NÓS, A GENTE E A CONCORDÂNCIA EM UMA COMUNIDADE AFRO-BRASILEIRA ISOLADA

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Transcrição:

PAPIA 21(1), p. 159-176, 2011. ISSN 0103-9415 NÓS, A GENTE E A CONCORDÂNCIA EM UMA COMUNIDADE AFRO-BRASILEIRA ISOLADA Vivian Antonino Universidade Federal da Bahia viviantonino@yahoo.com.br Manuele Bandeira Universidade Federal da Bahia manuele.bandeira@hotmail.com Abstract: In Brazilian Portuguese, there is a difference in the ways we use Nós and a gente, which represent the first person plural subject pronoun. Although extremely widespread in popular speech, and even in formal speech, the term a gente is not described clearly in normative grammars. Some grammars list the term as an indefinite pronoun and others as a subject pronoun, while others describe it as the representation of indefiniteness of the subject. A significant variation in consistency in the use of the first person plural can be observed in Brazilian vernacular speech. There is no distinction made between the use of Nós or a gente. This research aims to offer an empirical analysis of the usage of Nós and a gente in the subject position, also examining the application of the verbal agreement with the first person plural. Based on theoretical and methodological principles of quantitative sociolinguistics in the survey, the research used the colloquial speech of 12 informants in the isolated Afro-Brazilian community of Cinzento, a small town located in a town called Planalto in the arid backlands of Bahia state. In this study, we attempt to prove the hypothesis that the bipolar linguistic reality in Brazil has brought about the formation and perpetuation of a language variety modified by contact, that is, vernacular Brazilian Portuguese, through an irregular linguistic transmission, Therefore, the configuration of use of pronouns in first person plural and the change in verbal agreement with such pronouns in popular speech could be explained by the formation of the vernacular language in Brazil, which occurred due to intense contact between languages. Keywords: Sociolinguistics; Brazilian Portuguese; Irregular Linguistic Transmission.

160 VIVIAN ANTONINO / MANUELE BANDEIRA 1. Introdução Nos eventos de fala, para se referir às pessoas do discurso, o falante utiliza os pronomes pessoais, incluindo o pronome nós, que se refere conjuntamente ao falante e a outrem. No português brasileiro (doravante PB), a forma a gente pode tanto ser usada como substantivo, para nomear, coletivamente, um agrupamento de seres humanos, como também ser usada para fazer referência à primeira pessoa do plural (P4). Assim, o falante do PB tem a sua disposição, além do pronome nós, a forma alternante a gente. Segundo Lopes (2007), uma das questões problemáticas existentes nas gramáticas normativas se trata da não inclusão das formas que são amplamente usadas pelos falantes como a gente e você. Mesmo sendo muito frequente no português brasileiro, a variante a gente dificilmente é objeto de análises e descrições gramaticais. E, quando é abordada nos compêndios, a forma inovadora recebe tratamentos discordantes e, com frequência, inadequados. Um exemplo de tal discordância seria a própria classificação da forma, em que não é possível notar um consenso, pois o a gente é classificado ora como pronome indefinido, ora como substantivo coletivo ou, até mesmo, como fórmula de representação da primeira pessoa (Cf. Ali, 1921; Cunha & Cintra, 2001 [1985]; Nascentes, 1953). Além da não inclusão de variantes amplamente utilizadas, outro aspecto problemático na perspectiva dos compêndios gramaticais seria a caracterização da concordância verbal como regra categórica, embora muitos estudos sociolinguísticos já tenham demonstrado que, nas variedades populares do português brasileiro, a concordância verbal pode ser definida como regra variável. Assim, ao analisar o português popular, nota-se que a aplicação da concordância em 1ª pessoa do plural pode variar da seguinte maneira: (a) Nós cantamos/cantamo/cantemo (com desinência número-pessoal ou DNP-P4: - mos ou alomorfes: - mo ou - emo) (b) Nós canta (sem desinência) (c) A gente canta (sem desinência) (d) A gente cantamos/cantamo/cantemo (com DNP-P4: - mos ou alomorfes: - mo ou - emo) Desse modo, a atual pesquisa pretende realizar uma análise empírica da aplicação da regra de concordância verbal junto à primeira pessoa do plural no português afro-brasileiro da comunidade de Cinzento, identificando os contextos linguísticos e extralinguísticos que estariam interferindo no fenômeno em estudo.

Nós, A GENTE E A CONCORDÂNCIA EM UMA COMUNIDADE AFRO-BRASILEIRA... 161 Com essa análise, busca-se comprovar a hipótese de que a realidade linguística bipolarizada do Brasil propiciou a formação e a manutenção de uma variedade de língua modificada pelo contato, o português popular brasileiro, através de uma transmissão linguística irregular (Cf. Baxter; Lucchesi, 1997; Lucchesi, 1999 e 2003; Lucchesi e Baxter, 2006). Desta forma, a configuração de uso dos pronomes de primeira pessoa do plural e a variação da concordância verbal com tais pronomes na fala popular teria uma justificativa passível de ser encontrada na formação da língua popular do Brasil, que se deu em uma situação de intenso contato entre línguas. 2. Metodologia Para a realização desta pesquisa, foram seguidos os pressupostos da Teoria da Variação, fundamentada pelo linguista William Labov (2008 [1972]. Por considerar a língua um fenômeno heterogêneo, este modelo trata a mudança linguística através do estudo da variação sincrônica observável na fala. Para a elaboração do estudo, utilizou-se um corpus composto por 12 informantes do município de Cinzento, localizado no semi-árido baiano. Eles foram divididos em 4 faixas etárias (faixa I - de 20 a 40 anos, faixa II- de 41 a 60 anos, faixa III - de 61 a 80 anos e faixa IV- acima de 80 anos) e por sexo. A escolha de Cinzento se deu por ser uma comunidade etnicamente marcada, advinda de um histórico de contato entre as línguas africanas e o português quando da sua formação. Todos os falantes investigados se situam na base da pirâmide social, têm pouca ou nenhuma escolarização e nasceram na comunidade ou chegaram lá na infância. As entrevistas têm aproximadamente 50 minutos e, seguindo as orientações de Labov, possuem um caráter informal, o que leva o informante a não se ater ao modo como enuncia a sua fala. O material analisado faz parte do banco de dados do Projeto Vertentes do Português Rural da Bahia, coordenado por Dante Lucchesi. As entrevistas, após serem transcritas segundo uma chave de transcrição elaborada no âmbito do Projeto Vertentes, foram submetidas a uma audição para a revisão dos dados levantados, que foram sistematizados e codificados. Para fazer a quantificação dos dados e chegar a resultados estatísticos, foi utilizado o programa GoldVarb 2001 que se trata de uma versão para ambiente Windows do pacote de programas Varbrul, conjunto de programas computacionais de análise multivariada, especificamente estruturado para acomodar dados de variação sociolinguística (Guy & Zilles, 2007: 105). Foram selecionadas como ocorrências as formas nós e a gente, na posição de sujeito, realizado ou não, seguido de verbo flexionado na 1ª pessoa do plural ou 3ª pessoa do singular.

162 VIVIAN ANTONINO / MANUELE BANDEIRA No processo do levantamento, foram excluídas da análise ocorrências que não são passíveis de variação da forma da 1ª pessoa do plural, como, por exemplo, nós todos ou nós quatro, haja vista não ser possível substituir o nós por a gente nesses contextos. Além disso, foram também excluídas ocorrências de verbo na 3ª pessoa do singular ou na 1ª pessoa do plural com sujeito não realizado que não estivessem antecedidas de uma estrutura equivalente contendo pronome nós ou a gente realizado. Verbos no infinitivo que não possuíam um dos pronomes em estudo, como sujeito expresso, também não foram considerados. Não foram consideradas, de igual maneira, formas cristalizadas, tais como: a) digamos por se tratar de marcador discursivo; b) estruturas do tipo vamos + verbo no infinitivo que funcionam como expressão fixa para fazer uma espécie de convite. 3. Forma do pronome de primeira pessoa do plural no português afro-brasileiro Diante da ausência de uma descrição consensual e coerente dos pronomes nós e a gente na gramática tradicional, estudos sociolinguísticos têm se debruçado sobre este tema, realizando investigações e análises que contribuem para um melhor entendimento dessas variantes em dialetos brasileiros. Omena (apud Lucchesi, 2007), ao fazer um estudo da forma de primeira pessoa do plural no corpus do PEUL, que reúne entrevistas do tipo sociolinguístico com 48 falantes adultos do Rio de Janeiro com um a doze anos de escolaridade, encontrou predomínio de a gente na ordem de 65% do total de ocorrências. A partir de 2982 dados do Arquivo Sonoro do Projeto Atlas Etnolinguístico dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), corpus este que constitui a fala de 72 pescadores do sexo masculino, analfabetos ou pouco escolarizados, Machado (1995) constatou, em seus resultados, uma maior incidência da forma a gente (72%), em relação ao nós (28%). Em paralelo ao que foi observado nos referidos estudos, a crescente implementação da variante inovadora também está ocorrendo no português afro-brasileiro da comunidade de Cinzento, como se pode ver na tabela 1:

Nós, A GENTE E A CONCORDÂNCIA EM UMA COMUNIDADE AFRO-BRASILEIRA... 163 TABELA 1: Forma do pronome de primeira pessoa do plural no português afro-brasileiro de Cinzento Pronome Nº de ocor./total Frequência A gente 525/948 56% Nós 423/948 44% Em um estudo feito por Leite e Callou (2002), a partir de pesquisas com base na fala culta, motivadas pela inserção da forma inovadora no quadro pronominal, foi encontrado um equilíbrio na distribuição de a gente, com 56% e nós, com 44%. Quanto ao resultado encontrado pela presente pesquisa, o a gente obteve exatamente a mesma frequência obtida por Leite e Callou, revelando o discreto favorecimento da variante inovadora, que já alcança todas as normas do Português Brasileiro. Para Zilles (2002), a preferência pela forma inovadora em diferentes lugares do país pode sinalizar que a mudança quanto à forma de referência à primeira pessoa do plural está em estágio avançado. Dessa maneira, seguem abaixo os resultados das variáveis, linguísticas e extralinguísticas, que estariam condicionando a implementação do a gente na gramática da comunidade aqui analisada. 3.1 Variáveis linguísticas explanatórias Quanto à variação da forma de referência à primeira pessoa do plural, as variáveis selecionadas pelo GoldVarb foram as seguintes: 1) nível de referencialidade; 2) paralelismo formal. Serão comentados nas subseções seguintes os resultados obtidos em cada variável. 3.1.1 Nível de referencialidade A forma do pronome de primeira pessoa do plural possui níveis de referencialidade, que podem variar, quanto ao seu traço semântico, do menos ao mais específico. A referência mais específica diz respeito às situações em que o falante refere-se a um grupo definido, no qual ele também está inserido ou, até mesmo, quando faz referência a ele próprio, chamado de plural de modéstia (Cunha & Cintra, 2001 [1985]). O indivíduo também pode se referir menos especificamente, existindo, dessa forma, duas maneiras de se fazer esta referência genérica, podendo ser circunscrita ao grupo/ comunidade a qual o falante pertence (indeterminação circunscrita), ou com-

164 VIVIAN ANTONINO / MANUELE BANDEIRA pletamente indeterminada, com referência passível de ser aplicada a qualquer ser humano (indeterminação universal). Abaixo, os resultados obtidos na análise quantitativa: TABELA 2: Forma do pronome de primeira pessoa do plural na comunidade de Cinzento segundo seu nível de referencialidade (nível de significância:.008) Pronome Pronome a gente nós Referência Nº de oc. / Total Freq. P.R. Nº de oc. / Total Freq. indeterminação universal 66/78 84,6%.75 12/78 15,4%.25 o próprio falante 225/312 72%.59 87/312 28%.41 indeterminação circunscrita 55/103 54%.51 48/103 46%.49 grupo específico com falante 239/562 43%.40 323/562 57%.60 TOTAL 585 56% --- 470 44% --- P.R. Através da tabela 2, nota-se que a indeterminação universal é a maior favorecedora da forma a gente, com frequência de 84,6% e peso relativo de.75. Assim, esta forma seria mais utilizada a fim de indeterminar o sujeito devido ao seu traço semântico genuíno [-específico]. Na referência ao próprio falante, o a gente também demonstrou um predomínio, com frequência de 72% e peso relativo de.59. A explicação para que o indivíduo, ao fazer o emprego da primeira pessoa do plural pela correspondente do singular, prefira a forma inovadora em detrimento do pronome canônico, deve-se ao motivo que o leva a fazer essa substituição: a tentativa de evitar o tom impositivo ou muito pessoal de suas opiniões (Cunha & Cintra, 2001 [1985]: 286). Dessa maneira, o a gente seria mais ideal para esse fim do que o nós, haja vista que o primeiro possui um traço menos específico e um significado básico que remete a uma coletividade, fatores que auxiliam para que a referência a si próprio não soe de forma altiva para os interlocutores. Na indeterminação circunscrita, percebe-se um equilíbrio entre as formas, com peso de.51 para o a gente. Através deste resultado, podemos dizer que a relação entre o traço semântico mais genérico da forma inovadora e referência menos específica já começa a perder força na gramática da comunidade analisada.

Nós, A GENTE E A CONCORDÂNCIA EM UMA COMUNIDADE AFRO-BRASILEIRA... 165 Na referência ao falante e outrem, o pronome nós prevalece, com frequência de 57% e peso relativo de.60. Tal predomínio pode ser explicado devido ao fato de o próprio contexto ser mais específico, favorecendo a maior utilização do nós. Como se pôde ver, a forma a gente possuiu frequência significativa em todos os níveis de referencialidade, o que revela o grande avanço na penetração desta forma nessa variante do português popular. 3.1.2 Paralelismo formal O paralelismo formal, conceito desenvolvido por Scherre e Naro (1993: 03), refere-se a uma tendência de formas gramaticais semelhantes ocorrerem juntas. Dessa maneira, esperou-se que o nós fosse mais aplicado nas circunstâncias em que o mesmo pronome antecedesse esta aplicação na oração anterior, esperando-se a mesma lógica no que diz respeito à forma a gente. Essa variável é aqui constituída pelos seguintes fatores: a) primeira referência: sem citação anterior ao referente do nós ou a gente; b) referência anterior feita por a gente: Ôtra hora, a gente vai na safra assim, quando inicia a safra, a gente vem embora. (INF04 CZ) a gente num precisa deslocá daqui que... na copa do mundo mesmo que teve que o Brasil foi... teta campeão, nós saiu daqui... foi assisti jogo no Inácio.. (INF03 CZ) c) referência anterior feita por nós: assim que nem nós mora aqui, num lugazinho isolado... ninguém vê nada, a gente num dê um vortinha. (INF12 CZ) Nós tá parado, porque nós não utilizô mais ela (INF06 CZ) E os resultados obtidos foram os seguintes:

166 VIVIAN ANTONINO / MANUELE BANDEIRA TABELA 3: A forma do pronome de primeira pessoa quanto ao paralelismo formal (nível de significância.024) Pronome a gente nós Antecedente Nº de oc. / Total Freq. P.R. Nº de oc. / Total Freq. P.R Forma precedida por a gente 219/284 77%.72 65/284 23%.2 Primeira referência 343/616 55%.50 273/616 45%.5 Forma precedida por nós 20/146 13%.14 126/146 87%.8 TOTAL 582/948 56% --- 464/948 44% -- Ao se analisar a tabela 3, pode-se notar que o a gente, como forma antecedente, fez com que o uso dessa variante elevasse de 56% para 77% (peso relativo de.72). Por outro lado, como primeira referência, nota-se que a variante inovadora se encontra em equilíbrio com a variante conservadora, com peso relativo de.50 para as duas formas. Comparado ao a gente, o condicionamento exercido pelo nós é maior, pois quando o nós antecede uma realização da forma de primeira pessoa do plural, a probabilidade de o pronome referido ser repetido se eleva de 44% para 87%. Segundo Lucchesi (2009), essa correlação mais forte se deve ao fato de o nós ser a forma mais marcada, atuando de maneira mais enérgica no plano do paralelismo discursivo. 3.2 Variáveis sociais Para análise variacionista, mais especificamente, no âmbito do encaixamento social, foram propostas as seguintes variáveis: (i) sexo; (ii) escolaridade; (iii) faixa etária; (iv) estada fora da comunidade; e (v) comunidade. Deste conjunto, foram consideradas estatisticamente relevantes pelo GoldVarb as variáveis faixa etária e estada fora da comunidade. Os resultados e análise serão apresentados a seguir. 3.2.1 Faixa etária A variável social faixa etária é importante para o estudo sociolinguístico no que diz respeito à variação e mudança sob a perspectiva do tempo aparente. Essa perspectiva se baseia no pressuposto de que as diferenças no comportamento linguístico de gerações diferentes num determinado momento

Nós, A GENTE E A CONCORDÂNCIA EM UMA COMUNIDADE AFRO-BRASILEIRA... 167 refletiriam diferentes estágios do desenvolvimento da língua (Lucchesi, 2001). Dessa maneira, segundo Chambers e Trudgill (apud Lucchesi, 2001), haveria a hipótese, por exemplo, de que a fala das pessoas de 40 anos refletiria a gramática da comunidade de fala de 20 anos atrás. Com base nesse pressuposto, a comparação do uso de gerações diferentes poderia refletir o processo de difusão da mudança linguística. Em estudos anteriores que tiveram como foco a alternância do nós e o a gente, como o de Seara (2000), Omena (1996) e Machado (1995), os resultados revelaram uma maior probabilidade de ocorrência da forma inovadora entre os falantes mais novos, o que aponta para uma mudança em curso em favor da implementação do a gente. A partir da análise de uma amostra de falantes de nível universitário, Lopes (1998) chegou à mesma conclusão em seu trabalho, reforçando a amplitude do fenômeno nos diversos segmentos sociais. Assim, os informantes da comunidade analisada foram distribuídos em quatro faixas etárias e os resultados foram os seguintes: TABELA 4: Forma do pronome da primeira pessoa do plural segundo a variável faixa etária (nível de significância:.024) Pronome a gente nós Faixa etária Nº de oc. / Total Freq. P.R. Nº de oc. / Total Freq. P.R. Faixa I- 20 a 40 241/364 66%.60 123/364 34%.40 Faixa II- 41 a 60 262/502 52%.47 240/502 44%.53 Faixa III- 61 a 80 65/116 56%.53 43/116 48%.47 Faixa IV mais de 80 17/73 23%.34 56/73 77%.66 TOTAL 582/948 56% --- 464/948 44% --- Nesta análise quantitativa, pode-se perceber que o a gente é mais utilizado pela faixa I, ou seja, pelos mais jovens, com frequência de 66% e com.60 de peso relativo. Este uso é reduzido na medida em que se vai para as faixas de falantes mais velhos.

168 VIVIAN ANTONINO / MANUELE BANDEIRA 3.2.2 Estada fora da comunidade A variável estada fora da comunidade é de grande importância para o estudo sociolinguístico, uma vez que ao analisar comparativamente falantes que permaneceram ininterruptamente em sua comunidade e falantes que já estiveram fora dela por pelo menos seis meses, é possível mensurar os processos de difusão dos padrões linguísticos urbanos e institucionalizados para o interior dessa comunidade. E os resultados obtidos seguem abaixo: TABELA 5: A forma do pronome de primeira pessoa segundo a estada fora da comunidade (nível de significância.024) Pronome Esteve E d fora da comunidade Nunca saiu da comunidade a gente nós Nº de oc. / Total Freq. P.R. Nº de oc. / Total Freq. P.R. 68/547 68%.60 31/547 32%.40 41/508 41%.38 58/508 59%.62 TOTAL 582/948 56% --- 464/948 44% --- A partir dos dados obtidos na tabela 5, notou-se que o a gente foi mais utilizado pelos falantes que estiveram seis meses ou mais fora de sua comunidade, com frequência de 68% e peso relativo de.60. Em direção contrária, os falantes que nunca saíram da comunidade utilizam mais o nós, com frequência de 59% e peso relativo de.62. Tal resultado confirmou a hipótese inicial, pois os falantes que saíram da comunidade, por estarem mais expostos à influência dos padrões linguísticos difundidos pelos centros urbanos, fazem um maior uso da variante inovadora. Por outro lado, os falantes que não estiveram fora de sua localidade tendem a conservar por mais tempo a utilização do nós, devido ao seu maior isolamento geográfico. 4. A concordância verbal junto à primeira pessoa do plural em cinzento Embora as gramáticas normativas ainda considerem a concordância verbal quanto à desinência número-pessoal como regra categórica, nota-se,

Nós, A GENTE E A CONCORDÂNCIA EM UMA COMUNIDADE AFRO-BRASILEIRA... 169 com muita frequência, que, nas variedades populares do português brasileiro, há uma significativa variação na aplicação da regra de concordância verbal. Assim, além da forma padrão -mos, a concordância de primeira pessoa do plural pode se apresentar por meio da perda do -s a fim de compor o morfema número-pessoal (nós cantamo), ocorrendo ainda a omissão do morfema -mos quando a palavra-alvo se trata de uma paroxítona (nós tinha por nós tínhamos). Segundo Lucchesi (2007), a ausência de estudos sobre a variação da concordância verbal junto à primeira pessoa do plural em dados de fala do Projeto NURC pode ser considerado um indicador de que tal fenômeno não é significativo em termos estruturais na norma culta. O mesmo não se aplica às normas mais populares, mais precisamente, com falantes de regiões periféricas das cidades, com pouca ou nenhuma escolaridade. Nessas comunidades de fala, observa-se uma relevante variação na aplicação da regra de concordância. E o estudo de Rodrigues (1992) comprova tal afirmação, pois, ao analisar a língua popular falada na periferia de São Paulo, foi encontrada uma frequência de 53% de realização verbal com a desinência de P4 (-mos e alofones). Quanto à frequência encontrada na comunidade afro-brasileira de Cinzento, é possível caracterizá-la como bastante reduzida, uma vez que se obteve apenas 9,5% de realização da desinência. Importante dizer que tal porcentagem de uso do morfema de P4 não está relacionado somente à desinência padrão -mos, mas também inclui os alofones -mo e -emo. TABELA 6: Frequência de uso do morfema verbal de primeira pessoa do plural no português afro-brasileiro de Cinzento: Desinência Nº de oc. / TOTAL Freqüência -mos ~ -mo ~ -emo 91/948 9,5% Ø? 857/948 90,5% Ao se desmembrarem os alofones do morfema de 1ª pessoa, nota-se que o morfema padrão obteve um índice de frequência inferior a 1%, semelhante ao resultado obtido pelo alofone -emo. Assim, nota-se que, em Cinzento, o apagamento do -s final do morfema de P4 é o mais usual dentre os três morfemas, como se pode ver na tabela abaixo:

170 VIVIAN ANTONINO / MANUELE BANDEIRA TABELA 7: Frequência de uso dos alomorfes verbais de primeira pessoa do plural no português afro-brasileiro Desinência Nº de oc. / TOTAL Freqüência -mos 08/948 0,8% -mo 76/948 8% -emo 07/948 0,7% Ø? 857/948 90,5% Dessa maneira, seguem abaixo os resultados das variáveis, linguísticas e extralinguísticas, que estariam condicionando a aplicação da regra de concordância na gramática da comunidade aqui analisada. 4.1 Variáveis linguísticas explanatórias Quanto à variação da concordância verbal de primeira pessoa do plural, as variáveis selecionadas pelo GoldVarb foram as seguintes: 1) Paralelismo discursivo; 2) Saliência Fônica. Os resultados serão apresentados a seguir. 4.1.1 Paralelismo discursivo Sob a perspectiva do paralelismo discursivo, foi esperado que a desinência número-pessoal de P4 (primeira pessoa do plural) fosse mais aplicada nas circunstâncias em que a mesma antecedesse esta aplicação na oração anterior, esperando-se a mesma lógica no que diz respeito à omissão da desinência. Essa variável é aqui constituída pelos seguintes fatores: (a) primeira referência: forma isolada ou primeira referência. 1- A gente estudava um quilômetro assim tão longe... (CZ-inq 07) (b)realização verbal precedida por nós + verbo com desinência -mos/ mo/-emo na oração anterior 2- Desmantelô, porque quano a gente foi lá tava assim... nós passava de um a um... nós ficamo de riba pa pegá e dá assim... (CZ- inq 08) (c) Realização verbal precedida por verbo com desinência -mos/mo/- emo na oração anterior. 3-... nós vinha de Salvadô... de Salvado passemo po Sant Antônio de Jesus... de Sant Ântonio de Jesus descemo... (CZ-inq 11)

Nós, A GENTE E A CONCORDÂNCIA EM UMA COMUNIDADE AFRO-BRASILEIRA... 171 (d)realização verbal precedida por nós + verbo com desinência na oração anterior. 4- Nós tinha uma mata aqui na Serra Preta aí nós fica tudo num bárro só... de... de Cinzento... (CZ-inq 11) (e) Realização verbal precedida por a gente + verbo com desinência na oração anterior. 5- A gente estudava um quilômetro assim tão longe... que num tinha condições de nós ir e voltá no mermo dia. (CZ-inq 07) (f) Realização verbal precedida por verbo com desinência na oração anterior. 6- Nós leva de cá umas bestajinha que tem e que vende, aquele salarin acaba, pronto. (CZ-inq07) TABELA 8: A concordância verbal com a 1ª pessoa do plural em Cinzento, segundo o paralelismo discursivo (nível de significância:.043) Paralelismo discursivo Nº de oc. / TOTAL Freq. P. R. primeira referência 49/573 9%.49 Precedido por nós + verbo com desinência -mos/mo na oração anterior Precedido por verbo com desinência -mos/mo na oração anterior Precedido por nós + verbo com desinência na oração anterior Precedido por verbo com desinência, sem sujeito realizado, na oração anterior Precedido por a gente + verbo com desinência na oração anterior 9/15 60%.93 7/11 63%.93 12/101 12%.58 6/77 8%.47 8/164 5%.38 TOTAL 91/941 9,5% --- Nota-se, nos resultados obtidos na tabela 8, a confirmação da hipótese inicial, pois em sentenças precedidas pela forma nós + desinências mos/ mo/emo, ou apenas pelas desinências, os pesos relativos se mostraram altamente favorecedores de concordância, enquanto, ao contrário, formas precedidas por a gente + verbo com desinência Ø (ou apenas a desinência Ø) desfavorecem a marcação de concordância.

172 VIVIAN ANTONINO / MANUELE BANDEIRA 4.1.2 Saliência fônica O princípio da saliência fônica desenvolvido por Lemle & Naro (1977) consiste na idéia de que entre duas formas niveladas, que se opõem, é mais provável a permanência dessa oposição quando há, entre elas, uma diferenciação fônica acentuada. Contrariamente, quando há uma menor distinção, existe uma tendência a neutralizar-se a oposição e prevalecer o uso de apenas uma das formas. TABELA 9: A concordância verbal com a 1ª pessoa do plural em Cinzento, segundo a saliência fônica (nível de significância:.043). Saliência fônica Nº de oc. / TOTAL Freq. P. R. 1. ia/íamos 1/160 0,6%.08 2. fala/falamos 19/326 6%.46 3. faz/fazemos 21/165 13%.69 4. vai/vamos 36/252 14%.70 5. fez/fizemos; é/somos 14/34 42%.92 TOTAL 91/937 9,5% ---- Conforme o esperado, é possível ver, através da tabela 9, que nas formas mais salientes, como fez/fizemos e é/somos, em que há mudança completa no radical da palavra, e em vai/vamos, em que ocorre inclusive mudança de timbre da vogal na passagem da forma singular para a forma plural, há um favorecimento acentuado à marcação de concordância, com pesos relativos.92 e.70 respectivamente. Formas menos salientes, por sua vez, tendem a favorecer a não concordância verbal de primeira pessoa do plural. 4.2 Variáveis sociais Para análise variacionista, mais especificamente, no âmbito do encaixamento social, foram propostas as seguintes variáveis: (i) sexo; (ii) escolaridade; (iii) faixa etária; (iv) estada fora da comunidade; e (v) localidade. Deste conjunto, foi considerada estatisticamente relevante pelo GoldVarb a variável sexo. Serão apresentados abaixo o resultado obtido e sua análise.

Nós, A GENTE E A CONCORDÂNCIA EM UMA COMUNIDADE AFRO-BRASILEIRA... 173 4.2.1 Sexo Tem-se observado que, em comunidades afro-brasileiras como a investigada, os homens tendem a ter mais contato com o mundo exterior, pois são eles que têm maior necessidade de sair da comunidade, muitas vezes até em busca de empregos em cidades vizinhas ou capitais. Quanto a esta variável, os resultados encontrados foram os seguintes: TABELA 10 A concordância verbal com a 1ª pessoa do plural em Cinzento, segundo o sexo do falante (nível de significância:.043) SEXO Nº de OC. / TOTAL freq. P. R. Homens 64/574 11%.55 Mulheres 27/374 7%.41 TOTAL 91/948 9,5% --- Como se pode notar, através da tabela, os homens tendem a aplicar mais a regra de concordância, com frequência de 11% e peso relativo de.55, em detrimento da mulher, com frequência de 7% e peso relativo de.41. Tal resultado pode ser melhor entendido se considerarmos que, em Cinzento, a mulher costuma ficar mais restrita ao ambiente doméstico e à roça, tendo uma integração social bem menor do que aquela que ocorre entre os homens destas comunidades. Assim, de acordo com o resultado, a mulher segue um padrão mais conservador. Deve-se atentar, contudo, ao fato de que o conservador, em comunidades com este perfil sócio-cultural, é um comportamento que se distancia do padrão, um comportamento que nada tem a ver com normas de prestígio e que comprova uma origem em que o contato entre línguas deixou fortes marcas no português popular falado nessa comunidade. 5. Considerações finais A análise da concordância verbal de primeira pessoa do plural na fala popular de Cinzento, que indicou índices baixíssimos de marca de plural, teve como objetivo reforçar a hipótese inicialmente levantada de que a origem do português popular do Brasil (PPB) é marcada, desde o período colonial, pela transmissão linguística irregular. O contato entre línguas exerceu, inegavelmente, uma grande influência na formação do PPB. Na época do Brasil

174 VIVIAN ANTONINO / MANUELE BANDEIRA colônia, era nítida uma polarização social e linguística, com índios de várias tribos, africanos falantes de diferentes línguas em um lado, e brancos portugueses e seus descendentes de outro. Da necessidade do estabelecimento de comunicação, emergiu uma variedade de língua modificada pela ação dos vários povos e simplificada pela ausência da ação normatizadora da escola. Esta realidade polarizada pode ser observada, de certa forma, até os dias atuais, principalmente em comunidade afro-brasileiras isoladas, porém as diferenças já não são tão acentuadas, graças ao acesso um tanto mais facilitado aos meios de comunicação, ao sistema de transporte mais amplo e ao maior acesso às escolas, que propagam os padrões linguísticos dos grandes centros urbanos para todas as regiões do país, eliminando as marcas mais características da fala popular, provenientes, sobretudo, das simplificações produzidas no passado pelo contato entre línguas. Do outro lado, a fala da camada culta já se afasta bastante da realidade do português europeu. Ainda assim, com a atenuação desses pólos, é possível observar mais facilmente as marcas de um português popular em falantes do português afrobrasileiro, em que se nota a simplificação de flexões verbais e nominais, típicas de comunidades advindas de situações de conato. Por esta razão, Cinzento foi o alvo de nosso estudo, buscando evidenciar a importância do contato entre língua e do processo de transmissão linguística irregular na formação do português popular do Brasil. Referências Ali, M. Said. 1921. Gramática histórica da língua portuguesa. 6. ed. São Paulo: Melhoramentos. Baxter, Alan; Lucchesi, Dante. 1997. A relevância dos processos de pidginização crioulização na formação da língua portuguesa no Brasil. Estudos Lingüísticos e Literários 19: 65-84. Cunha, Celso; Cintra, Lindley. 2001 [1985]. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira. Guy, Gregory R.; Zilles, Ana. 2007. Sociolinguística Quantitativa: instrumental de análise. São Paulo: Parábola Editorial. Labov, William. 2008 [1972]. Padrões Sociolinguísticos. Tradução de Marcos Bagno, Maria Marta Pereira Scherre, Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola. Leite, Yvone; Callou, Dinah. 2002. Como falam os brasileiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Lemle, Miriam; Naro, Anthony Julius. 1977. Competências básicas do português. Relatório final de pesquisa apresentado às instituições patrocinadoras, Fundação Movimento Brasileiro (MOBRAL) e Fundação Ford. Rio de Janeiro.

Nós, A GENTE E A CONCORDÂNCIA EM UMA COMUNIDADE AFRO-BRASILEIRA... 175 Lopes, Célia Regina. 2007. A gramaticalização de a gente em português em tempo real de longa e de curta duração: retenção e mudança na especificação dos traços intrínsecos. Fórum Lingüístico 4: 47-80. Lucchesi, Dante. 1999. A questão da formação do português popular do Brasil: notícia de um estudo de caso. A Cor das Letras 3: 73-100.. 2001. O tempo aparente e as variáveis sociais. Boletim da ABRALIN 26 (número especial): 135-137.. 2003. O conceito de transmissão lingüística irregular e o processo de formação do português do Brasil. In: Roncarati, Cláudia; Abraçado, Jussara (Org.). Português Brasileiro: contato lingüístico, heterogeneidade e história. Rio de Janeiro: 7 Letras, p. 272-283.. 2007. Alterações no quadro dos pronomes pessoais e na aplicação da regra de concordância verbal nas normas culta e popular como evidências da polarização sociolingüística do Brasil e da relevância histórica do contato entre línguas Lingüística (ALFAL) 19: 52-87. ; Baxter, Alan. 2006. Processos de crioulização na história sociolingüística do Brasil. In: Cardoso, Suzana; Mota, Jacyra; Mattos E Silva, Rosa Virgínia (orgs.). Quinhentos Anos de História Lingüística do Brasil, p. 163-218. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia. Machado, Márcia dos Santos. 1995. Sujeitos pronominais nós e a gente em dialetos populares. João Pessoa: Graphos. Nascentes, A. 1953. O linguajar carioca. Rio de Janeiro: Organização Simões. Omena, Neliza Pereira; Braga, Maria Luiza. 1996. A referência variável da primeira pessoa do discurso no plural. In: Naro, Antony Julius et al. Relatório Final de Pesquisa: Projeto Subsídios do Projeto Censo à Educação. Rio de Janeiro: UFRJ. Rodrigues, Angela. 1992. Língua e contexto sociolingüístico: concordância verbal no português popular em São Paulo. Publicação do curso de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa. Araraquara, UNESP Campus de Araraquara, n.2, p.153-171. Scherre, Maria Marta; Naro, Anthony Julius. 1993. Duas dimensões do paralelismo formal na concordância verbal no português popular do Brasil. In: DELTA 9(1): 1-14. Seara, Izabel Christine. 2000. A variação do sujeito nós e a gente na fala florianopolitana. Organon 14 (28/9): 179-94. Zilles, Ana Maria Stahl. 2002. Ainda os equívocos no combate aos estrangeirismos. In: Faraco, Carlos Alberto. (Org.) Estrangeirismo: guerras em torno da língua. São Paulo: Parábola. Recebido em: 24/03/2010 Aceito em: 19/08/2010

176 VIVIAN ANTONINO / MANUELE BANDEIRA LIVRARIA HUMANITAS Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 Cid. Universitária 05508-900 São Paulo SP Brasil Tel: 3091-3728 / Telefax: 3091-3796 e-mail: livrariahumanitas@usp.br HUMANITAS DISTRIBUIÇÃO Rua do Lago, 717 Cid. Universitária 05508-900 São Paulo SP Brasil Telefax: 3091-4589 / 3091-1514 e-mail: pubfflch@edu.usp.br http://www.editorahumanitas.com.br Ficha técnica Mancha 11,5 x 19 cm Formato 16 x 22 cm Tipologia Life12 Papel miolo: off-set 75 g/m 2 capa: cartão supremo 250 g/m 2 Impressão e acabamento GRÁFICA CART Número de páginas 176 Tiragem 200 exemplares