SELEÇÃO PÚBLICA PARA A CONTRATAÇÃO DE ESTAGIÁRIOS Professora Doutora Sônia Yuriko Kanashiro Tanaka Professora da Faculdade de Direito - UPM Trata o presente sobre a legalidade de a Administração Pública realizar concurso público para a contratação de estagiários, nos termos do artigo 37, inciso II, da Constituição Federal. Referido procedimento, também definido como processo seletivo, vem sendo efetuado por alguns órgãos e entidades da Administração Pública, visando, dessa forma, garantir a igualdade de condições a todos os estudantes e banir eventuais seleções de alunos determinados, em desacordo com os objetivos da lei. Em que pesem as argumentações dispendidas, a realização de concurso público para contratação de estagiários, seja em qual denominação lhe for atribuída, não pode prosperar. Senão, vejamos. I DO PROGRAMA DE ESTÁGIOS PARA ESTUDANTES A atividade de estágio é regida pela Lei federal nº 6.494, de 07/12/1077, e regulamentada pelo Decreto federal nº 87.497, de 18/08/1982, tendo caráter pedagógico, sob a responsabilidade da instituição de ensino. Nos termos dos referidos diplomas legais, os estágios visam propiciar integração do estudante com a realidade do mundo do trabalho, visando a complementação do ensino e da aprendizagem, a serem planejados, executados, acompanhados e avaliados em conformidade com os currículos, programas e calendários escolares. 1
Os estagiários desenvolvem atividades em áreas que propiciam experiência prática na linha de formação do estudante, ou seja, a atividade varia de acordo com o curso em que o estudante está matriculado. Essas atividades estão descritas nos Planos de Estágios, que são submetidos à aprovação da instituição de ensino, previamente à contratação do estagiário. Embora as entidades que concedem estágios possam definir a forma que mais atenda às suas necessidades para selecionar os candidatos para os seus estágios, é importante ressaltar que, sendo o estágio uma atividade pedagógica inserida no contexto do curso, as oportunidades de estágio deverão se adequar às necessidades dos estudantes no seu processo de formação acadêmica e profissional e à programação da instituição de ensino. Assim, Dessa forma, sendo o estágio um procedimento didático-pedagógico, é atividade de competência da instituição de ensino dispor sobre as questões de estágio, quanto à sua duração, carga horária, inserção na programação didático-pedagógica, sistemática de organização, supervisão e avaliação. Dessa forma, cabe à instituição de ensino a decisão de permitir ou não o estágio ofertado e desse processo participam pessoas jurídicas que oferecem a oportunidade e campos de estágios, colaborando no processo educativo. Constata-se, assim, a relação triangular existente: de um lado, a instituição de ensino que avalia as condições ofertadas para o aluno; a pessoa jurídica, pública ou privada, que oferta o estágio; e o aluno que se disponibiliza para obter essa complementação de seu ensino e aprendizado. A formalização dessa relação triangular é realizada através de convênio entre a instituição de ensino e a pessoa jurídica concedente 2
do estágio, bem como, por intermédio de um Termo de Compromisso de Estágio, celebrado entre o estudante e a parte concedente, com a interveniência obrigatória da instituição de ensino.os estagiários desenvolvem atividades em áreas que propiciam experiência prática na linha de formação do estudante, ou seja, a atividade varia de acordo com o curso em que o estudante está matriculado. Essas atividades estão descritas nos Planos de Estágios, que são submetidos à aprovação da instituição de ensino, previamente contratação de estagiário. Embora as entidades que concedem estágios podem definir a forma que mais atenda às suas necessidades para selecionar os candidatos para os seus estágios, é importante ressaltar que, sendo o estágio uma atividade pedagógica inserida no contexto do curso, deve-se observar que as oportunidades de estágio devem se adequar às necessidades dos estudantes no seu processo de formação acadêmica e profissional e à programação da instituição de ensino. Por essas razões, a atividade de estágio não gera vínculo empregatício, conforme previsão nos referidos diplomas legais. Vejamos. A Lei nº 6.494/77, que dispõe sobre os estágios de estudantes de estabelecimento de ensino superior e ensino profissionalizante do 2º Grau e Supletivo, estatui em seu artigo 4º o que segue: Art. 4º O estágio não cria vínculo empregatício de qualquer natureza e o estagiário poderá receber bolsa, ou outra forma de contraprestação que venha a ser acordada, ressalvado o que dispuser a legislação previdenciária, devendo o estudante, em qualquer hipótese, estar segurado contra acidentes pessoais. (g. n.) 3
Regulamentando referido diploma legal, prevê o Decreto nº 87.497, de 18 de agosto de 1982, em seu artigo 6º e seu 1º que: Art. 6º A realização do estágio curricular, por parte de estudante, não acarretará vínculo empregatício de qualquer natureza. (g. n.) 1º O Termo de Compromisso será celebrado entre o estudante e a parte concedente da oportunidade do estágio curricular, com a interveniência da instituição de ensino, e constituirá comprovante exigível pela autoridade competente, da inexistência de vínculo empregatício. (g. n.) Por essa razão, as Delegacias Regionais do Trabalho, amparadas pelo Ministério Público do Trabalho, fiscalizam constantemente as formas de realização do estágio, zelando pelo cumprimento das condições previstas no Termo de Compromisso, e nos Planos de Estágios, com o intuito de evitar, dessa maneira, a eventual substituição do estágio por mão de obra. Por outro lado, as instituições de ensino também realizam periodicamente a supervisão, a fim de se verificar se todas as condições do Plano de Estágio continuam sendo mantidas. Não há, portanto, que se falar em remuneração ou encargos sociais, ou até mesmo, em registro na Carteira de Trabalho, sendo devido tão somente um seguro de acidentes pessoais, conforme dispõe o artigo 4º da Lei nº 6.494/77. A pessoa jurídica concedente do estágio poderá, também, oferecer bolsa ou outra forma de auxílio ao estagiário, como o vale-refeição, vale-transporte, que não se confundem com remuneração, posto inexistir contraprestação de serviços prestados. 4
Ademais, no tocante às providências administrativas para a realização do estágio curricular, a lei veda a cobrança de qualquer taxa do estudante. II DO PROCESSO SELETIVO DOS ESTAGIÁRIOS Em conformidade com as exigências do Programa de Estágio, mister se faz a realização de uma seleção para a escolha dos estagiários. Entretanto, essa seleção em nada se assemelha ao concurso público ou ao processo seletivo realizado por alguns órgãos e instituições à semelhança do concurso público. A necessidade da seleção dos estagiários, nos termos da lei, se limita, em resumo, na análise da correspondência das condições ofertadas pelas pessoas jurídicas com o currículo, programa do curso e calendário escolar, tarefa árdua que compete à instituição de ensino realizar. Assim, o fato de determinada pessoa jurídica ofertar oportunidade de estágio e, para tanto, possuir estudantes interessados nesse aprendizado, não significa dizer que as condições para o estágio já foram preenchidas. Compete à instituição de ensino verificar todos os requisitos do Plano de Estágio, tais como: curso, semestre em que o aluno está matriculado, habilidades, compatibilidade dos horários e localização do estágio, atividades que estão sendo propostas, dentre outros. Subtrai-se, dessa forma, que, embora as pessoas jurídicas que ofertam o estágio possam definir as condições do estágio, essas oportunidades deverão se adequar às necessidades do estudante no seu processo de formação acadêmica e profissional, bem como à programação da instituição de ensino, por se tratar de atividade pedagógica inserida no contexto do curso. 5
Referida tarefa, conferida às instituições de ensino, não tem e não pode ter nenhum condão de outorga de privilégios ou discriminações, posto que a seleção encontra-se vinculada à compatibilidade entre as condições ofertadas e as da programação curricular, sendo certo tratar-se de um serviço complexo e de total seriedade. III DA REALIZAÇÃO DE CONCURSO PÚBLICO PARA SELEÇÃO DOS ESTAGIÁRIOS Com o intuito de obstaculizar a seleção arbitrária de estagiários e, ao revés, ofertar os estágios a todos os estudantes que neles tiverem interesse, alguns órgãos e entidades da Administração Pública vêm realizando concurso público, nos termos previstos no art. 37, inciso II, da Constituição Federal, até mesmo sob a denominação de processo seletivo. Em que pesem as razões apresentadas, esse procedimento não encontra amparo legal. Como é cediço, a Administração Pública está submetida à observância de diversos princípios, alguns deles explícitos no caput do art. 37 da Constituição Federal. Dentre eles, cabe, para o presente trabalho, destacar o princípio da legalidade que é traduzida por diversos juristas e jurisprudências como a obrigatoriedade de a Administração Pública fazer tudo o que a lei determina, estando, por outro lado, proibida de realizar qualquer ato sem embasamento legal. Dessa forma, a Administração Pública direta e indireta dos três Poderes está obrigada a obedecer ao disposto no art. 37, inclusive, portanto, o que está previsto em seu inc. II, in verbis: 6
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; Pela análise do referido dispositivo legal, verifica-se que o concurso público de provas ou de provas e títulos é exigido tão somente para a investidura de cargos ou empregos públicos que são, respectivamente, ocupados por funcionários públicos, sujeitos ao regime estatutário, ou empregados públicos, contratados sob o regime celetista. Trata-se, dessa forma, da contratação de servidores públicos, definidos por Maria Sylvia Zanella Di Pietro 1, em sentido amplo, como as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício e mediante remuneração paga pelos cofres públicos. Mais adiante, continua referida autora esclarecendo que compreendem na definição ampla de servidores públicos: 1. os servidores estatutários, sujeitos ao regime estatutário e ocupantes de cargos públicos; 1 Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2006, p. 501. 7
2. os empregados públicos, contratados sob o regime da legislação trabalhista e ocupantes de emprego público; 3. os servidores temporários, contratados por tempo determinado para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, IX, da Constituição); eles exercem função, sem estarem vinculados a cargo ou emprego público. 2 Como o referido dispositivo constitucional refere-se à cargo e emprego público, evidente, portanto, que o mesmo não se aplica aos estagiários, visto que estes, nessa condição, jamais ocuparão nem cargos nem empregos, pois não são nem funcionários nem empregados públicos, mas tão somente estagiários que complementam sua formação acadêmica junto às pessoas jurídicas que ofertam estágios na área de seu estudo. Por essa razão, nos órgãos públicos que ofertam estágios, o recurso para o pagamento das respectivas e eventuais bolsas não se encontra previsto na rubrica orçamentária referente à folha de pagamento, mas, eventualmente, na rubrica genérica de serviços ou custos. E não existe a menor possibilidade legal de se atribuir o pagamento das bolsas aos estagiários em outra rubrica orçamentária, nem tão pouco atribuir funções públicas, que são destinadas aos servidores ocupantes de cargos ou empregos públicos que recebem atribuições além daquelas constantes no regimento interno, tal como de supervisor, chefia, assistente, dentre outros, ou aos servidores contratados temporariamente, nos termos do artigo 37, inciso IX, da Constituição Federal. 2 Op. cit, p. 502. 8
Assim sendo, constata-se a impossibilidade de realizar concurso público ou seleção de estagiários na forma do artigo 37, inciso II da Constituição Federal, por absoluta ausência de embasamento legal. Além do mais, a Administração Pública tem o dever de obedecer estritamente o que estatui a Lei nº 6.494/77 que não exige a realização de concurso público, até mesmo pela incompatibilidade do que esse procedimento visa com os objetivos do estágio. Vejamos. IV DA INCOMPATIBILIDADE DOS OBJETIVOS DO ESTÁGIO E DO CONCURSO PÚBLICO. Como é cediço, o objetivo do concurso público é o de selecionar os melhores profissionais do mercado para prestarem serviços nos órgãos e entidades públicas, tendo em vista a satisfação do interesse público. Ao revés, o Programa de Estágio visa ofertar, a todos os estudantes, condições para o aprimoramento e complementação de seu ensino e, por essa razão, não está direcionado aos melhores estudantes. Nesse sentido, há, verdadeiramente, condições de propiciar essa complementação de ensino também aos estudantes que tiveram deficiências anteriores em seu aprendizado. Acresça-se ao fato de que o estágio é obrigatório em grande parte dos cursos de graduação e educação profissional, para que o estudante possa obter o diploma. Na hipótese de ser exigido o concurso público, obviamente deverão ser realizadas provas e, para o estudante ser bem classificado, deverá, portanto, ter conhecimento prévio das matérias que serão exigidas nessa prova. 9
Por claras razões, serão privilegiados os estudantes que tiveram uma boa formação acadêmica, o que nos leva à conclusão de que dificilmente serão aprovados os estudantes que tiveram um ensino deficiente, mesmo que atualmente estejam em instituições de ensino renomadas. Nessas condições, subsume-se que grande número de estudantes não conseguirá, pelo menos na área pública, realizar o estágio profissional, restando-lhe somente a área privada. Certamente, esse não é o objetivo do Programa de Estágios, posto que este não visa privilegiar os estudantes com excelente formação teórica, nem tão pouco impedir a formação dos alunos, mas, ao contrário, dar igual oportunidade a todos. Ademais, a realização de concurso público para o preenchimento de cargos ou empregos públicos importa em um ônus muito grande, que é direcionado à sua própria administração, bem como na realização das provas que, em geral, são elaboradas por professores ou instituições notoriamente especializados. Essa é a razão de a taxa de inscrição nos concursos públicos ser tão onerosa. De toda a forma, não acarreta ônus algum aos cofres públicos, visto todo o gasto ser custeado pelas próprias inscrições, ou seja, pelos próprios candidatos. Entretanto, se a realização de concurso público fosse necessária para a seleção de estagiários, esse ônus recairia para os cofres públicos, uma vez que o Programa de Estágios veda, expressamente, a cobrança ao estudante de qualquer taxa referente às providências administrativas para a obtenção e realização do estágio curricular, consoante já dito anteriormente. 10
Essa situação acarretaria a necessidade de a Administração Pública prever, em sua proposta orçamentária, o referido gasto, sendo certo que não há previsão legal para tanto. Nesse aspecto, cabe salientar que o montante estimado para a realização do referido concurso público não é pequeno; atualmente, é previsto um custo de aproximadamente R$ 18,00 a R$ 30,00 por inscrição. Assim, por exemplo, estabelecendo um mínimo de 1.500 inscritos para preencherem 300 ou 500 vagas, o custo para a Administração Pública será de R$ 30.000,00 a R$ 50.000,00, com o agravante, ainda, que nesta hipótese, é vedada a limitação das inscrições. Por fim, outro ponto de grande relevância diz respeito à compatibilidade entre as condições ofertadas para o estágio, determinadas no edital do concurso público, e às constantes do programa de ensino dos estudantes classificados. Assim, se um único item for indeferido pela respectiva instituição de ensino, não há como se readequar, posto que essa alteração violaria às regras determinadas no edital. Assim, caso o estudante queira fazer outro curso, ou tenha que refazer disciplina em que ficou reprovado, ou mudou de residência para localidade distinta ou qualquer outra razão que tenha que alterar seu horário de estágio, essa modificação, mesmo com a aquiescência da Administração Pública que oferta o estágio, jamais poderá ser realizada, sob pena de burlar o concurso público. Nessa hipótese, a Administração Pública deverá aguardar outro estudante que possua as condições correspondentes à oferta e que fosse devidamente classificado no concurso público ou a realização de novo concurso. 11
Tudo isso, certamente, não está nem em consonância com o Programa de Estágios, nem possui embasamento legal em nosso ordenamento jurídico, motivo pelo qual deve ser refutada a realização do concurso público para a seleção de estagiários. V CONSIDERAÇÕES FINAIS Não há, portanto, nenhuma condição, fática ou legal, que possa ensejar a realização de concurso público para a seleção de estagiários, sob pena de desnaturalizar o próprio Programa de Estágios, previsto e em funcionamento em nosso ordenamento jurídico desde 1977. O fato de, eventualmente, algumas arbitrariedades existirem na seleção dos estudantes para o estágio ofertado não traz, por si só, a obrigatoriedade em se realizar concurso público. Ademais, diversas formas para se insurgir contra essas eventuais arbitrariedades são disponibilizadas para os estudantes que se sentirem prejudicados, até mesmo ações judiciais gratuitas pelo Juizado Especial de Pequenas Causas, visto que, como dito anteriormente, a aprovação a ser efetuada pela instituição de ensino não é arbitrária, mas condicionada a todas as condições ofertadas pela pessoa jurídica concedente do estágio e aquelas previstas no programa de ensino. Pode-se, portanto, até mesmo, ser exigida a motivação de alguma recusa injustificada. De toda a forma, não é a realização de concurso público que irá sanar tal situação, sobretudo por absoluta inexistência de amparo legal. É o parecer, s. m. j.. 12