor do Brasil no início do Seiscentos, demonstra como essas esferas estavam imbricadas: além de fortes em Recife, Natal, Cabo Frio e Paraíba, elaborou o traçado de São Luís e planejou o Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro e as Igrejas e Conventos do Carmo no Rio e em Olinda. Francisco Frias da Mesquita foi aluno de Felipe Tércio, mestre italiano de formação renascentista que atuou em Portugal de 1577 a 1597. Em 1603, após concluir as Aulas de Fortificação, Frias foi nomeado Engenheiro Mor do Estado do Brasil, onde permaneceria até 1635. Em Salvador, projetou um novo plano de fortificação para a cidade, assim como o conjunto inicial dos beneditinos e o Seminário. A ordem teológico-política vigente no Império Português deixou as suas marcas impressas nos territórios ultramarinos. Portanto, acreditamos não ser possível compreender o conjunto urbano de Salvador, sem articulá-lo com a dinâmica cultural na qual foi implantado. Nesse sentido, as fortalezas, os conventos, ermidas e igrejas, a Cidade Alta e a Cidade Baixa, a Vila Velha e as condições topográficas formavam um todo coerente hoje em dia compartimentado, tanto pelas reformas modernizantes empreendidas no século passado, como pelo pensamento predominante após o advento do Iluminismo. A coesão desse conjunto pode ser verificada nos relatos dos cronistas dos séculos XVI e XVII, sobretudo Gabriel Soares de Sousa e Frei Vicente do Salvador. Porém, antes de analisar as características formais da cidade da Bahia e seus significados, há de se problematizar também as próprias categorias de urbano e rural até o século XIX. De fato, a distinção rígida não se sustenta, conforme mencionado no primeiro capítulo deste estudo. No caso de Salvador, a tensão entre o que hoje denominamos como urbano e rural manifestava-se nas hortas dos

beneditinos e franciscanos, na Povoação do Pereira, nas freguesias próximas, braços do poder espiritual instituído pela Sé. Gabriel Soares de Sousa descreve as casas existentes entre o Convento dos franciscanos e a Praça do Palácio com seus quintais repletos de palmeiras carregadas de cocos e outras de tâmaras, além de laranjeiras, figueiras, romeiras e parreiras. Mesmo as áreas centrais não eram calçadas e a iluminação, também restrita, era feita com óleo de baleia, cuja pesca era uma importante atividade econômica na Baía de Todos os Santos. As cidades geralmente eram fundadas a partir de ordens régias, e constituíam a sede da administração colonial em algum ponto estratégico do território. Esses núcleos não dependiam de um poder regional e subordinavam-se diretamente à Coroa. Desse modo, Salvador é fundada em 1549 como sede do poder espiritual e centro administrativo subordinado diretamente à Coroa. No Regimento de 1548, escrito por D. João III para Tomé de Sousa, havia a orientação de se construir uma fortaleza e povoação grande e forte em um lugar conveniente e recomendações de como escolher o sítio mais adequado. O local deveria ser sadio, de bons ares e com água abundante. Deveria ainda possibilitar a construção de um porto para o ancoradouro e o abastecimento de navios. O sítio escolhido pelos portugueses seria o topo de uma colina trapezoidal. A partir de então, a implantação da cidade seguiria o plano de Luiz Dias, que permaneceu na Bahia de 1549 a 1551. Neste período, o mestre das obras manteve o Rei informado através de correspondência constante. A cidade de taipa e barro, com apenas algumas edificações de pedra e cal, cobertas de telhas, paulatinamente daria lugar a construções mais duradouras. No início do XVII, além dos prédios públicos, já havia um número razoável de residências construídas em pedra e cal. No interior das muralhas, Luís Dias traçou dois conjuntos de quarteirões: o primeiro de forma retangular alongada, composto por lotes paralelos; o segundo tinha uma forma quadrada, composto por lotes dispostos costas-com-costas. Entretanto, o espaço de maior destaque no interior das muralhas era a praça em que foram erguidos o Palácio dos Governadores, a Casa de Câmara e Cadeia, e, posteriormente, a Relação e a Casa da Moeda. Apesar de não ter sido o elemento gerador da cidade, pois inicialmente situava-se ao lado das Portas de Santa Catarina, consituiu importante ponto de referência em virtude dos prédios que abrigava. O estabelecimento numa colina rodeada de depressões faz com que o acesso ao centro seja sempre precedido por uma ladeira. Além do conteúdo pragmático de facilitar a defesa, há de se assinalar a dimensão simbólica de tal escolha. Para chegar ao centro do poder, o caminhante é obrigado a realizar um movimento ascendente. Dora Alcântara afirma que a mesma analogia entre altura e poder, pode ser observada na arquitetura civil colonial, onde morar no sobrado era sinônimo de riqueza, e de dependência o viver ao rés-do-chão. 3 Contudo, é fundamental não conferir exclusivismo ao caráter administrativo da Cidade Alta. Houve uma ocupação fortemente residencial, assim como havia espaços ocupados predominantemente pelo comércio a Rua Direita dos Mercadores, ou pela assistência médica a Rua Direita da Misericórdia. Da Praça do Palácio em direção à Porta de Santa Luzia, o traçado instituído por Luís Dias não seria modificado. 4 Além de capela dedicada à Santa, havia um 3 Alcântar, Dora. Processo de reratificação, s/p. 4 Os vestígios de ocupação desta área foram em parte perdidos pelas reformas modernizantes e especulação imobiliária. A ambiência do Mosteiro de São Bento é igualmente prejudicada pelos

fortim com artilharia. Entre os muros da cidade e a primitiva Povoação do Pereira, ou Vila Velha, foi construído o Mosteiro de São Bento em 1582, nas terras legadas à ordem por Gabriel Soares de Souza, Catarina Paraguassu e Francisco Condestável. Na quinta dos beneditinos havia um riacho, o rio das Tripas, que delimitava a cidade, seguindo para os lados do Carmo. Na primeira metade do século XVII, segundo Américo Simas Filho, no trecho entre o conjunto dos beneditinos e a Vila Velha, existia já uma rua que era a mais larga da cidade, quase exclusivamente residencial e onde moravam algumas figuras mais representativas da sociedade seiscentista baiana. 5 A utilização desta área entre os muros e a Vila Velha, ocupada sobretudo por granjas e chácaras, seria modificada a partir do século XIX. O Conde dos Arcos, que concebeu um plano de transformação urbana de Salvador, mandou acabar de demolir as Portas de São Bento em 1806, e em seu lugar teve início a construção do Teatro, exemplo que seria seguido nas demais cidades do país. De volta ao século XVI, na parte oposta à Porta de Santa Luzia, o perímetro delineado por Luís Dias seria rapidamente ultrapassado. Inversamente ao Rio de Janeiro onde a cidade começou a crescer ao longo da Rua Direita, no eixo formado pelo estabelecimento dos Jesuítas no Morro do Castelo e dos Beneditinos no Morro de São Bento em Salvador, a ocupação se processou do centro para as direções norte e sul. Logo na década de 1550, os jesuítas começaram a se estabelecer fora dos muros, num local escolhido por Manoel da Nóbrega, onde seria formado o Terreiro de Jesus. Na sede da América Portuguesa, a centralidade da praça, que indicava uma visão antropocêntrica nos projetos das cidades ideais, foi substituída pela dualidade do centro administrativo, voltado para os negócios terrenos, e do centro religioso, voltado para os negócios espirituais. Entre as duas praças, havia o largo da Sé, a indicar a posição da Igreja em Portugal devido ao sistema do Padroado. Entre 1561 e 1572, Mem de Sá estendeu a cidade até a cerca dos jesuítas e mandou construir a terceira igreja dos padres, a primeira inteiramente em pedra e cal em Salvador. Para tal, foi utilizada pedra de lioz trazida de Portugal, assim como vergas ou portadas de cantaria, montadas por pedreiros locais. 6 A partir de 1575, os padres passam a erguer o novo colégio, inaugurado em 1591. Ao longo de todo o século XVII, foram realizadas melhorias nos edifícios da Companhia. A fachada de sua igreja, terminada em 1672, foi o primeiro exemplar no Brasil de frontão central emoldurado por volutas e ladeado pelas torres gêmeas. Este modelo, seguindo o projeto de Felipo Terzi para São Vicente de Lisboa, seria utilizado com freqüência a partir de então. A localização dos jesuítas em Salvador constitui uma amostra da importância que a ordem teria para a colonização do restante do Brasil, e, de fato, a configuração desse espaço seria repetida em inúmeras aldeias e reduções indígenas. Segundo Manuel Teixeira, o Terreiro, elemento dominante e gerador da malha urbana, demonstra uma concepção radicalmente diferente, e moderna, de espaço urbano e de estruturação urbana. 7 As casas reunidas em torno do Terreiro de Jesus seriam substituídas por edificações religiosas erguidas no século XVIII a Igreja de São Pedro dos Clérigos, a partir de 1709, e a de São Domingos, desde 1731. Contudo, já no final do século edifícios altos. A igreja e o mosteiro atuais, projetados pelo Frei Macário de São João, são iniciados ainda no século XVII e sua construção se estende até o século XX. 5 Simas Filho, Américo. Evolução física de Salvador. V.1, p. 106. 6 Smith, Robert. Arquitetura Colonial. In: História das artes na cidade de Salvador. 7 Teixeira, Manuel. O urbanismo português, p. 227.

XVI, o estabelecimento dos franciscanos em um prolongamento do Terreiro terminaria a estruturação da área. O complexo dos jesuítas, composto por igreja e colégio, era a última edificação antes da escarpa, e o convento, fundado em 1587, a última antes do alagado. Entre esses dois pontos de referência, balizados por elementos naturais, diversas ruas seriam abertas e quarteirões formados. Em 1602, o Pelourinho, inicialmente erguido no centro da Praça do Palácio, foi transferido ao Terreiro de Jesus, onde permaneceria até 1727, quando novamente foi deslocado para a Praça de São Bento. Posteriormente, o largo contíguo às Portas do Carmo passa a abrigá-lo, e então seria denominado Largo do Pelourinho. O pelourinho, ao contrário do tronco utensílio de exercício do poder privado, constituíua o símbolo do direito público. Na Europa, eram sempre erguidos nos locais onde havia feiras, a fim de punir os delitos comerciais. Em Salvador, a tradição se manteve e o instrumento de aplicação das sentenças e açoites públicos acompanharia a feira em seus sucessivos espaços. Ao longo do período colonial, os infratores, após condenação formal, eram açoitados e execrados nos pelourinhos. 8 Do Terreiro de Jesus em direção às portas do Carmo, estruturou-se uma rua direita condicionada pelo vale até o Monte Calvário. Nesta colina, fora dos muros, os carmelitas estabeleceram-se em 1586, e a partir do século XVII começariam as obras do convento, que serviria de quartel para a retomada da cidade aos holandeses. Esta área entre o Colégio e o Carmo seria adensada paulatinamente. A parte alta era ligada por ladeiras íngremes à Povoação da Praia ou Ribeira, espremida entre o mar e a colina. A ladeira da Conceição, uma das mais antigas ligações entre as duas cidades, localiza-se no sopé da montanha onde foi erguida, ainda no século XVI, a ermida de Nossa Senhora da Conceição da Praia. 9 Havia ainda a ladeira da Preguiça ou Caminho de Carro, por onde chegavam os volumes grandes desembarcados na Alfândega. Na Cidade Baixa, os Armazéns, as Ferrarias e a Casa de Fazenda e Alfândega, construídos por Luís Dias em pedra e cal, demonstram a precoce destinação portuária e comercial da área. 10 Entretanto, outras funções lhe foram acrescidas. Em 1623, a capela foi transformada em Matriz da recém-criada freguesia de N. S. da Conceição da Praia, para suprir a demanda de serviços religiosos e registro oficial dos habitantes que se estabeleceram no local. A partir do século XVIII, os sucessivos aterros possibilitariam a construção de novas quadras em espaços tomados ao mar, onde só havia poucas casas próximas ao guindaste dos jesuítas. A elevação a Matriz da Igreja de Nossa Senhora do Pilar, erguida a partir de 1739, indica o adensamento da área e a sua crescente importância. A ocupação dos holandeses em 1624 não produziria transformações profundas em Salvador, exceto pela construção de um dique, represando a água do rio que corria ao fundo da cidade em dois pontos: na altura do Carmo e São Bento. O dique formava uma barreira contra qualquer tentativa de invasão pelo lado do continente. As outras intervenções fizeram-se para fortificar a cidade e prevenir futuros ataques. Os holandeses inclusive utilizaram as pedras que seriam destinadas à 8 Atualmente apenas dois Pelourinhos permanecem de pé no Brasil: nas cidades de Mariana e Alcântara. 9 A igreja atual é a terceira erguida no local, a partir de meados do século XVIII. 10 Salvador era o principal porto de exportação do açúcar produzido pelos engenhos do Recôncavo e importação de escravos para os mesmos.

Igreja da Sé para construir um baluarte na Porta do Carmo, mas, apesar de todos os esforços, as tropas luso-espanholas recuperaram Salvador após um ano. Com a expulsão dos flamengos, Diogo Luís de Oliveira (1627-35) implementa um programa de construção de novos fortes e reforços dos já existentes. Nesse período, a cidade passa a se expandir também rumo ao leste, pela ocupação da segunda linha de colinas por edificações religiosas como o Conjunto de Nossa Senhora da Palma, erguido a partir de 1630, no local onde as tropas ibéricas acamparam para retomar Salvador; o Convento do Desterro, primeiro convento de freiras no Brasil, construído a partir de 1681; e, finalmente, o Convento de Nossa Senhora da Lapa, inaugurado em 1744. E assim, paulatinamente, formaram-se as freguesias de Nazaré, Saúde e Palma. A ocupação da segunda linha de colinas inicia uma nova fase para Salvador, que incluía não somente a expansão urbana. Após 1650, quando a ameaça holandesa finalmente fora afastada, os habitantes de Salvador puderam executar melhoramentos também nas construções civis, e então, inicia-se o século de ouro da Bahia Colonial, quando foram construídas diversas igrejas, como a da Ordem Terceira de São Francisco e a atual dos Jesuítas; o novo Palácio dos Governadores e ocorreu a ampliação final da Casa da Câmara. Desde 1675, Salvador passou a ser a sede do único Arcebispado da América Portuguesa, e, a partir de 1714, o Brasil foi elevado a Vice-Reino. No século XVIII, Salvador seria então a segunda cidade do Império Português, atrás apenas de Lisboa. Todas as novas construções, no entanto, teriam como referência as edificações já existentes ou seriam realizadas sobre o tecido estabelecido no período anterior. O traçado da mancha matriz permaneceria sem maiores alterações até o último quartel do século XIX. As transformações iniciadas no Oitocentos aceleram-se no século XX com a inauguração das obras do Porto da Bahia. A febre vertiginosa do progresso não pouparia nem mesmo as áreas de maior significado para o poder público, como a renomeada Praça Tomé de Souza. Os vestígios coloniais eram identificados como símbolos de atraso e, em nome do futuro, era preciso esquecer o passado.