O Livro dos Juízes e a História Deuteronomista

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Élcio Valmiro Sales de Mendonça * O Livro dos Juízes e a História Deuteronomista The Book of Judges and the Deuteronomist History Resumo O livro dos Juízes, como o conhecemos hoje, é obra do redator deuteronomista, possivelmente da época do exílio babilônico do século VI a.c. É provável que tenha havido um texto pré-deuteronomista, com tradições nortistas e narrativas mais antigas de heróis, com datação do século VIII e VII a.c., entre os Omridas e Jeroboão II. Esta pesquisa tem por objetivo analisar a redação deuteronomista na edição final do livro dos Juízes. Palavras-chave: Juízes. Deuteronômio. Deuteronomista. Redação. Abstract The book of Judges, as we know it today, is the work of the Deuteronomist publisher, possibly at the time of exile in Babylon, in the sixth century BC. May have been a previously deuteronomistic text, with traditions from the north and previous accounts of heroes, possibly from the 8th and 7th century BC, probably in time of the Omridas or Jeroboam II. This research aims to analyze the Deuteronomist Redaction in the last edition of the book of Judges. Key-words: Judges. Deuteronomy. Deuteronomist. Redaction. Introdução O nome do livro dos Juízes é uma tradução do nome hebraico shofetim (juízes ou os que julgam). Essa tradução causa equívocos na hora de interpretar o livro, porque induz o leitor a pensar que a função primária dos personagens principais do livro seja na área legal. Isso é um engano. Até mesmo uma análise superficial mostra que a função legal era bem secundária (CUNDALL; MORRIS, 1986, p. 17; LIVERANI, 2008, p. 360-362). * Doutorando em Ciências da Religião, na área de Linguagens da Religião, no Programa de Pós- Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Bolsista Fapesp. Contato: elcio.mendonca@hotmail.com.br. 23

Embora nas Bíblias cristãs Juízes pertença a um grupo de livros chamado Históricos, na Bíblia Hebraica ele faz parte do grupo dos Profetas. A divisão e a ordem dos livros na Bíblia Hebraica são diferentes das Bíblias cristãs. A Bíblia Hebraica é dividida em três grandes partes: 1) Torá (Ensino, Instrução), 2) Nevi im (Profetas) e 3) Ketuvim (Escritos). O livro dos Juízes faz parte dos Nevi im, Profetas. Mais especificamente no grupo dos Profetas Anteriores, entre os quais estão os livros de Josué, Juízes, 1 e 2Samuel e 1 e 2Reis. O livro dos Juízes está localizado, nas Bíblias em português, logo após o livro de Josué, de forma que o leitor, de modo geral, tende a compreender a história bíblica linearmente, pois se entende que Juízes seja a continuação da história da conquista de Canaã e um período intermediário entre o tribalismo e a monarquia em Israel. Segundo Fohrer e Sellin (2007, p. 285), o livro dos Juízes pode ser dividido em quatro grandes partes 1.1 2.5 (A conquista inacabada do país), 2,6 3,6 (Introdução), 3.7 16.31 (Narrativas sobre os Juízes), e capítulos 17 21 (Apêndices). Embora o substantivo juiz não apareça ligado diretamente a qualquer indivíduo, o verbo julgar surge relacionado com os seguintes personagens: Otoniel (3,4), Débora (4,4), Tola (10,2), Jair (10,3), Jefté (12,7), Ibsã (12,8.9), Elom (12,11), Abdom (12,13.14) e Sansão (15,20; 16,31). No entanto, Javé é descrito várias vezes como juiz ou o que julga em contextos de opressão de outros povos (CUNDALL e MORRIS, 1986, p. 17). Há no total doze juízes ou salvadores em todo o livro, e entre eles está uma mulher, Débora. As narrativas a respeito de uns são mais detalhadas, e as narrativas de outros não. Também é interessante notar que somente Otoniel era de Judá, o restante dos juízes era do Norte (FOHRER; SELLIN, 2007, p. 285; LIVERANI, 2008, p. 363). O livro, conforme Fohrer e Sellin, é formado por várias tradições de heróis, por exemplo, a tradição de Débora, de Gideão, de Abimeleque, de Sansão etc. São tradições que contam histórias de ameaças, confrontos e vitórias por parte dos heróis israelitas. Algumas dessas tradições podem ser classificadas como relatos etiológicos, como a história de Gideão e o chefe dos midianitas. Essas tradições devem ter sido reunidas num livro pré-deuteronomista, o qual não é possível indicar datação, mas Fohrer e Sellin sugerem que tais tradições são antigas, tendo sido postas num livro, possivelmente pela metade do período dos reis (FOHRER e SELLIN, 2007, p. 287-292). O livro dos Juízes tem sido alvo de muitas pesquisas na atualidade, pois se acredita que há 24

muitas tradições antigas e até mesmo textos mais antigos originários de Israel Norte, e que, numa leitura atenta e crítica, é possível encontrar esses textos, para que se possa ter a compreensão da história de Israel Norte, assim como Finkelstein tem proposto. A história deuteronomista A história deuteronomista está diretamente ligada ao livro de Deuteronômio. O livro de Deuteronômio (segunda lei) não é só o livro final da coleção do Pentateuco, mas uma introdução aos livros históricos subsequentes, chamados na Bíblia Hebraica de Profetas Anteriores. Deuteronômio é também um conjunto de ideias e ideologias que se desenvolveram, segundo Römer, durante o período do exílio babilônico (RÖMER, 2008, p. 41). A história deuteronomista passou por várias redações, sendo possível inclusive encontrar redações deuteronomistas no Tetrateuco (Gênesis a Números), bem como, em livros proféticos. Há ainda hoje muito debate acerca da redação deuteronomista, e segundo Römer, alguns estudiosos pensam que o assim chamado documento javístico (J), tradicionalmente situado no século X a.c., é na verdade a obra de um deuteronomista da segunda ou terceira geração (RÖMER, 2008, p. 41). Cundall e Morris, numa visão mais conservadora protestante, dizem que muitos estudiosos sustentam que Juízes faça parte de uma História Deuteronomista, mencionando num único parágrafo de sua obra Juízes e Rute, e que tal opinião precisa ser ponderada e sua leitura deve ser feita de modo cuidadoso (CUNDALL; MORRIS, 1986, p. 19-20). O termo deuteronomista refere-se, de modo geral, ao movimento teológico que tem suas origens no Deuteronômio, desde o proto-deuteronômio até suas redações posteriores pós-exílicas. Segundo Gunneweg, desde o século XIX, Deuteronômio tem sido identificado como sendo o livro de leis que foi encontrado no Templo de Jerusalém na época de Josias, rei de Judá (GUNNEWEG, 2005, p. 302). Para Römer, o mito fundante da história deuteronomista é o oque está em 2Reis 22 e 23, que narra a misteriosa descoberta do livro nos entulhos do templo, e a consequente reforma cúltica na época de Josias, rei de Judá. A destruição de todas as divindades encontradas no Templo de Jerusalém, Baal, Asherá, o exército celeste, a lua e as estrelas, bem como, a veneração ao sol, é um dos grandes pilares de Deuteronômio. 25

O texto de 2Reis 22 e 23 narra o momento em que o livro (Deuteronômio) foi descoberto no Templo, depois lido para o rei e levado para uma profetisa, chamada Hulda, para que ela interpretasse esse livro. A partir daí a narrativa coloca Josias como o grande reformador, aquele que mandou destruir todos os lugares altos, os templos concorrentes do templo de Jerusalém, e toda a divindade concorrente de Javé (RÖMER, 2008, p. 56-57). Nesse texto, fica bem claro qual o objetivo do deuteronomista. Impor a ideologia da centralização do culto e o estabelecimento do monoteísmo, ou pelo menos dos ideais monoteístas, a centralidade de Javé no culto, acima de todos os demais deuses. Ele é o único e não há outro. Para Römer, a ideologia deuteronomista da centralização do culto tende a mostrar que o reino de Israel não tem legitimação divina (RÖMER, 2008, p. 64). A centralização do culto e o estabelecimento de Javé como divindade nacional não expressam outra coisa senão a centralização do poder político e religioso em Jerusalém, capital do reino de Judá. Isso ajuda a compreender a ênfase em palavras como totalidade ou todo e um só ou único. Essas palavras podem ser entendidas como um esforço dirigido ao povo para que houvesse uma unidade. Nakanose apresenta uma proposta interessante referente à centralização cúltica. Segundo ele, como o berço de Deuteronômio possivelmente tenha sido Israel Norte, a ideologia de centralização cúltica poderia ter sido um desenvolvimento da época de Jeroboão II (NAKANOSE, 1996, p. 176-193). A história deuteronomista abrange pelo menos os livros de Josué a Reis. Em tais livros é possível notar as influências deuteronômicas em suas narrativas. Como em Samuel, por exemplo, onde temos um grande trecho positivo da narrativa sobre Saul, e outros trechos apresentando-o de forma totalmente negativa. O pecado de ter poupado o gado numa guerra foi o suficiente para Javé rejeitá-lo como rei, e a partir daí o texto diz que Javé escolheu Davi. Vemos isso também nas narrativas dos livros de 1 e 2Reis, onde temos narrativas intercaladas de reis do Norte e reis do Sul. O interessante é que todos os reis do Norte foram desclassificados e rejeitados na avaliação apresentada no texto, enquanto que, os reis de Judá foram aprovados em sua maioria. Aqui vemos claramente as mãos do deuteronomista na edição de 1 e 2Reis. A competição de Samaria e de seu templo no Norte com Jerusalém e seu templo no Sul é inadmissível, 26

já que para o deuteronomista há somente uma cidade escolhida e um único local de culto, Jerusalém e o seu Templo. A história deuteronomista foi compilada de forma a manter uma história linear do período chamado tribal para a monarquia. A impressão que o leitor tem ao ler esses textos é a de que a história bíblica é uma continuação, e a de que sempre houve o monoteísmo em Israel/ Judá, sendo Javé o único Deus, e que Jerusalém continuamente foi a cidade que Javé escolheu como a sua habitação, ou onde Javé escolheu para habitar ali o seu nome. O final da história deuteronomista coincide com o final de 2Reis (RÖMER, 2008, p. 31). Römer (2008, p. 31) apresenta uma tabela muito interessante, que ilustra a estrutura da história deuteronomista por meio dos discursos apresentados nos textos bíblicos de Deuteronômio a 2Reis. Segue: Dt 1 30 Discurso de despedida de Moisés. Critérios para avaliar a História seguinte. Cap. 28 (e outros lugares) Anúncio do exílio. ORIGENS Js 1 Js 23 Jz 2,6 3,6 1Sm 12 1Rs 8 2Rs 17 Discurso de Javé a Josué. Anúncio da conquista. Discurso de despedida de Josué. Realização da conquista. Anúncio do exílio. Discurso Introduzindo o tempo dos juízes. Discurso de despedida de Samuel. Sumário da história precedente. Anúncio da sanção divina. Discurso inaugural de Salomão. Cumprimento das promessas a Davi. Anúncio do exílio. Discurso: comentário sobre o colapso de Israel. Sumário da história precedente. Anúncio do exílio de Javé. CONQUISTA TEMPO DOS JUÍZES MONARQUIA UNIDA OS DOIS REINOS 2Rs 25 (Fim em aberto): exílio. ÚLTIMOS DIAS DE JUDÁ Juízes e o Deuteronomista O período dos Juízes, na teologia tradicional, é compreendido como uma realidade histórica tribal pré-monárquica, naquela mesma 27

ideia da narrativa linear da história de Israel, desde a conquista do território até o fim do período monárquico. Para Römer, o período dos Juízes nada mais é do que invenção literária criada pela escola deuteronomista. Segundo ele: Embora muitos manuais da Bíblia Hebraica apresentem o período dos juízes como uma realidade histórica, este período nada mais é do que uma invenção literária da escola deuteronomista. Provavelmente os escribas judaítas herdaram um rolo israelita que continha diversas histórias de salvadores (Jz 3,12-9,25 ou mesmo 3,12-12,7). Com exceção de Otoniel (3,7-11, a história é claramente um acréscimo judaíta), esses heróis são todos originários do Norte e esta observação favorece a existência de um documento nortista; durante o período babilônico este rolo foi interpolado pelos deuteronomistas a fim de criar um período intermediário entre as origens (Deuteronômio-Josué) e a história da monarquia (Samuel-Reis) (RÖMER, 2008, p. 137). Fohrer e Sellin acreditam que houve um livro pré-deuteronomista dos Juízes, e que tenha sido trabalhado, possivelmente, no período do exílio babilônico. Mas eles dizem que essa primeira edição do livro dos Juízes foi uma edição frouxa, que sofreu outras revisões e acréscimos. Para eles, é possível supor que houve uma dupla revisão e um acréscimo posterior no livro e que, mais tarde, pode ter sofrido uma terceira revisão. Dessas mãos que escreveram e editaram o livro é que resultou o livro dos Juízes, como o conhecemos hoje (RÖMER, 2008, p. 137). Os deuteronomistas criaram uma introdução ao livro, em Juízes 2,6-12; 14-16; 18-19. Com essa introdução, o deuteronomista transformou a história recente numa história antiga, narrando os feitos dos heróis do Norte. O texto se desenvolve apresentando um tema dominante, o de que os israelitas veneravam outras divindades, e assim, provocaram a ira de Javé. Segundo Fohrer e Sellin, o acréscimo introdutório de Juízes 2,11-19 distingue-se das demais introduções das perícopes de enquadramento, porque não menciona o grito de socorro e a conversão de Israel e de apresentar a intervenção de Javé com um ato de graça. Para eles, o texto de Juízes 6,2-31b também faz parte da mesma ideia (RÖMER, 2008, p. 294). O nome de Javé (YHWH) ocorre pelo menos 176 vezes no livro dos Juízes. Em toda a Bíblia Hebraica são quase sete mil ocorrências do nome Javé, e dessas ocorrências, quase metade aparece nos livros da chamada Obra Historiográfica Deuteronomista (OHD). Já o título divino elohim ocorre aproximadamente 71 vezes no livro dos Juízes, então a ocorrência do nome de Javé é mais que o dobro das citações de elohim. 28

Outra coisa interessante é que, embora um dos ideais deuteronomistas fosse a centralização do culto, esta parece não ter tanta ênfase em Juízes. O destaque maior nesse livro é a veneração exclusiva a Javé, o que pode indicar que a redação deuteronômica dos Juízes tenha sido posterior a Deuteronômio e a Reis. Segundo Römer, como os rolos das histórias dos heróis são de diferentes tribos do Norte, tornou-se difícil introduzir no texto o tema da centralização do culto (RÖMER, 2008, p. 138). No capítulo 5 de Juízes temos a história de Débora, texto que está entre os mais antigos da Bíblia Hebraica, por causa do seu estilo e vocabulário (FRANCISCO, 2014, p. 5-6). O texto é um cântico de Débora, que narra a história de uma batalha, onde ela convoca as tribos do Norte para guerrear. É interessante que não aparece a tribo de Judá nesse cântico. É possível que esse seja um texto tipicamente nortista. É possível perceber a pena do editor deuteronomista do livro dos Juízes em diversos textos, como a introdução (Juízes 2,6-19) e a reelaboração de narrativas (Juízes 3,12-15; 4,1-3; 6,1-2a, 11-24; 8,33-35; 10,6-10a, 17-18). Numa segunda revisão deuteronomista, pode-se incluir o texto a respeito de Sansão (Juízes 16) e a fórmula conclusiva (Juízes 16,31b). Fohrer diz que houve uma terceira edição, onde pode ter sido incluído o texto de Juízes 2,6-10 e 2.20 3.6, formando uma moldura com a introdução de Juízes 2,11-19 (FOHRER e SELLIN, 2007, p. 294). Também nota-se uma série de acréscimos posteriores ao exílio babilônico. Parece haver pelo menos três grandes acréscimos, que, ao que tudo indica, não faziam parte do texto deuteronomista, porque não foram contemplados no esquema cronológico do livro. O primeiro acréscimo textual no livro é o de Juízes 10,1-5 e 12,8-15, onde são apresentados os nomes dos chefes das cidades e territórios, que parecem ter sido inspirados em informações sobre os reis. Para Fohrer e Sellin, somente os nomes desses chefes devem ser mais antigos, o restante do texto é posterior ao exílio, incluindo o número de doze juízes, em correspondência ao número de doze tribos (FOHRER; SELLIN, 2007, p. 294). O segundo grande acréscimo narra a origem do santuário de Dã, localizado em Juízes 17 18. Tal texto parece ter sido reformulado várias vezes, principalmente no período dos reis. O objetivo deve ter sido localizar o santuário de Dã antes do período da monarquia, já que o texto diz quando ainda não havia rei em Israel (Jz 17.6). O terceiro grande acréscimo posterior no livro dos Juízes narra um crime cometido pelos benjamitas de Gibeá contra a mulher de um 29

levita, crime que foi vingado pelas demais tribos de Israel Norte (Jz 19 21). A narrativa desse texto parece bem antiga, talvez uma tradição vinda dos benjamitas (FOHRER e SELLIN, 2007, p. 295). Para Römer, o livro dos Juízes é o que tem menor número de passagens tipicamente deuteronomistas. Para ele, muitos textos são de origem tardia (séc. VII a.c.), assim como Fohrer e Sellin colocam, e que as passagens tipicamente deuteronomistas, são: Juízes 2,6 3,6; 6,11-18; 10,6-16. Porém, ele diz que Juízes não foi uma obra inteiramente tardia, e que principalmente o núcleo do livro seja mais antigo, originário de Israel Norte, já que de todos os juízes, somente Otoniel não é do Norte (RÖMER, 2008, p. 94). Considerações finais O livro dos Juízes, como o conhecemos, hoje não é a forma mais antiga de seu texto e de sua escrita. É a forma final da redação chamada deuteronomista. A obra deuteronomista foi composta e editada entre o final do período da monarquia judaíta e o pós-exílio babilônico. Tal obra faz parte de um conjunto de livros que sofreram forte influência ideológica e teológica do livro de Deuteronômio. Deuteronômio, além de marcar o fim do Pentateuco, sinaliza um período na História com forte influência religiosa e ideológica em Judá. Os dois pilares mais importantes para Deuteronômio são a centralização do culto em Jerusalém, e o monoteísmo, ou a centralidade da veneração a Javé. Com relação ao livro dos Juízes, possivelmente houve um livro pré-deuteronomista, formado pelas tradições dos heróis salvadores, os quais eram quase todos do Norte. Tais tradições são bastante antigas, mas não é possível datá-las. Quando esses textos chegaram a Judá, trazidos por refugiados do Norte, por ocasião da invasão assíria em Samaria, Judá apropria-se dessas tradições e textos escritos e, no final da monarquia, os escribas judaítas utilizam-se esses textos e tradições e começam a editá-los, moldando-os conforme a ideologia da época, da veneração a um único Deus, Javé. Não há fortes indícios da ideologia da centralidade do culto em Juízes, talvez porque o livro seja basicamente uma coleção de tradições do Norte, sendo difícil inserir tal pensamento na narrativa. É possível que tais tradições tenham origem no período entre os Omridas e Jeroboão II, século IX-VII a.c., já que esse foi o período em que a escrita chega a Israel Norte e, posteriormente, chega a Judá, no sul. 30

ANEXO I: ESTRUTURA DO LIVRO DOS JUÍZES Primeiro Prólogo Conquista dos territórios (1,1 2,5) Terras não conquistadas pelos israelitas (1,27-36) Javé repreende Israel (2,1-5) Segundo Prólogo Depois de Josué (2,6 3,6) Morte de Josué (2,6-10) Israel torna-se infiel (2,11-19) Israel entre estrangeiros (2,20 3.6) Os Juízes e a ocupação da terra (3,7 16,31) Otniel livra Israel (3,7-11) A servidão sob Eglom, de Moabe (3,12-14) Eliú livra Israel (3,15-31) Servidão sob Jabim, rei de Canaã (4,1-3) Débora livra Israel (4,4-16) Jael mata Sísera (4,17-24) O cântico de Débora (5,1-31) A opressão dos midianitas (6,1-10) A história de Gideão (6,11 8,35) A monarquia de Abimeleque (9,1-9,57) Tola (10,1-5) Servidão sob os filisteus e amonitas (10,6-18) A história de Jefté (11,1 12,15) A história de Sansão (13,1 16,31) Primeiro Apêndice (17,1 18,31) Mica e o santuário particular (17,1-13) Herança para os danitas (18,1-31) Segundo Apêndice (19,1 21,25) O levita de Efraim e a concubina (19,1-21) Violência contra a concubina (19,22-30) Vingança contra o crime de Gabaá (20,1-28) Israel vence a tribo de Benjamim (19,29-48) Restauração da tribo de Benjamim e suas esposas (21,1-25) Referências BRENNER, A. Juízes a partir de uma leitura de gênero. Coleção A Bíblia: uma Leitura de Gênero [Trad. Fátima Regina Durães Marques]. São Paulo: Paulinas, 2001. 31

CUNDALL, A.; MORRIS, L. Juízes e Rute: Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2008. FOHRER, G.; SELLIN, E. Introdução ao Antigo Testamento. Vol. 1 e 2 [Trad. D. Mateus Rocha]. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2007. FRANCISCO, E. F. Hebraico Bíblico Breve Histórico. São Bernardo do Campo, 2014, p. 5-6. Disponível em: <http://bibliahebraica.com.br/?p=96>. Acesso em 10/01/2016. GRAY, J. Joshua, Judges and Ruth. New Century Bible. London: Oliphants, 1952. LIVERANI, M. Para Além da Bíblia: História Antiga de Israel (Trad. Orlando Soares Moreira), 2. ed. São Paulo: Paulus/Loyola, 2008. NAKANOSE, S. Para Entender o Livro de Deuteronômio Uma lei a favor da vida? In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana/RIBLA, n. 23. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 176-193. NOVA BÍBLIA PASTORAL. São Paulo: Paulus, 2014. RÖMER, T. A Chamada História Deuteronomista: introdução sociológica, histórica e literária (Trad. Gentil Avelino Titton). Petrópolis: Vozes, 2008. 32