Trata-se de um mito. Francisco Alves, quem é? Rei da Voz Sim, foi um cantor que arrebatou plateias com um sucesso inestimável e hoje é um ilustre desconhecido para os mais jovens que ouvem música baixando as canções pelo smartphone e pronto. Francisco Alves foi artista de uma geração onde os discos que caiam no chão quebravam e por isso gravar era um ato somente dos que podiam, com capacidade de interpretação, entonação, controle de respiração, amplitude e impostação. Francisco Alves demonstrava qualidade em todos esses itens. Era um cantor na acepção da palavra e durante quase 30 anos foi um dos melhores do Brasil, mas a morte inesperada colidiu de frente com a lenda há 62 anos, em 27 de setembro de 1952, um sábado de madrugada. Contratado pela co-irmã paulista, a recém inaugurada Rádio Nacional de São Paulo para uma série de shows ao ar livre nos bairros da cidade, Francisco Alves fez sua estreia no Largo da Concórdia, no Brás, às 20 horas do dia 26 de setembro de 1952. Também chamado de Chico Viola, o artista subiu ao palco ao lado do Regional de Antônio Rago, um violonista muito requisitado pelo meio musical daqueles tempos e que nos deixou uma obra autobiográfica, A Longa Caminhada de um Violão, onde escreve sobre o seu convívio com vários nomes da velha guarda. Ele conta neste livro que o show terminou às 22 horas da sexta-feira, 26 de outubro e estava previsto para o cantor ficar em São Paulo, descansar, e só viajar no sábado pela manhã, mas ele mudou os planos e disse ter compromissos no Rio e que precisava estar por lá o quanto antes, chegou a me dar seu violão, pediu que eu guardasse, mas depois recuou e me pediu o de volta, colocou-o no porta - malas do seu Buick, último tipo, e partiu para nunca mais voltar, 1 / 6
escreve Rago acrescentando que a apresentação do Brás era para ser a primeira de uma série mas acabou sendo a última da vida do cantor. Antonio Rago, morreria décadas depois, aos 91 anos, em 2008, deixando este livro, uma espécie de autobiografia com passagens interessantes dele com representantes da música no Brasil, entre os anos de 1930 a 1970. Naquela madrugada fatídica, da viagem de volta ao Rio pela Via Dutra, nas proximidades de Pindamonhagaba, o carro com o Rei da Voz ao volante, foi colhido de frente por um caminhão que vinha em alta velocidade na contramão da estrada. O carro se incendiou e o cantor morreu carbonizado no acidente. O jornal O Estado de S. Paulo, no dia 30 de setembro de 1952, uma terça-feira, estampava detalhes da colisão e do sepultamento no Cemitério São João Batista, cujo féretro foi acompanhando por mais de 150 mil pessoas cantando nas ruas as suas canções e chorando ao mesmo tempo. A vida do Rei da Voz daria um filme, pois nasceu pobre e filho de um português, dono de botequim, no Rio de Janeiro, em 19 de agosto de 1898. Ainda criança começou a trabalhar de engraxate, depois arrumou emprego em uma fábrica de chapéus e foi ainda chofer de táxi, onde aprendeu os caminhos da boemia e da malandragem carioca dos anos 20, não a ponto de livrá-lo de uma paixão avassaladora por uma prostituta de nome Ceci, que foi conhecer em um cabaré da Lapa. Sua família ficou desolada, porque a decisão de se casar foi repentina, mas o matrimônio só durou uma semana e a própria Ceci foi quem decidiu pela separação. Nesse mesmo ano, conhece Célia Zenatti, dançarina e atriz de revista, o grande amor de sua vida, dizia. De fato, uma feliz união de vinte e oito anos, até que ele encontrasse uma jovem professora. Frequentava o Teatro S. José porque não perdia as apresentações de Vicente Celestino, outro cantor hoje tão desconhecido quanto ele e tratado como uma espécie de Caruso brasileiro. Da admiração por Celestino buscou cantar profissionalmente e um diretor de uma companhia de teatro decidiu levá-lo aos palcos. Era 1922, ano de nascimento do Rádio no Brasil e Francisco Alves desde o princípio mostrou-se arrojado interpretando valsas e marchinhas e foi com uma delas, Pé de Anjo, de Sinhô, para o carnaval de 1928, que Francisco Alves obteve seu primeiro sucesso em disco. Fez amizade com os bons compositores de seu tempo, Noel Rosa; Ismael Silva; Nilton Bastos; Herivelto Martins; Lupicínio Rodrigues e Cartola; entre outros, e de todos gravou alguma canção ou foi parceiro. César Ladeira, apresentador da Rádio Nacional do Rio, foi quem o batizou de O Rei da Voz, em 1933 e desde então Francisco Alves colecionou sucessos e se tornou o artista brasileiro com o maior número de gravações em discos de 78pm. Ao longo de sua carreira, lançou 526 discos com 983 músicas, sendo 132 composições 2 / 6
próprias. Foi também o descobridor de outras vozes como a de Orlando Silva que foi procurá-lo e Francisco Alves se não fosse sensível e honesto poderia ter dificultado a situação para Orlando, um grande talento e outro aspirante ao sucesso. Ao contrário, ajudou a transformá-lo no conhecido Cantor das Multidões. Em 1939 Francisco Alves gravou aquela se tornaria uma das mais famosas e emblemáticas canções de sua carreira, Aquarela do Brasil, composta por Ary Barroso. Depois de deixá-la pronta, Ary que também era radialista, narrador de futebol e apresentador de programas de calouros, precisou viajar para os Estados Unidos. Mas ao ouvir a música, Francisco Alves quis gravá-la de imediato e errou a letra. Em vez de dizer meu mulato inzoneiro, ou seja, mexeriqueiro, pronunciou meu mulato risoneiro, palavra que não existe no dicionário. Mesmo assim o disco saiu sem que ninguém notasse o equívoco e quando Ary Barroso voltou ao Brasil ficou furioso e queria retirar o disco de circulação, mas a música já fazia sucesso sendo impedido pela gravadora. Sorte de todos, porque até hoje se ouve a mesma gravação e poucos percebem. Quem quiser ouvir algumas gravações de Francisco Alves, poderá considerar que os arranjos estejam ultrapassados, mesmo assim algumas canções resistem em qualidade como Fita Amarela (de Noel Rosa, cantada em parceria com o amigo Mário Reis), Confete (David Nasser/J. Júnior) Chuvas de Verão (Haroldo Lobo), Boa Noite Amor (José Maria de Abreu e Francisco Matoso) e Serra da Boa Esperança (Lamartine Babo), entre outras. Gravou também versões interessantes como Besame Mucho, talvez a música mais cantada no mundo, composição da mexicana Consuelo Velásquez que no Brasil saiu em 1943 com o título Beija-me muito, versão de David Nasser, na voz do Chico Viola. Dois anos depois ele gravaria outra versão do grande sucesso originalmente na voz de Carlos Gardel, cujo nome vertido para o português é O dia que queiras, da letra em espanhol escrita pelo poeta brasileiro Alfredo Lepera. A tradução é lindíssima e consta dessa reportagem. Outro grande sucesso, a canção Cinco Letras Que Choram Adeus (Silvino Neto), foi entoada pelo público que acompanhou comovido o transporte do corpo do cantor, no dia do triste adeus, atirando flores em seu caixão e lamentando sua inesperada e sentida morte. Tu, só tu, madeira fria, sentirás toda agonia do silêncio do cantor, escreveu o amigo e jornalista David Nasser após a morte de Francisco Alves. 3 / 6
Pouco mais de seis décadas depois da tragédia, fãs ainda visitam no Rio de Janeiro, o túmulo do inesquecível cantor se perguntando: Se vivo como teria reagido à bossa nova, assimilaria também esse novo ritmo? Acreditamos que teria dificuldades como tiveram os seus contemporâneos, devido ao estilo e timbre de uma fase da Música Popular Brasileira. Mais triste saber é que depois dela e da bossa nova, surgiram poucos talentos capazes de emocionar as plateias como naqueles tempos, mas Francisco Alves foi sem dúvida O Rei da Voz". Aquarela do Brasil Ary Barroso Brasil, meu Brasil Brasileiro, Meu mulato inzoneiro, Vou cantar-te nos meus versos: O Brasil, samba que dá Bamboleio, que faz gingar; O Brasil do meu amor, Terra de Nosso Senhor. Brasil!... Brasil!... Prá mim!... Prá mim!... Ô, abre a cortina do passado; Tira a mãe preta do cerrado; Bota o rei congo no congado. Brasil!... Brasil!... Deixa cantar de novo o trovador À merencória à luz da lua Toda canção do meu amor. Quero ver essa Dona caminhando Pelos salões, arrastando O seu vestido rendado. Brasil!... Brasil! Prá mim... Prá mim!... Brasil, terra boa e gostosa Da moreninha sestrosa De olhar indiferente. O Brasil, verde que dá Para o mundo admirar. 4 / 6
O Brasil do meu amor, Terra de Nosso Senhor. Brasil!... Brasil! Prá mim... Prá mim!... Esse coqueiro que dá coco, Onde eu amarro a minha rede Nas noites claras de luar. Ô! Estas fontes murmurantes Onde eu mato a minha sede E onde a lua vem brincar. Ô! Esse Brasil lindo e trigueiro É o meu Brasil Brasileiro, Terra de samba e pandeiro. Brasil!... Brasil! O Dia que me queiras Alfredo Lepera Eu sinto nos meus sonhos o suave murmúrio do teu suspirar. Teus olhos parecem dois sóis resplandentes a me iluminar. Teu riso é como a brisa que toca de leve, chegando do mar- Alvorada de ternura, todo um sonho de loucura... O dia que me queiras No azul do Firmamento Estrelas radiosas Dirão ao nos ver passar E a brisa perfumada no aroma das roseiras Transformarão em sonhos e glórias a noite em que tu me queiras O dia que me queiras As rosas tão singelas Vestindo-se de festas terão mais linda cor 5 / 6
Geraldo Nunes *Geraldo Nunes, jornalista e memorialista, integra a Academia Paulista de História geraldonunes@jornalmovimento.com.br 6 / 6