AS MULHERES NO EVANGELHO DE JOÃO paradigmas de fé e anúncio



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Transcrição:

TARCÍSIO MARCELINO FERREIRA MONAY AS MULHERES NO EVANGELHO DE JOÃO paradigmas de fé e anúncio Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Teologia. Área de concentração: Teologia Sistemática Orientador: Prof. Dr. Jaldemir Vitório, SJ BELO HORIZONTE - MG FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2008

Agradecimentos Senhor, obrigado pelo dom da vida e da sabedoria que me fazem me aproximar de vossa infinita bondade e misericórdia. Senhor, obrigado pelos pais, irmão e irmãs que me destes e que me possibilitaram a experiência da ternura e do vigor no aconchego familiar. Senhor, obrigado pelos irmãos e irmãs que encontrei no caminho da vida e que me ensinaram a alegria de amar e ser amado. Senhor, obrigado por nos revelar o seu maravilhoso SER. Senhor, obrigado por me fazer conhecer a vossa palavra de vida eterna. AMÉM!

RESUMO A fé e o anúncio são dois temas fundamentais do Evangelho de João. À primeira vista, tem-se a impressão de serem referidos exclusivamente aos homens, como se os discípulos tivessem o privilégio do apostolado, na condição de testemunhas do Ressuscitado. Esta dissertação, indo além das aparências, tem o objetivo de mostrar a importância das mulheres no Quarto Evangelho, por reunirem os elementos que as tornam paradigmas de fé e de anúncio para a comunidade joanina. O primeiro passo consistirá em fazer um levantamento da vivência e dos desafios da fé na comunidade de João. Sobre este pano de fundo, serão projetadas duas imagens de mulheres que, no Evangelho, são modelos de discipulado. A análise de Jo 4,1-42 explicitará a experiência de fé e de anúncio na narração do encontro da mulher Samaritana com Jesus, junto ao poço de Jacó. Na mesma linha, a análise de Jo 20,1-18 concentrar-se-á em Maria Madalena, na cena do encontro com o Ressuscitado, próximo ao túmulo vazio. O passo seguinte consistirá em retomar os pontos mais relevantes da análise de Jo 4,1-42 e 20,1-18, para explicitar os eixos semânticos de ambas as perícopes, no tocante à fé e ao anúncio. Os relatos da Samaritana e de Maria Madalena comportam as grandes linhas da catequese sobre a fé e o anúncio na comunidade joanina. O último passo consiste na leitura hermenêutica do tema da dissertação, na tentativa de haurir inspirações para a vivência da fé e do anúncio nas comunidades cristãs de hoje. PALAVRAS-CHAVES A Samaritana, Maria Madalena, Evangelho de João, Mulher, Fé, Anúncio, Paradigma. ABSTRACT Faith and proclamation are two fundamental themes of the Gospel of John. At first sight there is the impression that they refer exclusively to men, as if the disciples had the privilege of apostleship, being Witnesses of the Risen One. This dissertation, going beyond the appearances, has as its objective to show the importance of women to the Fourth Gospel, by uniting the elements which make them paradigms of faith and proclamation for the Joannine community. The first step will be to examine the life and challenges of faith in the community of John. Onto the background will be projected two images of women which in the gospel are models of discipleship. The analysis of Jn 4:1-42 will make explicit the experience of faith and proclamation in the narration of the encounter of the Samaritan woman with Jesus, at

Jacob s well. Similarly the analysis of Jn 20:1-18 will concentrate on Mary Magdalen in the scene of her encounter with the Risen One near the empty tomb. The next step will be to take up again the most relevant points of the analyses of Jn 4:1-42 and 20:1-18 to make explicit the semantic hinges of both pericopes, as they touch on faith and proclamation. The stories of the Samaritan woman and of Mary Magdalen carry the main lines of catequetics about faith and proclamation in the Joannine community. The last step consists in the hermeneutical reading of the theme of the dissertation, trying to derive inspiration for the living of faith and proclamation in the Christian communities of today. KEY-WORDS The Samaritan, Mary Magdalen, Gospel of John, Woman, Faith, Proclamation, Paradigm.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO... 9 1. JOÃO E SUA COMUNIDADE: DESAFIOS DA FÉ E DO ANÚNCIO... 13 1.1. Introdução... 13 1.2. Pi,stij: adesão da comunidade a Cristo Jesus... 13 1.3. Conflito com os discípulos de João Batista... 17 1.4. Conflitos com a Sinagoga... 19 1.5. Conflitos internos da comunidade... 23 1.6. Preocupações pastorais do evangelista... 32 1.7. Conclusão... 36 2. O DOM DE DEUS OFERECIDO À SAMARITANA... 38 2.1. Introdução... 38 2.2. A Missão de Jesus: Jo 4,1-6... 39 2.3. O encontro da samaritana com Jesus... 43 2.3.1. A sede de Jesus e a mulher samaritana - Jo 4,7-9... 43 2.3.2. O dom de Deus: Jo 4,10-15... 45 2.4. A sede de Jesus: a fé da samaritana - Jo 4,16-24... 49 2.5. A revelação de Jesus à samaritana... 53 2.5.1. Jesus é o messias - Jo 4,25-26... 54 2.5.2. A não-compreensão dos discípulos Jo 4,27... 56 2.6. A samaritana anuncia o Messias a seu povo... 57 2.6.1. A mulher torna-se discípula - Jo 4,28-30... 58 2.6.2. O verdadeiro alimento: fazer a vontade do Pai - Jo 4,31-38... 60 2.6.3. O verdadeiro Salvador do mundo - Jo 4,39-42... 63 2.7. O trabalho incansável de Jesus - Jo 4,43-46... 66

2.8. Conclusão... 69 3. A RESPOSTA DE MARIA MADALENA AO CHAMADO - Jo 20,1-18... 72 3.1. Introdução... 72 3.2. Maria Madalena vai ao túmulo e vê a pedra removida - Jo 20,1... 74 3.2.1. Maria Madalena vai avisar Pedro e o outro discípulo Jo 20,2... 77 3.2.2. Pedro e o outro discípulo correm até o túmulo Jo 20,3-10... 79 3.3. Maria Madalena permanece junto ao túmulo... 83 3.3.1. Maria vê os anjos e fala com eles Jo 20,11-13... 83 3.3.2. Maria vê Jesus, mas não o reconhece Jo 20,14-15... 85 3.4. Jesus fala com Madalena e lhe dá uma missão Jo 20,16-17... 88 3.5. Maria Madalena é enviada a anunciar aos discípulos - Jo 20,18... 91 3.6. Conclusão... 93 4. CONTRIBUIÇÃO DA SAMARITANA E DE MARIA MADALENA NA FÉ E NO ANÚNCIO PARA A COMUNIDADE JOANINA... 95 4.1. Introdução... 95 4.2. A escuta da palavra de Jesus prepara o discípulo para a missão... 96 4.2.1. A samaritana escuta Jesus junto ao poço de Jacó... 97 4.2.2. Maria Madalena identifica o Senhor... 102 4.3. A abertura ao dom de Deus torna o discipulado sinal do Reino... 104 4.3.1. A mulher samaritana é sinal do Reino para seus conterrâneos... 105 4.3.2. O amor de Maria Madalena é sinal do Reino... 108 4.4. Coragem e a permanência em Cristo: fonte de vida para a comunidade.. 111 4.4.1. A samaritana: sua permanência em Jesus e sua coragem... 113 4.4.2. Maria Madalena: sua permanência em Cristo e sua coragem... 115 4.5. Conclusão... 118

5. IGREJA: COMUNIDADE DE FÉ E ANÚNCIO... 119 5.1. Introdução... 119 5.2. O amor: ato fundante da comunidade que crê e anuncia... 119 5.3. Mulher: Modelo de Igreja-esposa de Cristo... 124 5.4. Intimidade com Cristo através de sua Palavra... 127 5.5.Coragem para romper as barreiras e as limitações institucionais... 129 5.6. Superação da arrogância e do egoísmo... 134 5.7. Conclusão... 137 CONCLUSÃO... 139 BIBLIOGRAFIA... 143

AT NT ac dc CNBB CELAM v, vv v Antigo Testamento Novo Testamento Antes de Cristo Depois de Cristo ABREVIAÇÕES Conferência Nacional dos Bispos do Brasil Conferência Episcopal da América Latina Versículo, versículos Volume (quando aparece na indicação bibliográfica) s, ss Seguinte, seguintes As abreviações bíblicas seguem a tradução da CNBB. As abreviaturas da ABNT não são referidas.

INTRODUÇÃO A narração joanina apresenta uma comunidade marcada por uma vida de fé, a ponto de viver mergulhada na intimidade com Jesus, selando, assim, seu compromisso radical no seguimento a ele. A vida de Jesus narrada pelo evangelista traz também à tona a vida da comunidade inserida nela. Para participar da comunidade cristã torna-se necessário vincularse a Jesus sendo capaz de caminhar com seu sofrimento e com todo o sofredor. A palavra de Jesus fecunda o coração dos discípulos e das discípulas tornando-os íntimos do Senhor. Os seguidores do Nazareno assumem corresponsavelmente seu compromisso na construção do reino de Deus. Os ensinamentos de Jesus fazem do discipulado um sinal da presença de Jesus no mundo. Sinal que leva a uma verdadeira profissão de fé:... ele é verdadeiramente o Salvador do mundo (Jo 4,42). O evangelista João evidencia a intenção da narrativa do Quarto Evangelho quando afirma: Estes foram escritos para que creais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome (Jo 20,31). Na constituição e participação desta comunidade, João apresenta algumas mulheres, personagens presentes ao longo de toda a narração como paradigmas de fé e de anúncio. São mulheres que escutam, dialogam, aderem e anunciam o Cristo aos outros irmãos e irmãs, como o Messias que tanto esperavam (cf. Jo 4,28-30). Elas acompanham Jesus em todo seu ministério. Não se escandalizam com a cruz; pelo contrário, marcam presença aos pés da cruz. O amor destas mulheres vai além da cruz. A insistência e a procura pelo Senhor da vida (cf. Jo 20,1-2.11-16) faz de Maria Madalena uma verdadeira testemunha do Cristo ressuscitado. Estes paradigmas são muito importantes para a vida da comunidade, pois refletem a história, a teologia e os valores nela presentes. Em João, esses paradigmas tipológicos femininos não encontram paralelo entre os homens. É possível levantar a hipótese de que, no Evangelho de João, as mulheres são apresentadas como paradigmas de fé e anúncio. O objetivo desta pesquisa consistirá em explicitar os paradigmas de fé e anúncio presentes nas narrativas joaninas acerca das mulheres, que qualificam a comunidade de fé que anuncia Jesus Cristo ressuscitado. Esta pesquisa mostrará a importância das mulheres para a fé e o anúncio de Jesus Cristo na comunidade joanina. As mulheres, discípulas qualificadas de Cristo, em um contexto histórico-social-político-econômico-religioso que lhes dava pouco reconhecimento, fazem da comunidade joanina um exemplo de comunidade querida por Deus, onde o amor mútuo, sem distinção, é a pauta do agir. 9

Para visualizar estes paradigmas de fé e anúncio do Quarto Evangelho, tomaremos as perícopes da mulher samaritana (cf. Jo 4,1-42) e a de Maria Madalena (cf. Jo 20,1-18). O funcionamento do texto, a produção de seu sentido, as operações lógicas, as afirmações, a negação e a oposição existentes nos relatos permitirão, por uma leitura atenta, perceber a carga de sentido produzida pelo autor, ao apresentar essas mulheres que, com adesão firme e resposta ao oferecimento de vida que o Pai faz em Cristo, levam a Igreja a mergulhar no mistério da nossa redenção. O trabalho está dividido em cinco capítulos que demonstrarão a importância da fé e do anúncio da samaritana e de Maria Madalena para a comunidade joanina, bem como, apontarão as pistas que o Evangelho oferece à Igreja de hoje, em vista da vivência da fé cristã. Para um trabalho mais profícuo, tem-se um olhar atento para a literatura joanina que engloba todos os escritos de João. Antes de analisar as perícopes da mulher samaritana (cf. Jo 4,1-42) e de Maria Madalena (cf. Jo 20,1-18), numa etapa prévia, procura-se fazer uma reflexão sobre a vida da comunidade joanina. O primeiro capítulo faz um levantamento dos elementos que marcam a sua identidade e os desafios que enfrenta na vivência da fé cristã. Por outro lado, explicita a finalidade primeira do Evangelho. O contexto social, econômico e político contribuem para a compreensão da vida da comunidade, permitindo responder à problemática que se apresenta como entraves para a fé e o anúncio, bem como apontar caminhos que possibilitem a superação. Qual o significado da fé para o evangelista João e quais são as suas implicações na vida da comunidade? Quais as preocupações pastorais do evangelista? Como o Evangelho de João ilumina a comunidade para a vivência da fé? O segundo capítulo faz uma análise da perícope sobre a mulher samaritana (cf. Jo 4,1-42) que compõe o livro dos sinais no evangelho de João. No diálogo com Jesus, a mulher samaritana abre o coração para o Messias que todo o povo esperava. A samaritana ouve, vê, interpela, responde e vai anunciar o Cristo que todo o povo esperava. Essa mulher não recebe um mandato para o anúncio, mas se torna discípula ao largar tudo o que está fazendo para anunciar aos conterrâneos o que ouviu do Cristo. Portanto, a partir das atitudes da samaritana e de seu diálogo com Jesus, tornar-se-á evidente a gênese de sua fé e de seu seguimento no anúncio do Cristo. O terceiro capítulo analisa a perícope sobre Maria Madalena (cf. Jo 20,1-18) que compõe o livro da glória no evangelho de João, com a finalidade de detectar nos gestos e palavras dessa mulher os elementos de sua fé em Jesus e o conseqüente seguimento do 10

Ressuscitado. A procura incansável e destemida leva Maria Madalena a encontrar-se com o Senhor ressuscitado. Quando tudo parecia perdido e sem sentido, Maria Madalena reconhece o Senhor que a chama pelo nome. Sem deter-se, ela cumpre o mandato do Senhor de anunciar aos seus irmãos a mensagem da qual tornou-se portadora. A mensagem estabelece na comunidade uma nova relação que extingue toda e qualquer diferença entre os irmãos e as irmãs. Maria Madalena, sustentada pela fé no Cristo glorificado pelo Pai, reúne os discípulos temerosos de passar pelo mesmo sofrimento de Jesus na cruz. Somente com uma espiritualidade encarnada é possível constituir uma comunidade de discípulos e discípulas, seguidora fiel e comprometida com o Cristo Jesus. O quarto capítulo consiste numa síntese dos principais elementos levantados no segundo e no terceiro capítulo, confrontando-os com a práxis expressa no primeiro capítulo. Os elementos levantados pela análise das perícopes da mulher samaritana (cf. Jo 4,1-42) e de Maria Madalena (cf. Jo 20,1-18) iluminam a vida da comunidade joanina e ajudam-na a enfrentar as dificuldades e os desafios que se lhe impõem. A mulher samaritana e Maria Madalena evidenciam a força do encontro pessoal com Cristo e a escuta da palavra que garante a vida para todo aquele que crê. A vida dessas mulheres torna-se anúncio do Cristo ressuscitado para a comunidade. E a vida da comunidade, no amor de uns para com os outros, torna-se a vida do próprio Cristo Jesus. O quinto capítulo faz uma leitura atualizante (hermenêutica) das perícopes da mulher samaritana e de Maria Madalena, tendo em vista as inspirações que oferecem à Igreja para a vivência da fé e do anúncio nos dias de hoje. A Igreja, comunidade de discípulos e discípulas, é chamada a seguir fielmente o Cristo Jesus e a comprometer-se com ele. A mulher samaritana e Maria Madalena mostram para a Igreja que, no relacionamento entre os seres humanos, não pode existir diferenças e desigualdades. O que identifica o discipulado com o Cristo é o amor de uns para com os outros (cf. Jo 13,34-35; 15,9.12.17). Por isso é necessário vencer todo tipo de egoísmo e arrogância que impedem a comunidade de viver a fraternidade, a comunhão e a solidariedade, e que não a deixam perceber o amor de Deus em Jesus Cristo por todos os seus filhos e filhas. A Igreja, na intimidade com a Palavra de Deus, deverá agir como esposa fiel ao seu esposo Jesus Cristo. A pesquisa, afinal, tem como pretensão: - Evidenciar a presença e o papel das mulheres nas comunidades cristãs primitivas e questionar a persistente misoginia presente nas Igrejas cristãs. 11

- Apresentar a partir da Samaritana e de Maria Madalena um modelo eclesial onde todos, sem exceção, são valorizados. - Descrever, para os que crêem, os paradigmas de fé e de anúncio no seguimento cristão, tendo as mulheres como referencial. - Mostrar como, no Evangelho de João, além do Discípulo Amado, existem outros exemplos relevantes de fé e anúncio e de intimidade com Jesus. Como pano de fundo da reflexão, está uma série de questões, cujas respostas encontram-se nas entrelinhas do texto. Assim, para explicar o modo de vida adotado antes da Páscoa por Jesus e seus discípulos, pergunta-se qual o valor e a importância das mulheres na comunidade cristã? O que se pode apreender da estrutura social da comunidade joanina, levando-se em conta a cultura da época? Qual a posição ocupada pela mulher na sociedade da época? O conhecimento desses dados contribui para a compreensão do funcionamento econômico, cultural e religioso da época em que nasceu o texto do Evangelho de João. Para evidenciar o papel das mulheres como paradigmas de fé e anúncio no Evangelho de João, o método utilizado consiste em analisar o texto da mulher samaritana (cf. Jo 4,1-42) e o de Maria Madalena (cf. Jo 20,1-18). A análise consiste primeiro numa visão geral do texto, ou seja, ver o mapa do texto, estabelecendo a sua fisionomia, suas idéias orientativas bem como sua tradução. Segundo, a análise dos pontos comunicativos fundamentais que fazem do texto uma unidade de sentido. E terceiro, a análise dos vocábulos, frases, períodos e passagens de maior relevância teológica, determinando o que esses significam e a que dados de fato se referem. Após estas duas etapas analíticas, o trabalho consiste em haurir inspirações para a Igreja de hoje em sua práxis cristã. O texto bíblico utilizado para auxiliar a tradução é o da Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). 12

1. JOÃO E SUA COMUNIDADE: DESAFIOS DA FÉ E DO ANÚNCIO 1.1. Introdução O Evangelho de João revela a importância da fé para uma comunidade que se esforçava para configurar sua vida com Cristo ressuscitado. A comunidade tem sua identidade construída em um tempo que já se distancia das testemunhas que tiveram contato com Jesus em seu ministério terrestre. Por isso, este primeiro capítulo faz um levantamento das principais características que marcaram a identidade da comunidade joanina, bem como dos desafios na vivência da fé cristã. Por outro lado, mostra também qual a finalidade do Evangelho em sua situação original. 1.2. Pi,stij: adesão da comunidade a Cristo Jesus Ao escrever o Evangelho, João expressa um desejo muito grande de anunciar Cristo Jesus glorificado à comunidade. Seu Evangelho é um escrito de fé, marcado pelo caminho daquele que fez a experiência profunda do evento Jesus. João pôde penetrar em profundidade o sentido e a motivação da ação de Jesus. Esforça-se por expressá-lo numa linguagem adaptada a seu tempo. Assim, a vida de Jesus narrada pelo evangelista traz também à tona a vida da comunidade inserida nele 1. Segundo Soares-Prabhu, um exegeta indiano, o Jesus da fé é o Jesus da história na medida em que era conhecido por experiência, por seus discípulos fiéis 2. Isto implica a exigência de um compromisso total de seus membros com o projeto de fé e vida cristãs. João explicita bem o objetivo de seu escrito ao declarar: Estes foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome (Jo 20,31). O crente passa por uma transformação no mais íntimo do ser porque acolheu a fé. A fé é para João o eixo que impulsiona toda a ação do cristão 3. Somente pela fé 1 BROWN, Raymond Edward. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 15. O autor sugere que o Quarto Evangelho deve ser lido em diferentes níveis, pois narra tanto a história de Jesus quanto a da comunidade que acreditava nele. 2 SOARES-PRABHU, G. Wir werden bei ihm wohnem. Das Johannesevangelium in indischer Deutung. Herder, 1984 apud LÉON-DUFOUR, Xavier. Agir Segundo o Evangelho. Palavra de Deus. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 46. 3 A fé é o objeto precípuo de todos os sinais relatados no Quarto Evangelho, como João deixa claro no final: os sinais feitos por Jesus foram escritos para que acrediteis (cf. Jo 20,31). Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. p. 164. 13

se reconhece a glória do Filho. Mas, para João, o que é a fé? O termo fé ocorre freqüentemente no Evangelho. Na literatura grega, o verbo pisteu,ein é usado de modo transitivo evpi,steuen, que significa fiarse e aparece apenas uma vez no Quarto Evangelho, na forma negativa ouvk evpi,steuen, em Jo 2,24. No modo intransitivo, é empregado em dois sentidos: dar crédito, crer e ter confiança em, confiar. Normalmente, no primeiro sentido, o verbo é empregado com uma frase introduzida por o[ti ou semelhante; e, no último, com o dativo. Ao empregar o verbo pisteu,ein no seu Evangelho muito mais vezes do que o substantivo pi,stij, João assinala a supremacia da realidade viva sobre a discussão teórica e sua conceituação. Jo 20,31 proclama que é preciso crer em Jesus como o Cristo, o Filho de Deus, para assim alcançar a salvação; ou, então, que, para se tornar crente, é preciso aceitar a mensagem de Cristo. Aceitar a mensagem de Cristo é crer nele e em Deus, acolhendo sua palavra como verdadeira, palavra que faz o crente conhecer Deus e entregar-se confiante a ele, que pode dar a tudo o seu sentido último. No hebraico existem duas raízes verbais que são utilizadas para exprimir a fé: aman acentua a certeza, a firmeza; batah tem em vista a vivacidade da fé e da confiança. A palavra hebraica emetۥ significa verdade, genuidade, realidade. Para o hebreu, a verdade é o contrário do nada, aquilo que é vaidade, nulidade. Por isso Deus é também chamado o Deus da, emetۥ da verdade ou da fidelidade, da segurança. Assim, Javé é um Deus neۥemân, um Deus de confiança, um Deus provado, a quem o crente pode se entregar (cf. Dt 7,9). Jesus é, neste sentido, o amén (cf. Ap 3,14) que significa, segundo Dt 27,15-26, ter a consciência de estar ligado, de estar contido dentro da aliança com Deus. Logo, a forma verbal he emin, que significa creu, denota a atitude da pessoa que se entrega a alguma coisa ou a alguém verdadeiro e plenamente firme e seguro. Crer é dar-se inteiramente àquele que por si mesmo merece este oferecimento total e sem reserva. Contendo algo de esperança e espera, tem-se a outra raiz batah, que, antes de tudo, significa o elan da fé, traduzida ora por crer, ora por confiar, ora por esperar (cf. Sl 4,6; Sl 25,2; Sl 55,24) 4. A vivacidade da fé e a entrega pessoal são explicadas por João de diversas formas. Charles Harold Dodd 5 apresenta os textos onde aparece a palavra pisteu,ein em João. 4 Cf. ZIMMERMANN, Heinrich. Fé. In: Dicionário de teologia bíblica. 4.ed. São Paulo: Loyola, 1988. v. 1, p. 413. 5 Cf. DODD, Charles Harold. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Teológica/Paulus, 2003. p. 245-250. 14

Em primeiro lugar, o vocábulo aparece em 4,21 e 14,11, na expressão pi,steue, moi, significando confia em mim, no sentido de dar crédito às palavras de Jesus. Logo, quer dizer crê em mim, tendo o conteúdo da crença apresentada na frase com o[ti. Em segundo lugar, é freqüente o uso de pisteu,ein com o dativo, que, no contexto de João, assume o sentido de crer, já que, no grego ordinário e na tradução dos Setenta, o sentido é geralmente confiar. Assim ocorre em 2,22; 5,46 e 8,31-47 a expressão crer na palavra ou nas palavras que Jesus diz. Em terceiro lugar, encontramos pisteu,ein seguido de uma frase com o[ti, que representa a expressão hebraica he emin ki, no sentido de estar convencido, acreditar. Em 8,24; 13,15; 11,27; 20,31; 14,11; 16,30, o conteúdo da crença é a natureza, a missão, a condição de Cristo. Em quarto lugar, pisteu,ein vem seguido de eivj com acusativo. Segundo Dodd, parece ser uma alternativa para traduzir o hebraico he emin ki. A preposição eivj é equivalente à preposição hebraica. É claro em 14,1 o sentido de confiança pessoal ou segurança que afirma que crer em Deus e em Jesus é o remédio contra a perturbação e o desnorteamento. A expressão também pode implicar um reconhecimento da afirmação de Jesus de ser ele a revelação de Deus, como aparece de modo negativo em 7,5. Pisteu,ein eivj auvto,n significa ter confiança em Jesus baseado numa aceitação intelectual das afirmações feitas em relação a ele. É interessante perceber, em alguns textos, a utilização de pisteu,ein eivj auvtou/ seguido de o;noma ( crer no nome do filho ) que, no cristianismo primitivo, referia-se ao batismo (cf. Jo 1,12; 2,23; 3,18). Isto implicava a pertença ao Cristo e, como reconhecimento desta pertença, prestar-lhe serviços como um servo ao seu senhor. O ser batizado em nome de Cristo é realizar um ato pelo qual a pessoa passa para o absoluto domínio de Cristo e fica devendo a ele, por conseguinte, vassalagem, como um doulos a seu kyrios. Não seria possível que, sendo o batismo sempre associado intimamente com a fé, o evangelista tenha aplicado diretamente à fé um conceito ligado ao batismo? Assim, pisteuein eis to onoma autou seria não simplesmente aceitar sua asserção, por consentimento intelectual, mas reconhecer tal asserção prestando vassalagem 6. Em quinto lugar, aparece o uso absoluto de pisteu,ein, onde o contexto claramente mostra que se deve suprir com alguma idéia que complete o sentido. É o caso de 3,18...porque não creu no nome do filho único de Deus e 12,39...pela qual eles não podiam crer. Há ainda lugares onde pisteu,ein tem o sentido de ser ou tornar-se cristão, como aparece na fé da comunidade primitiva em Atos dos Apóstolos. Em Jo 4,53 Desde este 6 DODD, A interpretação, p. 247. 15

momento creu, tanto ele como todos de sua casa, percebe-se um notável paralelo com At 16,34 Em seguida, o carcereiro fez Paulo e Silas subirem para a casa dele, ofereceu-lhes uma refeição e se alegrou com os seus por ter crido em Deus. Além destes significados, em Jo 1,7 e 11,15, pisteu,ein é usado sem nenhum acréscimo no sentido de para que tenham fé. Este sentido absoluto será encontrado também nos textos que falam de ver. A fé é apresentada como uma forma de visão. É só conferir Jo 6,36...vós vistes e, no entanto, não acreditais ; 11,40...que, se creres, verás a glória de Deus? e 6,46-47 É que ninguém viu o Pai, a não ser aquele que vem de Deus. Este sim viu o Pai. Amém, amém eu vos digo, aquele que crê tem a vida eterna. Em 20,25-29, aparece o texto mais significativo, que apresenta o episódio em que Tomé reconhece o Senhor ressuscitado. Nestas passagens, a visão pode não desencadear a fé, como em 6,36, em que vendo o Senhor não acreditavam. Era uma visão puramente física. Eventualmente, pode vir acompanhada da fé que leva a um sentido profundo, que dá vida ou conhecimento de Deus. Quem tem fé tem a vida eterna. No episódio de Tomé, ocorre a transição: Tomé viu o Cristo, fisicamente; e, tendo fé, ele o viu no verdadeiro sentido. Porém, mais felizes são os que, sem a visão física de Jesus, têm fé. Portanto, quem tem fé 7, mesmo que não o tenha visto fisicamente, continua tendo a capacidade de ver sua glória. Ver a Deus significa crer que Cristo está no Pai, e que o Pai está em Cristo. O homem não produz por si só a fé. Esta lhe é dada por Deus. Por isso Jesus disse: Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair (cf. Jo 6,44.65; 17,6-8). A fé faz o discípulo ir a Jesus incondicionalmente. É uma entrega que tem como conseqüência o anúncio de Jesus Cristo. A fé comporta concretamente, para quem crê, a ordem de ir anunciar Jesus Cristo. O sentido de crer também pode ser explicado como ouvir a voz de Jesus, conforme atestam vários versículos: Os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a tiverem ouvido viverão (5,25); Depois de o terem ouvido, muitos dos seus discípulos começaram a dizer: Essa palavra é dura! Quem pode escutá-la? (6,60); Porque não sois capazes de escutar a minha palavra (8,43); Aquele que é de Deus escuta as palavras de Deus; e é porque não sois de Deus que vós não me escutais (8,47); Todo aquele que é da 7 DODD, A interpretação, p. 250: Pi,stij é aquela forma de conhecimento ou visão, apropriada àqueles que encontram Deus numa pessoa histórica do passado, uma pessoa que, embora sendo do passado, através da pi,stij continua sendo objeto do conhecimento que salva, da verdade e da vida. 16

verdade escuta a minha voz (18,37). Ouvir é pôr-se no caminho de Jesus, porque se crê nele como o Filho de Deus, enviado para a salvação do mundo. Deste modo, ouvir é também crer. E quem o ouve viverá. Se João tem a fé como ponto fundamental em seu escrito é porque sua comunidade deve se entregar confiante a Cristo Jesus, o Filho de Deus. João indicou, de modo bem incisivo, o escopo de seu evangelho: Estes (sinais) foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome (20,31). Procurou, evidentemente, dar especial relevo à fé na pessoa de Jesus Cristo e em seu poder salvífico. O fundamento dessa fé é a sua própria apresentação dos fatos, a preferência dada por ele a certos sinais entre muitos outros realizados por Jesus (20,30). Seu intento é induzir os homens a crer que este homem de carne e sangue, Jesus de Nazaré, é o Messias da expectativa judaica e algo de muito, muito mais que isso. Ele é o Filho de Deus no sentido da profissão cristã de fé, que ultrapassa todas as expectativas judaicas 8. Para João, não existe meio termo. É necessário acreditar plenamente nas palavras de Jesus, que são os ensinamentos do próprio Deus. A fé é exclusivamente dirigida à pessoa de Jesus, assumindo para com ele, um compromisso definitivo. Esta fé pode crescer e tornarse conhecimento, porque, na Sagrada Escritura, o saber é sempre um ato que institui ou reforça os vínculos de comunhão e amizade. O conhecimento vem pela fé, e a fé deve crescer e tornar-se conhecimento; uma comunhão mais íntima com o Pai e o Filho. Quais são os desafios da fé e do anúncio enfrentados por João e sua comunidade? 1.3. Conflito com os discípulos de João Batista Como se lê em João, os primeiros seguidores de Jesus são discípulos de João Batista, podendo o próprio movimento joanino ter suas origens no movimento batista. No dia seguinte, João se achava de novo no mesmo lugar com dois dos seus discípulos. Fixando o olhar em Jesus que caminhava, ele disse: Eis o Cordeiro de Deus. Os dois discípulos escutaram esta palavra e seguiram Jesus (Jo 1,35-37). Os indícios de um conflito com os discípulos de João Batista aparecem nas afirmações negativas do evangelista sobre João Batista, quando afirma: Ele não era a luz (Jo 1,8); Depois de mim veio um homem que me precedeu, porque antes de mim ele era (Jo 1,15.30); Eu não sou o Cristo, eu não sou Elias, nem o profeta (Jo 1,19-24); João Batista não é o esposo, mas amigo dele (cf. Jo 3,29); É preciso que Ele cresça e eu diminua (Jo 3,30); João não realizou nenhum sinal (Jo 10,41). João Batista dá testemunho de Jesus e o revela a Israel (cf. Jo 1,29-34; 5,33), mesmo Jesus 8 HARRINGTON, Wilfrid John. Chave para a Bíblia: a revelação, a promessa, a realização. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 602. 17

não precisando deste testemunho humano (cf. Jo 5,34). Em outro texto, aparece a informação de que Jesus e seus discípulos batizavam em terras da Judéia, enquanto João Batista batizava em Enom, perto de Salim (cf. Jo 3,22). João ainda não tinha sido encarcerado. Seus discípulos, após uma discussão sobre a purificação com um judeu, foram ter com ele: Rabi, aquele que estava contigo além do Jordão, aquele sobre quem deste testemunho, eis que se põe também a batizar e todos vão ter com ele (Jo 3,22-26). Alguns discípulos de João Batista que não seguiram Jesus, como os dois citados em Jo 1,35-37, se opunham às pessoas que o seguiam. Segundo Brown, somos levados a suspeitar que os cristãos joaninos tinham de tratar com tais discípulos e que as afirmações negativas significam uma apologética contra eles. No fim do século XIX, o motivo do Batista foi muito exagerado na interpretação do Quarto Evangelho 9. O evangelista reformula uma informação antiga de que João Batista é a testemunha de Jesus Eu não sou o Cristo; sou aquele que foi enviado diante dele (Jo 3,28), mostrando bem o ponto de partida de um conflito que duraria por longo tempo entre os discípulos do Batista e os de Jesus 10. Os discípulos de João Batista tinham certa inveja de Jesus e uma consideração ciumenta das prerrogativas de seu mestre, mas não um ódio como os judeus. E muito menos o mundo que não acredita em Jesus e por isso mesmo rejeita a luz (cf. Jo 7,7; 15,18s; 16,20). Portanto, em Jo 1,19-36; 3,27-30, João Batista realça a superioridade de Jesus. Esse realce pode provir do fato de que a comunidade de João sofria oposição dos descendentes dos seguidores originais de João Batista, que proclamavam que o Batista, não Jesus, era o verdadeiro Messias. Isso leva a crer que o grupo de discípulos de João Batista estava ainda ativo quando o Quarto Evangelho estava sendo escrito. Na tentativa de combater tal conflito, os discípulos de Jesus não cessaram de proclamar que João Batista testemunhava em favor de seu mestre 11. Tal fato é confirmado em Jo 10,40-42: Jesus voltou para o Jordão, no lugar onde João começara a batizar, e aí permaneceu. Muitos vinham a ele e diziam: João 9 Cf. BROWN, A comunidade, p. 72. 10 O Evangelho de João é também o único a dizer explicitamente que os primeiros discípulos de Jesus vieram do círculo do Batista (1,35ss). Essa informação permite compreender a importância de João Batista para a comunidade primitiva: tudo havia começado com o Precursor, segundo os Sinóticos e os fragmentos de catequese conservados pelos Atos dos Apóstolos (At 1,5.22; 10,37; 11,16; 13,24; 18,25; 19,3). Ela explica também as reações daqueles que, apegados a seu mestre João Batista, recusaram-se a passar para Jesus, o Galileu. Cf. JAUBERT, Annie. Leitura do Evangelho Segundo João. 3.ed. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 8. 11 Os cristãos da comunidade de João mantinham a esperança de que os seguidores de João Batista, que ainda não eram cristãos, haveriam de reconhecer a superioridade do mestre Jesus. Por isso, os seguidores de João Batista eram convidados pelo Evangelho, através de uma correção prudente, a retificar suas interpretações errôneas a respeito da figura de João Batista, que eles julgavam superior a Jesus. 18

por certo não realizou nenhum sinal, mas tudo o que ele disse deste homem era verdade. E numerosos foram os que nele creram. Mesmo João Batista, testemunhando Jesus na preparação do caminho do Senhor, torna-se sinal de contradição como o próprio Nazareno: para uns, ele é guia; para outros, é tropeço. 1.4. Conflitos com a Sinagoga A controvérsia entre Jesus e os judeus é refletida em João com a expulsão dos judeus cristãos da sinagoga. João designa como judeus aqueles que na nação judaica rejeitaram Jesus. Há uma distância entre os discípulos de Jesus e aqueles que romperam com ele. Os primeiros discípulos de Jesus não eram também judeus? Há uma clara indicação da dificuldade de convivência entre pessoas que outrora pertenciam à mesma comunidade de fé. Desta forma, as polêmicas em João prolongam as de Jesus através das controvérsias do momento entre a comunidade cristã e a sinagoga. Assim, a oposição entre Jesus e os judeus que o renegam deriva da acirrada inimizade entre judeus e cristãos no tempo em que João escreveu seu Evangelho. A prova disso está em Jo 16,2ss: Sereis excluídos das sinagogas. Mais ainda, virá a hora em que aquele que vos fizer morrer julgará estar oferecendo um sacrifício a Deus. Eles agirão assim por não terem conhecido nem ao Pai nem a mim. Mas vos disse isso, a fim de que, quando chegar a hora deles, vos lembreis de que eu vo-lo havia dito. Quando João escreve seu Evangelho, os cristãos que originariamente pertenciam à comunidade da sinagoga já tinham sido excluídos oficialmente dela e, ainda, alguns foram condenados à morte. Tal exclusão da sinagoga não era característica do tempo de Jesus, nem de Paulo que, em At 21,26, em sua última viagem a Jerusalém, foi cultuar no templo. A cura do cego, no capítulo 9, apresenta de maneira sutil o nível histórico mais tardio da experiência da comunidade de João. O versículo 22 declara: Os seus pais (do cego de nascença) falaram assim porque tinham medo dos judeus. Estes já haviam decidido excluir da sinagoga todos aqueles que confessassem que Jesus é o Cristo. João faz do cego um modelo para os membros de sua comunidade, apresentando-o como testemunha de Jesus, intimada a escolher entre o ensinamento da sinagoga e a fidelidade a Cristo. A comunidade é encorajada a colocar toda sua confiança em Cristo Jesus, a exemplo do cego: Creio, Senhor, e a se prostrar diante 19

do Senhor para adorá-lo (v. 38) 12. O texto de Jo 18,20s contém uma clara evidência de que a exclusão dos judeuscristãos das sinagogas era própria da época em que João escreveu o Evangelho. A resposta de Jesus ao Sumo Sacerdote evidencia que falou abertamente (cf. Jo 7,26; 7,4.10; 10,24s); ensinou onde todos os judeus se reuniam, nas sinagogas e no templo (cf. Jo 6,59; 2,14; 7,14.28; 8,20; 10,23), lugares de oração onde o israelita que está em busca de Deus encontrase mais disposto ao encontro. João quer mostrar que Jesus é o Messias, acentuando a identidade cristã de todo discípulo. Jesus apelava para que o reconhecessem como o Enviado que falava as palavras de Deus. O não declarar-se a favor de Jesus por medo de ser excluído da sinagoga pelos fariseus faz João afirmar que os dirigentes que tinham começado a crer nele preferiam a glória que vem dos homens à glória que vem de Deus (cf. Jo 12,42s) 13. Por volta de 90-95 dc, quando o Evangelho tem sua configuração final, depois da destruição do templo, em 70 dc, a comunidade cristã sofria com a competição do judaísmo que estava se reorganizando e chegou a expulsar de seu meio todos os que acreditavam em Jesus Cristo, os judeus-cristãos 14. Ser expulso da sinagoga era uma experiência traumatizante para os primeiros cristãos de origem judaica. Como se vê em Jo 9,22.34; 12,42 e 16,1-4, tornar-se cristão significava ser banido da família, da comunidade religiosa, do povo. Praticamente ficava-se fora da vida social do povo judaico, cuja instituição não suporta a liberdade obtida pelo cego. Jesus comunica a plenitude da vida, que é incompatível com o regime de opressão. Ora, o judaísmo rabínico exercia grande atração sobre os judeus-cristãos, que parecem ter constituído a maior parte da comunidade joanina. João, em conflito com o judaísmo (judeus), mostra que a adesão a Jesus comportava a ruptura com as instituições (cf. Jo 8,23-24.31; 10,3-4), cujos líderes permanecem cegos (cf. Jo 9,39-41). Portanto, na cura do cego, com o testemunho dos vizinhos, com a interrogação do cego por duas vezes e a dos seus 12 LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 240: O cego de nascença, que recobra a visão, percebe o Senhor em sua fé e crê (9,38), sem demonstrá-lo, decerto, mas fazendo um gesto pelo qual dá glória a Deus, num sentido distinto do que lhe pediam os fariseus (9,24). O verbo prostrar-se (proskune,w) adquire o sentido claro de adorar quando tem por objeto o próprio Deus, assim como no diálogo com a samaritana (4,20-23); em outros casos, exprime profundo respeito. Aqui no entanto, comporta um sentido mais rico: não é o destinatário do gesto o novo Templo da Presença? O cego de nascença, que se mostrou também israelita sem fraude (1,47) e que foi encontrado por Jesus, passa a crer. Ele é a ovelha que escuta a voz do pastor para ser conduzida ao Pai. 13 Esta representação original de Jesus procura dar perfeita expressão à fé cristã em Jesus, o Messias e o Filho de Deus, procedendo conseqüentemente da imagem de fé da comunidade cristã. João representa de maneira mais sistemática, mais original, e de forma mais grandiosa que os sinóticos, não o que Jesus foi, mas o que os cristãos têm em Jesus (KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. p. 296-297). 14 Cf. BROWN, A comunidade, p. 61-95. 20

pais, João quer mostrar que os fariseus fecham os olhos para o que é evidente. Vêem a luz e a reconhecem, mas ficam nas trevas, temendo as conseqüências de sua decisão. Os líderes propõem como luz o que sabem serem trevas; assim, desorientam o povo impedindo-o de alcançar a libertação que Jesus lhe oferece. Por isso pecam, porque, sendo cegos, cegam o povo. Ocultam a verdade, para permanecerem em sua posição. Afinal, aceitar a glória de Deus em Jesus como norma de vida significa perder a situação de privilégio. Por isso preferem continuar como estavam, renunciando à vida plena, abrindo mão da vivência de filhos de Deus (cf. Jo 12,25; 3,36; 1,12). Os judeus que se deixam dominar pelo príncipe deste mundo, Satanás, são a causa da morte de Jesus, pois não escutaram suas palavras, nem creram que ele era o enviado do Pai 15. Portanto, a expulsão ou exclusão dos cristãos de origem judaica da Sinagoga é uma característica da época em que o autor escreveu o seu Evangelho. Mas quais foram os motivos que provocaram este conflito com a Sinagoga e, conseqüentemente, a exclusão dos judeus-cristãos de seu meio? O próprio episódio da cura do cego de nascença tem como centro, não o milagre, mas a discussão que suscita. No interrogatório feito ao cego, percebe-se uma confissão em favor de Jesus: O homem a quem chamam Jesus fez lama (9,11); é um profeta (9,17); Se este homem não fosse de Deus, nada poderia fazer (9,33). Ora, os judeus já haviam decidido excluir da sinagoga todos aqueles que confessassem que Jesus é o Cristo (9,22b). E, segundo eles, Jesus é um indivíduo que não observa o sábado, pois curara neste dia; portanto, ele não é de Deus. E ainda questionavam: Como é que um homem pecador teria o poder de realizar tais sinais? (9,13-16). A insistência dos judeus deseja forçar o cego a confessar que o homem que o curou não é de Deus e sim um pecador. Recusam-se a admitir que Jesus é o Enviado de Deus. E, com a cura do cego em dia de sábado, surge a discussão sobre a origem de Jesus: Nós sabemos que Deus falou a Moisés, ao passo que este, não sabemos de onde é! (9,29). Se o êxodo do Egito fora obra do amor de Deus ao seu povo (cf. Ex 4,22s; Os 11,1), interpõem agora a lei de Moisés para evitar toda nova manifestação de seu amor. Não estão dispostos a reconhecer a presença de Deus, que é visibilizada em Jesus, pois o encontro com Jesus é encontro com Deus no ser humano ou com o ser humano que torna Deus presente como atividade de amor. O ser humano torna-se o lugar da manifestação de Deus. O sábado é, 15 Gerd Theissen afirma que, para o Evangelho de João, não são os judeus em si que são a causa da morte de Jesus, mas apenas os judeus que caíram na dependência do príncipe deste mundo. Satanás é uma encarnação simbólica do poder dos romanos. No Evangelho de João, portanto, a oposição entre judeus e cristãos, com o auxilio de uma linguagem mítica, é entendida como expressão de uma alienação do judaísmo em relação a si mesmo, uma alienação politicamente condicionada. Por causa das afirmações estarem sujeitas a mal-entendidos, deve ser rejeitada qualquer acusação de antijudaísmo ao Evangelho de João. Cf. THEISSEN. Gerd, O Novo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 120s. 21

portanto, o ponto de partida que leva à pergunta essencial: quem é Jesus? 16 Sua pessoa e suas pretensões exorbitantes é o que está em discussão; afinal, ele não apenas violava o sábado, mas ainda dizia ser Deus seu próprio Pai, fazendo-se, assim, igual a Deus (Jo 5,18). Ao se auto-revelar como Filho de Deus, Jesus recorre em sua defesa a outros testemunhos além de sua palavra, que podem, em certo sentido, ser considerados objetivos (cf. Jo 5,31-47). Mas, para serem entendidos, os testemunhos citados supõem uma abertura espiritual que os ouvintes, até o momento presente, se recusaram a ter, a ponto de não reconhecerem até o testemunho que deveria ser o mais convincente: as Escrituras de Israel - Vós perscrutais as Escrituras porque pensais adquirir por elas a vida eterna, e são exatamente elas que dão testemunho a meu respeito; mas vós não quereis vir a mim para terdes a vida eterna (Jo 5,39-40). E, por isso, interroga: Com efeito, se crêsseis em Moisés, creríeis em mim, pois é a meu respeito que ele escreveu. Se não acreditais no que ele escreveu, como creríeis no que eu digo? (Jo 5,46s). Eles não toleram a afirmação de Jesus: O meu Pai até agora está trabalhando, e eu também estou trabalhando (Jo 5,17). Desta forma, o ponto fulcral da discussão é a filiação divina de Jesus, que faz os judeus tomarem a decisão de matá-lo sob a alegação de blasfêmia 17. As narrativas da cura do aleijado e do cego de nascença manifestam a vida do Pai que o Filho comunica. Assim, todo aquele que crê não caminha sozinho, pois permanece em relação com o Filho e, por ele, com o Pai. Além deste conflito com a Sinagoga judaica, a comunidade também se preocupa com as adversidades dentro da própria comunidade cristã. Se o Evangelho reflete o 16 Conforme a tradição sacerdotal (Gn 1,1 2,4 ; Ex 20,8-11), o sábado tem origem no descanso de Deus no fim da obra da criação. Na reflexão judaica posterior, o sábado torna-se e não podia ser diferente sinal de repouso escatológico; antecipa a escatologia, é sua pregustação. É o que pensa, por exemplo, Is 56,7, acentuando o motivo da alegria, da jubilosa comunhão com Deus, do festivo congraçamento de todos os seres humanos. Segundo Ex 31,13-17, o sábado é um sinal da consagração do povo de Deus. Com o repouso sabático, o homem consagra parte de seu tempo a Deus e renuncia a usá-lo para si, testemunhando assim que Deus é o dono do tempo. Assim nasce a exigência de cumprir gestos cultuais no sábado. E aqui está, a nosso ver, a raiz do possível equívoco: o sábado é tempo dado a Deus, mas esquece-se que o Deus do sábado é o Deus do Êxodo e da libertação; o sábado torna-se um preceito, um dever a cumprir ao lado dos outros, não mais a alegria da dádiva, o sinal do homem liberto diante de Deus e do mundo. Cf. MAGGIONI, Bruno. O Evangelho de João. In: FABRIS, R.; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. 4.ed. São Paulo: Loyola, 2006. v. 2, p. 329. 17 Cf. MAGGIONI, O Evangelho de João, p. 330. Também aqui João imprime à polêmica um caráter mais nitidamente cristológico. Jesus chama a atenção para sua relação com o Pai. A filiação divina é a razão profunda pela qual ele é dono do sábado. A afirmação central, que deve ser bem entendida para se compreender o raciocínio de Jesus, encontra-se no v. 17: Meu Pai continua agindo até agora, e eu também vou agindo. Os rabinos distinguiam a atividade de Deus na criação, que é suspensa no sábado, de sua atuação na providência e no juízo, que não conhecem interrupção. Deus sustenta e salva o ser humano também no sábado. Curando em dia de sábado, Jesus aplica a prerrogativa divina da atuação contínua, não interrompida nem mesmo pelo sábado; assim é associado à ação salvífica do Pai, que não admite interrupção. Por isso, a discussão que se segue não trata exatamente da observância da Lei, e sim da filiação divina de Jesus, sua afirmação de ser igual ao Pai. 22

relacionamento da comunidade joanina com os de fora, as Epístolas, que são escritas no mesmo período, se ocupam com os de dentro. Quais são os motivos que levam a esses conflitos dentro da comunidade? 1.5. Conflitos internos da comunidade Todas as epístolas joaninas mencionam, em termos muito próximos, uma situação de conflito e se assemelham ao Evangelho pelo vocabulário e pela teologia. As três Epístolas supõem que as comunidades joaninas estejam passando por um tempo de crise. Esta era uma ameaça que pesava sobre as comunidades, com o perigo de destruí-las internamente. Como se sabe, o Evangelho de João foi escrito em sua maior parte pelos anos 90 a 95. A finalização de sua redação se situa, com grande probabilidade, na virada do século I para o século II, quando as Epístolas Joaninas foram escritas. Indubitavelmente houve uma grande interação entre as Epístolas e a última redação do Quarto Evangelho, onde se encontram os primeiros elementos da tradição joanina 18. Muitas passagens, principalmente da Primeira Epístola, têm relação com a teologia do Evangelho 19. O que se deduz é que as comunidades joaninas viviam, segundo o Quarto Evangelho, de acordo com o testemunho comunicado e transmitido por João, designado como o discípulo que Jesus amava. Ora o que se tinha dos escritos de João era constituído em sua maior parte pelo Evangelho. Assim, sem ter que aderir a todo um esforço de uma tese tão radical, sem impedimento, deve-se admitir que a maioria dos estudiosos hoje em dia estão de acordo em considerar que João, o apóstolo, o filho de Zebedeu, não deve ser visto como o autor real do Evangelho, senão somente como o autor originário. Isto, com efeito, não diminui a paternidade joânica da obra, senão que opera uma distinção entre o autor e o escritor. O apóstolo, com sua autoridade e sua pregação, constitui o ponto de partida e foi a garantia da tradição que, nascida na Palestina, transpassou essas fronteiras, difundindo-se na Turquia e na Ásia Menor, e culminou em uma produção literária, cujo fruto excelente é o Evangelho, escrito provavelmente em torno do ano 100 dc 20. As comunidades joaninas não estão concentradas numa mesma região. Encontravamse em diferentes cidades ou povoados. Nelas aparecem divisões que, aos poucos, caminham 18 Cf. MORGEN, Michele. As epístolas de João. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 7. 19 As Cartas de João mostram muita semelhança temática com os discursos de Jesus no Quarto Evangelho, especialmente Jo 15-16. São fortemente marcadas pelo problema da coerência de vida da comunidade. O conjunto de 1Jo parece aprofundar a mensagem do amor fraterno (cf. Jo 15). 1Jo 1,1-4 mostra parentesco com o prólogo do Evangelho. Embora pareça refletir o pensamento da fase final do Evangelho, 1Jo não menciona a discussão com a Sinagoga, pois o assunto não é o conflito com os de fora, mas os problemas da comunidade: a caridade e a profissão de fé. Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. Petrópolis: Vozes, 2000. p.27. 20 TILBORG, Sjef van. Comentário al evangelio de Juan. Estella: Verbo Divino, 2005. p. 6. 23

para o cisma 21. No tempo das Epístolas e depois delas, diferentes grupos religiosos, cristãos e não cristãos, especialmente gnósticos, lerão o Quarto Evangelho. O autor das Epístolas reage vivamente e apresenta a exegese autêntica do Evangelho em face aos grupos separatistas e às heresias. Isto sugere que tanto o autor das Epístolas quanto os separatistas conheciam a proclamação do cristianismo que nos foi feita através do Quarto Evangelho, mas a interpretavam diferentemente. De acordo com Brown, a luta acontece entre dois grupos dos discípulos de João, que estão interpretando o Evangelho de maneiras opostas, no que se refere à cristologia, à ética, à escatologia e à pneumatologia. Os temores e o pessimismo do autor das Epístolas sugerem que os separatistas estão tendo maior sucesso numérico (1Jo 4,5) e o autor está tentando defender seus adeptos contra posteriores incursões de falsos mestres (2,27; 2Jo 10.11). O autor sente que é a última hora (1Jo 2,18) 22. O autor da Primeira Epístola se vê, assim, no dever de determinar os elementos fundamentais da fé cristã. A referência é sempre o Evangelho. O que era desde o princípio,... (1Jo 1,1) mostra já a intenção do autor logo no início da Epístola. A mensagem é explicitada em alguns pontos de acordo com a tradição cristã. A Primeira Epístola afirma que vários membros romperam com a comunidade: Do nosso meio é que saíram, mas não eram nossos. Pois se fossem nossos, conosco teriam permanecido. Mas era preciso que se manifestasse que eles todos não são nossos (1Jo 2,19) 23. Certamente, ao expressarem seus pensamentos, causaram conflitos que levaram ao desligamento da comunidade. A comunhão dos membros da comunidade joanina com o Pai e o Filho é expressa pela fidelidade ao ensinamento dado, desde o começo na comunidade. Enquanto essa comunhão designa o discípulo, o que nega o Filho é visto como mentiroso, (1Jo 2,22: Quem é mentiroso, senão o que nega que Jesus é o Cristo? Eis o anticristo o que nega o Pai e o Filho! ). No centro do Quarto Evangelho está a afirmação: Ninguém vai ao Pai senão por mim (Jo 14,6), confessada pelas comunidades joaninas. Todos os membros estavam convencidos disso. O problema está em como a comunidade interpreta o Evangelho. Por isso, a chamada Primeira Epístola atribuída a João, que não é uma epístola e sim um documento, seria na realidade, um complemento trazido pelos discípulos do 21 Cf. BROWN, A comunidade, p. 151-171. 22 BROWN, A comunidade, p. 22 23 Esses oponentes devem ter sido membros do círculo joanino (é inútil tentar identificá-los com algum heresiarca em particular dentre os conhecidos dos Padres da Igreja de algum tempo depois, como Cerinto, por exemplo), pois eles liam o Evangelho de João e a ele apelavam, afirmando que o Jesus desse evangelho dava total suporte à sua teologia gnóstica. Eles falavam do seu conhecimento de Deus (2,4; 4,8), do seu amor a Deus (4,20), da sua isenção de pecado (1,8-10) e do seu caminhar na luz (2,9). Como o próprio Jesus, eles diziam proceder de Deus e falar na voz do espírito (4,2-6). Mas negavam a vida de Jesus na carne (4,2) e a identidade do Cristo Celeste e do Jesus terreno (2,22). Cf. KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: história e literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 2. p. 212. 24